domingo, 26 de maio de 2013

Gente pobre - Fiódor M. Dostoiévski

GENTE POBRE  (Бедные люди)
de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski
(Федор Михайлович Достоевский)

...uma pessoa pobre é pior que um trapo
e não é digna de nenhum respeito da parte de
ninguém, seja lá o que for que escrevam! (...)
para o pobre vai ficar tudo como sempre foi! (Makar)1

Os pobres e os desgraçados devem se afastar uns
dos outros, para não se contagiarem
ainda mais. (Varvara)

...que botas hei de calçar amanhã
para ir para o serviço? (indagação de Makar)





A ESTRÉIA. Com o romance epistolar Gente pobre (1846), Dostoiévski entusiasma o crítico Bielínski. Este chega a afirmar que a Rússia descobre um novo Gógol, salientando também que Gente pobre é “a primeira tentativa de se fazer um romance social” na Rússia. A chamada “escola natural” (nosso Naturalismo no Brasil) é a expressão bancada, então, por Bielínski. Segundo o que este crítico crê, a estréia de Dostoiévski corresponde a sua proposta. Mais tarde, A senhoria (1847) e Noites brancas (1848) decepcionam os críticos pelo romanticismo inadequado e fantasmagórico. Atualmente, vê-se estas duas obras não somente como textos românticos, mas enredos preparatórios para diversos personagens com psicologias complexas da fase adulta do escritor, como Crime e castigo e Os irmãos Karamázov. Dostoiévski está com 24 anos.

O ENREDO. Makar Alieksiêivitch Diévuchkin (diévuchka em russo significa moça) tem cerca de 47 anos, mora num pardieiro alugado, num quarto atrás do tabique da cozinha: uma verdadeira Arca de Noé, em suas palavras. É primavera em São Petersburgo. Através de suas cartas carinhosas à Varvara Alieksiêievna Drobrosiólova, vai compondo sua solidão e consideração à moça, moradora vizinha em frente ao alojamento de Makar. Varvara mora com Fiódora, mulher boa e rabugenta. Makar tem especial afeição paternal e protetora por Varvara, sendo o motivo principal de sua vida. Isolado de todos, este funcionário público é regularmente ridicularizado por seus colegas de serviço, o que o aproxima de Akaki Akakievitch, o personagem de O capote, de Gógol. Makar questiona a veracidade do protagonista gogoliano, mas simpatiza com Samson Vírin, pai de Avdótia (a Dúnia), em O chefe da estação de Púchkin. Por fim, se vê alijado da companhia (através das cartas e das raras visitas que faz à Varvara) definitiva de sua vizinha, por esta optar pelo casamento com Bíkov, outrora amigo imoral de Anna Fiódorovna, mulher suspeita que agenda seus conhecidos para moças de suas relações. Como Varvara se recusa a este tipo de vida, é perseguida e denegrida por Anna. Esta, no passado recente, ajudou Varvara e a mãe da jovem, já morta. A cena final do romance é insuportavelmente constrangedora: Makar, para ficar “mais perto” de Varvara (que parte definitivamente para o campo com Bíkov, o irascível), aluga o quarto desta. O adeus para sempre de Varvara é reforçado pelas cartas que recebeu de Makar no período de abril até setembro (da primavera ao outono, passando pelas noites brancas de Petersburgo do fim de maio), agora deixadas em cima da cômoda. O desabafo de Makar para que Varvara não parta é inócuo e sem eco, pois é carta que ela jamais receberá.

O DIÁLOGO COM PÚCHKIN E GÓGOL. Dostoiévski retoma, através de Makar, dois personagens de obras significativas da literatura russa: O chefe da estação e O capote, respectivamente de Púchkin e Gógol. Samson Vírin, o chefe da estação, se vê privado definitivamente de seu objeto de adoração, no caso, sua filha Avdótia (Dúnia), “raptada” (entenda-se também fugida da vida mediocrizada que leva ao lado do pai) por Mínski e levada para São Petersburgo. Akaki Akakievitch, funcionário público gogoliano, depois de tensas e infecundas negociações com seu alfaiate para que conserte seu surrado e deplorável capote, se vê na obrigação de economizar ainda mais do pouco que tem para pagar um capote novo. Também perderá seu objeto querido, quando do roubo de seu novíssimo capote. Makar é “roubado” também, por Bíkov, pois Varvara o deixa, preocupação que o faz ter mais ainda com a sua eterna solidão. Afinal, como ficará sua correspondência com Varvara?

A DIFERENÇA DOSTOIEVSKIANA. A contrariedade de Makar com o personagem de Gógol pode ser entendida pela falta de consciência social de Akaki Akakievitch, se considerarmos as repetidas preocupações de Makar com os outros, como estes o olham, como o consideram e como convivem em torno dele (também Varvara se preocupa com seu destino, pois acredita que ao casar com Bíkov restituirá a sua honra, fugindo da pobreza e da doença, além de seu mau futuro). Makar e Varvara não se tornam personagens presos e atrofiados por suas insignificâncias; são leitores, miseráveis e humilhados e ofendidos sociais, mas representam a mobilidade e luta para manter ou recuperar suas dignidades e diminuir seus prejuízos sociais. São lutadores incansáveis e, pela primeira vez na literatura russa, seres com disposição a discutir o seu destino dentro de um todo social.

DESTAQUE PARA DOIS PERSONAGENS. Pokróvski é pensionista de Anna Fiódorovna e estudante pobre que dá aulas particulares às meninas Varvara e à prima desta, Sacha. Tem livros raros e valiosos. Este jovem e tuberculoso estudante se torna amigo de Varvara e empresta livros à jovem. O pai é bêbado, mas se esforça para adquirir livros para o filho (com a ajuda de Varvara, ambos compram as obras completas de Púchkin para Pokróvski no dia de seu aniversário). Com a morte de Pokróvski por tuberculose, Zakhar, seu pai, desesperado, persegue, a pé, a carroça que leva o caixão do filho.

Do caderno das recordações de Varvara entregue a Makar Diévuchkin.
Da morte de Pokróvski.

Por fim entendi o que queria. Pedia-me para levantar a cortina e abrir os contraventos. Sua vontade, certamente, era de ver o dia, a luz divina, o sol, pela última vez. Abri a cortina; mas o dia que despontava estava tão triste e melancólico como a pobre vida do moribundo, que se extinguia. Não havia sol. As nuvens cobriam o céu com uma névoa espessa; ele estava tão chuvoso, sombrio e melancólico. Uma chuvinha fina tamborilava nos vidros da janela e banhava-os com jatos de uma água fria e suja; tudo estava embaciado e escuro. Os raios do dia pálido penetravam tenuamente no quarto e mal conseguiam competir com a luz trêmula da lamparina acesa diante do ícone. O moribundo fitou-me com imensa tristeza e balançou a cabeça. Um minuto depois estava morto.

O infeliz perdeu o chapéu e nem se deteve para apanhá-lo. Ficou com a cabeça molhada de chuva; levantara uma ventania; a escarcha fustigava-lhe o rosto, partindo-o todo. O velho parecia não se dar conta do mau tempo e corria em pranto de um lado para o outro da carroça. As abas de seu decrépito sobretudo esvoaçavam como asas ao vento. De todos os seus bolsos assomavam livros; em sua mão havia um livro enorme, que estreitava fortemente contra o peito. Os transeuntes tiravam o chapéu e faziam o sinal da cruz. Outros paravam assombrados, para ver o pobre velho. A todo instante lhe caíam livros dos bolsos na lama. As pessoas o paravam, para apontar-lhe os livros perdidos; ele os apanhava e se punha de novo a correr no encalço do caixão. Na esquina, uma velha mendiga juntou-se a ele para acompanhar o caixão.

O outro pobre coitado é Gorchkov, homem casado e cheio de filhos morador do mesmo edifício de Makar. Lutando anos por um ganho judiciário, ao sair vitorioso da demanda, dorme ao lado da esposa e morre sem ter a oportunidade de usufruir melhores dias.  

A SENHORIA e NOITES BRANCAS. Os protagonistas destes romances se aproximam de Makar por perderem seus pares e seus motivos de efêmera felicidade: Vassíli Ordinóv perde Katierina para o enigmático Múrin, em A senhoria; o narrador–sonhador perde Nástienka para o inquilino desta, em Noites brancas.





1  Esta e as demais citações foram retiradas de Gente pobre, tradução de Fátima Bianchi, Editora 34, 2009.


sexta-feira, 10 de maio de 2013

Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsípkin, e a Cultura Literária Russa do século XIX



Leonid Tsípkin e a edição de Verão em Baden-Baden
Capa da edição brasileira
de Verão em Baden-Baden
Com a descoberta da obra por Susan Sontag em Londres e a tradução direta do russo por Fátima Bianchi (Companhia das Letras, 2003) é possível conhecer a prosa única em edição brasileira deste escritor do período soviético. Tsípkin não vê seu romance publicado (sobre Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski – 1821-1881 – e sobre ele próprio, Tsípkin, pois morre uma semana depois da publicação de Verão em Baden-Baden); também é privado de sair da União Soviética sob o comando de Leonid Brejniev (1906 – 1982; mandato: 1964 – 1982). Tsípkin é judeu-russo e tem parte de sua família assassinada, assim como consegue escapar com seus pais. O antissemitismo de Stálin (1878 – 1953; mandato: 1924 – 1953) perdura neste contexto familiar trágico. Tsípkin está com cerca de 15 anos. Nasce em 1926 e morre em 1982. É médico patologista. Verão em Baden-Baden é escrito no período de 1977 e 1980. Em 1982, em 13 de março, Verão em Baden-Baden é publicado na revista de emigrados russos nos E.U.A. 


Fiódor M. Dostoiévski
A matéria do romance. 
A verossimilhança em Verão em Baden-Baden é incomodativa, pois a biografia parcial de Dostoiévski (embora predominante) e a de Leonid Tsípkin se entrecruzam num jogo duplo. A genialidade de Dostoiévski não é colocada à prova, mas seu lado humano ganha força se entendido com seus defeitos, suas arrogâncias, seus arrependimentos e, sobretudo, seu caráter obsessivo e contraditório. Entretanto, nada muito diferente de escritores da época que se alimentam de comentários desconcertantes a seus pares literários. Como Tsípkin se debruça sobre a figura monumental de Dostoiévski, é possível a imagem negativa que o leitor tenha do autor de Humilhados e ofendidos (1861), principalmente se ignorar as principais biografias do autor do século XIX. 
A ficção ganha força, investindo na vida de Dostoiévski em Baden-Baden (na Alemanha) com sua segunda esposa, Anna Grigorievna Dostoiévskaia (1846-1918), e a fuga do casal das dívidas impostas pela própria família dele e credores de Mikhaíl, seu falecido irmão. 


O estilo de Tsípkin. 
Vertiginosamente sustentado por três discursos que deixam o leitor sem fôlego, como o trem que sacoleja no início da narrativa na viagem de Tsípkin de Moscou até Leningrado (São Petersburgo), a narrativa voraz funde o passado e o presente destacando o ritmo sôfrego, monologal e descritivo, alimentado por comentários e lembranças, sonhos e delírios, frases ininterruptas e pouca pontuação final, com excesso de travessões e mínima utilização de parágrafos, com mudança de foco narrativo, ausência de divisão por capítulos, espaço e tempo convencionais eliminados e, por extensão, com a íntima relação entre forma e conteúdo, pois a trajetória do casal Dostoiévski é, também, em Baden-Baden, trôpega, alucinada e estremecida pelos fantasmas de Fédia. 



As três vozes narrativas. 
A habilidade na construção do romance se dá pelas vozes interpostas no enredo de Verão em Baden-Baden. Primeiro surge o “eu” do tempo presente (Leonid Tsípkin); depois, o “ela” (Anna G. Dostoiévskaia, e sua relação com o escritor e marido Dostoiévski) e, finalmente, o “ele” (com “ela” fluindo no passado – em 1867) destruído pela epilepsia, pelas dívidas familiares e pelos jogos de roleta. A tensão do casal é compartilhada pelo leitor (auxiliada pela leitura de Tsípkin do Diário de Anna): o talento de Dostoiévski e sua inferioridade em relação a Turguêniev (1818-1883) e Gontcharóv (1812-1891), seus traumas, pensamentos, falas, vozes, sonhos e delírios e perseguições, revoltas, raivas, sadomasoquismo, humilhações, frustrações, etc. Desta forma, se aprofunda a obra de Tsípkin; assim são detalhadas as perversões e delicadezas do humano e genial Dostoiévski. 


O primeiro parágrafo de Verão em Baden-Baden
Além do impactante e ávido narrar, Tsípkin faz uma viagem de Moscou até Leningrado e está a ler o Diário de Anna G. Dostoiévskaia. Ligará, deste modo, o estilo utilizado com a futura trama e, por extensão, com o drama de Tsípkin e os problemas sentimentais e econômicos do autor de Crime e castigo (1866) e sua segunda esposa. O deslocamento do trem se insere no acelerado narrar. A partir dessas revelações, urge a fundição do passado (de Dostoiévski e Anna) com o presente (de Tsípkin) para que se possa chegar às conclusões que a leitura nos solicita. 


O diário de Anna Grigorievna Dostoiévskaia. 
Anna G. Dostoiévskaia
A fonte de pesquisa de Tsípkin é também o Diário da segunda esposa de Dostoiévski, além das suas leituras da obra do autor, de seus biógrafos e dos locais que Dostoiévski vive, passa e viaja. Mas o Diário de Anna Grigorievna Dostoiévskaia é referência marcante nesta obra de Tsípkin. Primeiro porque ele é citado diversas vezes; segundo, porque quem o leu percebe o íntimo pensamento de Anna em relação à psicologia do marido, de suas frustrações, das humilhações que sente frente ao casamento com uma jovem vinte e cinco anos mais jovem, da epilepsia, dos ataques de outros escritores a Dostoiévski, da obsessão pelo jogo de roleta (embora Tsípkin não registra o incentivo esporádico de Anna a este jogo para que o marido consiga se acalmar ou, então, a ficcionalidade de Tsípkin ao colocar Anna no ambiente do cassino em Baden-Baden, o que não era permitido por Dostoiévski), do perder e do ganhar pouco do jogador Dostoiévski, das penhoras de bens pessoais, dos seguidos pedidos de perdão à esposa, do retorno à roleta, etc. Infelizmente, a tradução dessas memórias no Brasil está esgotada. Meu marido Dostoiévski (1911-1916) sai, em 1999, pela editora Mauad, R.J., com tradução direta do russo por Zoia Ribeiro Prestes. 


Algumas associações. 
Embora com obras a partir de 1940, José Saramago surpreende seus leitores com um estilo ininterrupto entrelaçado por discursos em frases diversificadas na pontuação, evitando o excesso de ponto final. Tsípkin não leu Saramago, nem tampouco Raduan Nassar (1935), em Um copo de cólera, de 1978, numa arrebatada narração apocalíptica do discurso entre o casal protagonista. Graciliano Ramos (1892-1953) não faz uso, em Angústia (1936), da divisão por capítulos, tornando o discurso de Luís da Silva vertiginoso e acelerado nas declarações sociais e em seu recalque pessoal. Tsípkin talvez não tenha lido Graciliano Ramos, embora Tsípkin nos deixa a possibilidade de entendermos a sua narrativa alucinante em Verão em Baden-Baden a partir dos delírios alucinantes, ininterruptos e “de um fôlego só” dos sonhos e divagações de diversos personagens de Fiódor Dostoiévski sem divisar em capítulos sua obra. Graciliano Ramos e Dyonélio Machado (1895-1985), o autor de Os ratos (1935), leram Dostoiévski. Na tradução de Fátima Bianchi (página 125, Companhia das Letras), como Tsípkin, sem ter lido Dyonélio Machado, se aproxima da psicologia do devedor, na busca de recursos para minimizar seu sadomasoquismo sofrimento: 

... – depois de perder o dinheiro obtido com o broche e os brincos, ele pegou a mantilha de renda dela – não queriam aceitá-la em lugar nenhum – primeiro ele a levou a um joalheiro, mas este lhe disse que só recebia objetos de ouro e indicou um tal Weissmann, mas a porta de Weissmann estava fechada e Fédia deu um pulo até em casa, chegando todo ensopado de chuva e de suor, porque, apesar do reinício da temporada de sol, às vezes ainda sucedia de cair alguma pancada de chuva, refrescando as ruas e as árvores – depois do almoço Fédia tomou a dar uma corrida até o Weissmann, mas ele disse que não aceitava esse tipo de coisa e lhe deu o endereço de uma Mme Etienne – a loja dela ficava em uma praça que Fédia, apesar de já ter estado lá antes, não conseguia encontrar de jeito nenhum, por algum motivo caía sempre em uma travessa onde havia uma sauna – por fim acabou saindo da praça – o papel em que a mantilha estava embrulhada se desmanchou todo por causa da chuva e ele apertava o pacote com o cotovelo, para que a mantilha não escapasse dali – não encontrou Mme Etienne, mas uma senhora que saiu de uma porta que levava à loja disse-lhe ser sua irmã e que ele deveria voltar no dia seguinte – (...). 


Alguns aspectos podem ser destacados da leitura deste fragmento: 1. “ele” é Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski e “dela” é Anna Grigorievna Dostoiévskaia; 2. O que consta entre os travessões dá a dimensão do banal cotidiano que leva à psicologia do momento da situação vivida; 3. a busca desesperada é similar à de Naziazeno Barbosa de Dyonélio Machado (também médico) quando da busca por um penhor da rua da Ladeira (General Câmara) por parte dos “conhecidos” de Naziazeno: Duque, Alcides e Anacleto Mondina, para que possam tirar deste penhor o anel penhorado e conseguir valor maior em outro penhor do centro da cidade (o enredo em seu conjunto sugere Porto Alegre); 4. Um pouco mais distante, mas decorrente dessa procura desenfreada, Fédia investe constantemente no jogo da roleta; Naziazeno joga, timidamente, pois vez que outra, na roleta de um estabelecimento do centro da cidade da virada do final dos anos 1920 para o início dos anos de 1930. Os ratos e Angústia são romances dostoievskianos da literatura brasileira. Luís da Silva procura, febrilmente, apagar os vestígios em sua roupa que o venham denunciar como assassino de Julião Tavares, assim como Raskólnikov em Crime e castigo
Mas a principal associação está na própria obra de Dostoiévski, O duplo (1846): Yákov Pietróvitch Golyádkin sofre de ambição e a despreza como convivência social. Surge, então, o seu duplo, Golyádkin Segundo, desejando a ascensão social evitada por Golyádkin Primeiro. Este duplo jogo, “aceitar é negar e negar é aceitar”, encontramos em Verão em Baden-Baden, se considerarmos a procura e a pergunta de Tsípkin sobre Dostoiévski: por que os mais representativos pesquisadores da vida deste autor que trata mal os judeus em suas obras são judeus-russos? Tsípkin caça Dostoiévski; este é feito caçador de Tsípkin. 


O resgate da cultura literária russa. 
Enumerando títulos de obras, respectivos escritores, editores e artista plástico, fica algo enfadonho e, em princípio, sem propósito. Entretanto, Tsípkin (narrador-leitor) com habilidade desenvolve a cultura literária russa – e a metaliteratura – com precisão contextualizada ao indicar a “bibliografia” russa interligada ao enredo. Eis as referências trabalhadas: títulos de obras – Crime e castigo, Diário de Anna, Os demônios, Memórias do subsolo (epígrafe de Verão em Baden-Baden), Humilhados e ofendidos, Noites brancas, Notas de inverno sobre impressões de verão, Lolita, Pobre gente, O duplo, Oblomov, A fumaça, O eterno marido, Os fantasmas, Os irmãos Karamázov, O grande Inquisidor, O idiota, Orelhas em nó, Recordações da casa dos mortos e Um jogador; autores – Saltikóv-Shedrin, Tolstói, Nabokov, Nekrássov, Turguêniev, Bielinski, Gontcharóv, Panêiev, Puschkin, Marina Tsvietáieva, Bella Akhmadullina, Búnin e Anna Grigorievna Dostoiévskaia; editores –Stellóvski, Katkóv e Suvórin; pintor de Dostoiévski – Krámskoi


Passagens encantadoras e tensas em Verão em Baden-Baden
1. O psicologismo do jogador e suas técnicas (falhas) no jogo de roleta e o comportamento de Dostoiévski depois do jogo; 2. o nadar do casal Dostoiévski; 3. o ataque epilético; 4. a veneração por Puschkin; 5. as ironias para Puschkin e Dostoiévski; 6. os judeus segundo Dostoiévski; 7. a descrição da Avenida Niévski; 8. a visita de Tsípkin ao Museu Dostoiévski – interna e externamente; 9. a morte de Dostoiévski; etc. 


O fim da viagem de Tsípkin. 
Com a chegada de Tsípkin a Leningrado, em casa de uma amiga de sua mãe (Guília, judia-russa cuja vida é resultado também do período soviético), este lê Diário de um escritor (1873 – 1878), de Dostoiévski. Destes artigos dostoievskianos, destaque por parte do autor de Verão em Baden-Baden para o artigo A questão judaica. Da busca de si próprio (de Tsípkin) no autor de O duplo, ou seja, da paixão por quem não tinha consideração aos judeus, surge a sugestão de passagens complicadas da história da Rússia Soviética: a Revolução Bolchevique, o Stalinismo e o antissemitismo. 


Leonid Tsípkin
(...) – o quê, propriamente, eu vim fazer aqui? – por que é que me sentia tão estranhamente atraído e seduzido pela vida desse homem que desprezava a mim (“é evidente”, “é sabido”, como ele gostava de falar) e aos meus semelhantes?
(tradução de Fátima Bianchi; Companhia das Letras). 


Um lamento. 
Interessante será a descoberta de um Diário de Leonid Tsípkin, homem que precisou suportar Stálin e Leonid Brejniev.


quinta-feira, 2 de maio de 2013

Assassinato, conto de Mikhaíl P. Artsibáshchev



    Este conto que aqui apresento no Fôlego Literário, Assassinato, de Mikhaíl Pietróvitch Artsibáshchev, traduzi no ano de 2006 para a Editora Leitura XXI aqui de Porto Alegre. Na ocasião, o pedido que me foi feito era para o volume 5 da coleção Leitura Jovem da editora, volume intitulado Contos Aterrorizantes, que reúne também autores como Edgar Allan Poe, Ambrose Bierce, Guy de Maupassant, Villiers de L’Isle-Adam, W.W.Jacobs, Horacio Quiroga e Thomas Hood, além do conto abaixo reproduzido de Mikhaíl Artsibáshchev. Este título ainda consta para venda na referida editora. 



MIKHAÍL PIETRÓVITCH ARTSIBÁSHCHEV


Autor pouco conhecido no Brasil e em boa parte dos países ocidentais, Mikhaíl Artsibáshchev nasce na Rússia, em 1878, e morre em 1927. Depois de 1917, sem compreender os rumos da Revolução, emigra para o estrangeiro, declarando-se inimigo dos bolcheviques. Iniciando sua carreira literária nos primeiros anos do século XX, Artsibáshchev recebe influência de Fiódor Dostoiévski e dos escritores da chamada primeira geração de simbolistas russos. Após publicar sua novela mais importante, Sanin, um texto bastante ousado para a época (tendo como temas a prática do amor livre de inibições e a sujeição das mulheres às regras patriarcais), Artsibáshchev investe numa linha mais pessimista e sombria, como são exemplos as novelas curtas O tenente Golobov e O limite. Seus temas se voltam para a deterioração das relações humanas, a ponto do escritor centrar seus enredos no sentimento trágico que se experimenta diante da morte. Influenciado por Nietzsche, escreve Até o último instante, novela que terá como personagem o engenheiro Naúmov (homem sombrio e de olhos selvagens), que revela o motivo pelo qual não se suicida: não é a vida que o incomoda, mas sim a humanidade inteira.
            Em Assassinato, Artsibáshchev mostra sua habilidade como contista ao contrapor a necessidade que todos têm de viver com o aparato social que legaliza a pena de morte e executa o criminoso. Um documento social, uma forte denúncia contra a corrupção de uma sociedade que caminha perdida para o fim, Assassinato consegue apavorar o leitor conforme o castigo vai progredindo até atingir seu ápice, lembrando a máxima de Dostoiévski de que até mesmo um parricida merece piedade.





ASSASSINATO

MIKHAÍL PIETRÓVITCH ARTSIBÁSHCHEV (1878-1927)

Tradução de João Armando Nicotti 

I
Muito cedo, antes mesmo de o sol nascer, todo mundo se levantou na casa, e as luzes foram acesas.
Na rua ainda reinava a escuridão, mas a proximidade do alvorecer começava a dar um tom acinzentado à negrura das trevas. Fazia frio. A luz, àquela hora, feria desagradavelmente a vista, e todos sentiam aquele acentuado mal-estar: o desgosto e o desconforto de um despertar fora do tempo.
Na sala de jantar, a senhora French tomava o café. Seu marido, o sr. French, ouvia, do quarto, enquanto se vestia, o ruído da colherinha e da xícara. Enquanto vestia a camisa de colarinho e peitilho engomados, estremeceu, devido à interrupção de seus pensamentos.
-  Tommi, o café está servido... Já são cinco horas - avisou-lhe, timidamente, sua mulher. A indisposição do homem ilustre crescia a cada momento, a ponto de se traduzir numa respiração dificultosa, em que se podiam notar seu cansaço e um agudo nervosismo.
-  Já vou, já vou!
Momentos depois, o sr. French saía para a sala de jantar vestido numa sobrecasaca. O severo traje lhe caía bem, combinava com a barba bem-feita e proeminente, dando-lhe um ar majestoso.
Sua mulher lhe dirigiu um olhar tímido e em seguida baixou os olhos, fingindo estar concentrada na tarefa de dissolver o açúcar na poção aromática.
O sr. French sentou-se. Seu mal-estar havia diminuído um pouco. Sentia, novamente, o orgulho de haver sido designado para assistir à execução de um criminoso, honra de que havia se gabado, vaidoso, perante os amigos. Parecia-lhe que tal feito lhe conferia certo caráter solene, implacável - como a Justiça -, que o elevava sobre os míseros mortais. Naturalmente, sua mulher, uma criatura frágil, estava um tanto assustada; ele, porém, era um homem acima de tais fraquezas e tinha consciência da gravidade de sua missão social.
Apesar disso, ligeiros estremecimentos percorriam seu corpo. Não por causa da temperatura, bastante baixa dentro da casa, mas pela excitação produzida por seus nervos. Procurava, em vão, controlar-se.
Enquanto tomava o café, sem saboreá-lo, e esforçando-se para se manter aprumado, sua mulher permanecia calada e evitava olhá-lo, como se estivesse enferma, o lindo rosto juvenil muito pálido. 
-  Bom, estou indo – disse o homem, tomado de seriedade, após olhar o relógio.
Levantou-se. Sua mulher se levantou também. Ambos sentiram, no fundo do coração, algo doloroso, mas simularam uma total tranquilidade.
Já no saguão, quando French estava vestindo o capote, ela disse timidamente:
-  Por que você não inventa uma desculpa? Poderia alegar uma indisposição...
French ficou ofendido, como se sua mulher o tivesse insultado.
-  Para quê? – reagiu, encolhendo os ombros -. Devo ir e irei.
-  Digo isso porque você... você... ficará impressionado...
O homem ficou ainda mais ofendido: foi ríspido com a mulher e, inclusive, segurou-a pelo braço.
-  Não é um espetáculo muito divertido – falou com frieza, contendo sua ira. – Mas, se todos se recusassem a cumprir com seu triste dever, os criminosos estariam livres para cometer suas atrocidades. Das duas uma: ou somos cidadãos que zelam pela segurança da sociedade, ou somos uns covardes!
E acrescentou ainda outras frases não menos pomposas.
À medida que falava, sentia como se um peso lhe fosse sendo tirado das costas.
“Com efeito” – pensou, terminando seu breve discurso, satisfeito como se acabasse de encontrar a razão nova e poderosa -, “cumpro um dever social!”.
E, novamente, considerou-se uma espécie de herói chamado a cumprir uma missão para a qual se necessitava um temperamento extraordinário.
-  É verdade, é um triste dever – suspirou a senhora French, que o havia escutado movendo afirmativamente a cabeça.
Quando seu marido já estava abrindo a porta, recordou-se de que naquela noite deviam ir à ópera e de que se tratava de uma “sessão única”.
-  Queres desistir do teatro? – ela perguntou.
-  Por quê? Antes pelo contrário...
-  É verdade... Assim você se distrai um pouco.
Ambos suspiraram aliviados.
Ela fechou a porta e voltou pensativa à sala de jantar.


II

Amanhecia. Desprendia-se do céu cinzento uma sutil umidade. As calçadas, os postes da rua, as paredes, as vitrines das lojas, tudo estava molhado.
A vida cotidiana iniciava. Gente recém-acordada e ainda sonolenta se dirigia apressada, tiritando, às estações do trem e às paradas de ônibus. As portas das lojas começavam a se abrir.
French tomou um ônibus, que se punha em marcha com grande barulho de ferros e vidros. Diante dos seus olhos desfilavam casas, muitas das quais com as janelas ainda fechadas. Grande parte da população continuava dormindo. A grande cidade, apesar dos estridentes apitos das fábricas, do ruído do trânsito e do som de numerosas vozes humanas, parecia semimorta.
Diante de French sentaram-se alguns operários e uma moça sonolenta. O grave homem estava completamente tranquilo; seu abatimento moral havia desaparecido. Observava com serenidade os demais passageiros. Nem suspeitavam de que viajava entre eles um dos doze jurados que, em nome da lei, deveria assistir à execução do célebre réu cujo crime terrível havia causado tanta comoção.
Sentia-se novamente investido de uma certa majestade soturna.
“Como me olhariam se soubessem quem sou!”, pensou.
Naquela tarde contaria, pateticamente, todos os detalhes da execução, e seus ouvintes lhe escutariam boquiabertos e horrorizados.
A moça sonolenta – que era muito linda – despertava-lhe um desejo sensual. Seus olhos adormecidos faziam-lhe pensar em um leito morno, cheirando a mulher, como o que acabara de deixar. Os cabelos crespos da passageira, seu peito escultural, marcando o tecido da blusa, davam a French um delicioso prazer visual. No entanto, ele não se esquecia, em nenhum momento, do objetivo pelo qual havia madrugado, o real objetivo daquela viagem, muito embora isso não lhe diminuísse a satisfação que sentia ao olhar a moça. Ah, se ela soubesse que ele era um homem arrojado, um homem valoroso que iria assistir, dentro de instantes, a uma execução, na certa o admiraria.
O ônibus parou. French sentiu uma súbita e aguda frieza no coração e deu um suspiro profundo. Teve que fazer um esforço para se levantar. Gostaria que faltasse um minuto que fosse para chegar. A proximidade do grande horror lhe provocava tremores.
Retirando forças da fraqueza, saiu, depois de olhar uma vez mais os olhos sonolentos da linda passageira.


III
-  São cinco para as seis – disse o fiscal, levantando-se.
Os doze jurados também se levantaram, seguidos do doutor e do oficial de polícia. Todos os rostos estavam pálidos, porém, as sobrecapas negras e os chapéus de copa davam ao grupo um ar de grave e serena solenidade.
French, que ocupava o terceiro lugar da fila, começou a andar com o passo também grave, sereno, solene, como se estivesse numa procissão.
Os corredores da prisão se encontravam desertos, e os passos dos quinze homens, abaixo das abóbodas, soavam claros e secos.
A fria luz do sol nascente penetrava através das janelas gradeadas da sala onde teria lugar a execução. Havia quinze cadeiras negras encostadas junto às paredes cinzas.
French ocupou a sua, trêmulo, e se esforçou para ocultar a emoção que, desde sua chegada à prisão, ia-se apoderando de sua alma.
No meio da sala havia uma cadeira de braços, equipada em diversos pontos por fortes correias. No alto do respaldo havia uma pequena estrutura metálica para a cabeça. O móvel repousava sobre uma plataforma de vidro e parecia destinado a operações cirúrgicas.
“Na realidade” – disse French a si mesmo -, “trata-se de uma operação: a amputação de um membro doente da sociedade.”
Subitamente, a porta se abriu e se pôde ouvir o som de passos no corredor. Todos se levantaram. French, sem saber ao certo por que os outros se levantavam, apenas os imitou.
Ao cabo de um segundo, terrivelmente longo, apareceram no umbral dois policiais, que se detiveram em ambos os lados da porta. E ele apareceu.
Todos os olhares se cravaram nele. Se, em vez de um homem, os quinze presentes tivessem visto um fantasma, não teriam ficado mais assombrados.
Era um homem de estatura elevada, cujo traje de algodão branco, contrastando com as sobrecasacas negras dos presentes, fazia-lhe parecer ainda mais alto.
A partir daquele momento, French não tirou mais os olhos dele. Uma curiosidade aguda e doentia endereçava seu olhar àquele rosto – um rosto vulgar, de pelos ruivos -. Ao olhá-lo, invadiu-lhe uma sensação desagradável, da qual, contudo, não conseguia se livrar. Oh, a atração irresistível daquele rosto ainda vivo, que dentro de instantes seria o de um morto!
O réu entrou com a cabeça alta, andando a passos largos, olhando tudo a seu redor. Perto da porta, deteve-se por um momento, como se vacilasse.
French, nervoso, o coração oprimido, perguntava-se: “O que vai acontecer, meu Deus?” Porém, não ocorreu nada de extraordinário: o réu, dominando-se, andou mais alguns passos. Seus olhos observavam de um modo estranho os jurados, dos quais se diria que esperava algo. Quando seu olhar cruzou com o de French, o grave homem pareceu ver nos olhos do criminoso uma expressão de fria e amarga reprovação. Acabou por baixar os seus, o sangue enregelado nas veias: “Eu votei pela pena de morte!”, pensou.
Cumpridas todas as formalidades, só faltava proceder à execução.
E o mesmo pensamento perturbou a consciência daqueles que assistiam, em nome da lei, ao horrível espetáculo. Era um absurdo que uma dúzia e meia de cavalheiros, de sobrecasacas e chapéus de copa, assassinassem aquele desgraçado.
Não aconteceria nada que impedisse o assassinato?...
Não, não aconteceu...
Os fatos que precederam ao ato da execução foram de uma absoluta e terrível normalidade.
Dois auxiliares do carrasco agarraram, com grande cortesia, cada um dos braços do réu, cercaram-no e o fizeram sentar. Ele se sentou docilmente, recostou-se à vontade, como quem se dispõe a assistir a uma peça de teatro, e esperou... Os auxiliares se inclinaram sobre ele e começaram a amarrá-lo, com as correias de que estava provida a cadeira elétrica, nos braços e nas pernas.
Quando os dois homens terminaram sua tarefa, separaram-se. French viu o réu diminuído e transformado numa espécie de saco envolto numa rede de cordas apertadas. O criminoso, ainda que quisesse, não poderia mover a cabeça. E havia em seus olhos uma expressão ávida, ansiosa, como se buscasse algo, como se quisesse  gravar na memória tudo o que via.
Momentos depois, duas mãos ligeiras e hábeis, com luvas negras, levantaram, por trás da cadeira, um capacete metálico, que foi colocado sobre a cabeça do réu. Um olhar cheio de horror, mais breve que um relâmpago, recaíra sobre os olhos de French, fazendo-o estremecer: era o último olhar daquele homem.
O réu havia desaparecido. Na cadeira estava sentado um ser estranho, fantástico, uma espécie de embarcação prestes a afundar no mar. O estranho ser, em sua imobilidade espantosa, já parecia inanimado.
French se deu conta de que se aproximava o último momento, de que em seguida iria ocorrer algo horrível, abominável, repugnante... Fechou os olhos. Sua emoção era tão intensa que temeu perder os sentidos.
Escutou-se um ruído seco; alguém pronunciou, em voz alta, duas ou três palavras, e reinou novamente o silêncio.
“Acabou!”, pensou French, abrindo os olhos com uma curiosidade cheia de receio.
O corpo do réu, amarrado, seguia na cadeira. O carrasco e seus ajudantes tinham se afastado do móvel.
“Acabou!”, voltou a dizer French para si mesmo.
No entanto, viu, de repente, horrorizado, que o corpo do réu era sacudido por algo que lembrava um ataque de epilepsia. Percebiam-se os desesperados esforços do infeliz dentro da apertada rede de amarras.
- Basta! – ordenou o médico.
Detrás de um biombo que havia num dos cantos da sala soou um leve estalido metálico.
Os estremecimentos e os esforços do réu continuaram.
Uma grande emoção tomou conta de todos.  O fiscal, o médico e a maioria dos jurados se levantaram. Ouviram-se gritos e perguntas entrecortadas.
-  A corrente! A corrente elétrica! – ordenou o fiscal com voz sufocada.
O choque metálico se repetiu. Um estremecimento horrível sacudiu o corpo do réu.
O silêncio foi rompido pelo estalar de uma das correias que se rompeu, um estranho ruído...
 French sentiu que as forças o abandonavam.
O cheiro de cabelos queimados se espalhava pelo ambiente.
-  Basta!
O corpo já não estremecia. A figura branca, fantástica, estava imóvel.
O doutor aproximou-se da cadeira e inclinou-se sobre ela.
-  Agora sim, tudo deve estar acabado!”, pensou French. “Que horror!”
O doutor, porém, deu um salto e gritou aterrorizado:
-  Ele ainda está vivo! Corrente! Mais corrente!
E se afastou com rapidez.
-  Não é possível! – contestou alguém.
-  Digo a você que ele está vivo! Corrente! Corrente!
O que ocorreu no momento seguinte foi tão horroroso que French esteve a ponto de enlouquecer: no alto do capacete apareceu uma chama azul, e pela abertura saía uma fumaça tênue, cheirando a carne queimada. French sentiu pavor, angústia, náuseas, e fechou novamente os olhos.
Outro jurado o puxou pela manga.
Tudo havia terminado.
Agora, os jurados tinham de assinar a ata da execução daquele homem, condenado à morte por haver assassinado o próprio pai.
French se levantou, sem entender perfeitamente do que se tratava, e olhou com horror a fantástica figura branca de cabeça metálica, já definitivamente imóvel.
Assinada a ata, ele foi para casa. Parecia um sonâmbulo. Movia-se como um autônomo. Doía-lhe todo o corpo. Uma recordação pavorosa o atormentava, mas não era a lembrança do fato em si, e sim uma terrível impressão. O que era, afinal, Deus do céu, que havia acontecido?... Acabava de assistir a um assassinato, a um assassinato legal, realizado dentro da ordem e da lei e de todos os preceitos jurídicos; havia sido um dos assassinos, havia contribuído com aquele crime odioso; aquilo era atroz, inconcebível, mas o que lhe havia produzido a impressão cuja lembrança o perseguia, torturante, não era aquilo em seu conjunto, senão um detalhe...
Aquele detalhe, que não conseguiu apagar de sua memória, nem naquele momento, nem nunca mais: o último olhar do réu, a expressão daqueles olhos, muito abertos, que clamavam por piedade, por ajuda, tingindo suas pupilas de um terror imenso e infinito.
Diante daquele olhar, French não havia se levantado, não havia sequer se movido de seu lugar.
Como os demais jurados, havia cumprido seu papel de espectador de um crime!