sábado, 12 de outubro de 2013

Os demônios - F. M. Dostoiévski

OS   DEMÔNIOS (1871)

(BIÊSSI /Бесы)



Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski


  Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski acompanha intensamente, em Genebra, a atividade política de Mikhail Aleksandróvitch Bakúnin (1814-1876) a partir da integração entre imigrantes revolucionários russos. Nietcháiev é o escolhido para representar, na Rússia, o pensamento de Bakúnin, com direito à documentação em seu nome assinado por Bakúnin para representá-lo em seus interesses políticos num Comitê Geral. Usando deste poder, Nietcháiev abusa de suas atribuições, terminando por assassinar o estudante da Academia de Agricultura Ivanov, por este discordar e não querer mais fazer parte dos quintetos e da organização revolucionária clandestina. Spítkin, irmão de Anna Grigórievna Dostoiévskaia, segunda esposa de Dostoiévski e que fora sua estenógrafa, também fazia parte da organização revolucionária. Está instalada, então, a Justiça Sumária do Povo. A partir destes pressupostos e do assassinato de Ivanov em 21 de novembro de 1869, Dostoiévski deseja dar uma resposta aos revolucionários russos. Em carta a Máikov, datada de 24 de fevereiro de 1870, Dostoiévski afirma, impressionado pela morte do estudante Ivanov, estar elaborando uma história mais próxima da realidade do que a construída em Crime e castigo, que muito promete, pois causará um grande efeito no público leitor.

  Dostoiévski interrompe projetos que vem desenvolvendo (uma novela, sobre o capitão Kartúzov; outra, A morte do poeta; e os romances O príncipe e o agiota, Inveja e A vida de um grande pecador) para iniciar freneticamente o texto que, atualmente, lemos com ardor e paixão, pois se as questões políticas e filosóficas de seus personagens aparentemente pouca aproximação podem ter com nossa atualidade, ao enfrentarmos o texto e o subtexto de Os demônios ficamos perplexos por, ao menos, dois motivos estarrecedores: a sociedade em que vivemos se articula de maneira não tão distante daqueles tempos anárquicos e revolucionários (se observarmos a paralisia e o frenético paradoxais de conceitos), como também empresta a nossa imaginação os conluios sociais para denegrir ou enaltecer indivíduos capazes de investir na engrenagem pessoal e coletiva em busca de um proveito próprio.

  Ao iniciarmos a leitura deste romance, que aparece depois das grandiosas obras Memórias do subsolo (1864), Crime e castigo (1866) e O idiota (1868), percebemos a habilidade de Dostoiévski ao manipular conceitos, personagens e ideologia num avanço nervoso e desigual na literatura do século XIX.

  As primeiras anotações deste trabalho são encontradas em 1870, em 16 de fevereiro, em seu caderno de notas com um plano detalhado sobre Os demônios já com a maioria dos personagens confeccionados assim como diversos elementos de seu argumento. Em janeiro de 1871, sai Os demônios, em suas Partes I e II, no Mensageiro Russo (Rússkii Viéstnik) nos números I, II, IV, VII, IX, X e XI. A publicação é interrompida em novembro. O motivo da paralisação dá-se por um capítulo escrito e não aprovado pelo redator-chefe do Mensageiro Russo, Mikhail Katkóv. Este capítulo, conhecido como “A confissão de Stavróguin”, termina por sair em separado e em fragmentos no ano de 1905 e, em 1922, completo, apesar das várias modificações propostas por Dostoiévski e graças à preservação dos manuscritos por Anna Grigórievna Dostoiévskaia. Há especulações e dúvidas dos reais motivos da não publicação deste capítulo: a insuportável cena realista do envolvimento covarde de Stavróguin com Matriócha – menina com 14 anos, embora Katkóv não se opôs à cena cruel entre Svidrigáilov e uma menininha em Crime e castigo;a amizade (e inimizade) de Katkóv com Bakúnin, o protótipo de Stavróguin; a repetição da violação de uma menina já encontrada em outros títulos de Dostoiévski, etc. Quando, em 1873, Dostoiévski publica por sua própria conta Os demônios, também não inclui este capítulo basicamente dialogal entre Nikolai Stavróguin e o ex-bispo Tíkhon, reforçando, quem sabe?, a ideia da não repetição da violação infantil. Para Dostoiévski, o sofrimento de uma criança não é justificável, nem tampouco, perdoável seu violador. Finalmente, sai, em 1872, em novembro/dezembro, a Terceira parte no Mensageiro Russo (XI e XII).


  O enredo de Os demônios fixa a ambientação numa província da Rússia. Nesta localidade, há nova governança com a chegada de Andriêi Antónovitch von Lembke e sua esposa Yúlia Mikháilovna em substituição a Ivan Óssipovitch, então parente de Varvara Pietrovna. Desta maneira, Dostoiévski tece, através de seu narrador Anton, comentários da vida social desta província, com suas fofocas, estranhamentos, maledicências e violência das mais variadas: assassinato, suicídio, loucura, deformação física, histeria e epilepsia. A pequenez tanto social como física da cidade é apresentada assim: “As calçadas da nossa cidade são estreitinhas, de tijolo, e assim também as pontes.”. Complementam o cenário da cidade e de suas adjacências o seguinte: o clube, a fazenda dos Stavróguin (Skvoriéchniki), o parque com sua gruta, seus três tanques e o pinheiral de Skvoriéchniki, a fábrica dos Chpigúlin, a localidade de Zariétchie (e seu incêndio), a Estrada real que passa por Skvoriéchniki a meia versta (“Na estrada real está a ideia…”; “A estrada real é algo longo, longo, do qual não se vê o fim, como se fosse a vida de um homem, como se fosse o sonho de um homem.”), as aldeias de Khátovo, de Spássov e de Ústievo. Moscou e Petersburgo são também mencionadas pelas relações que lá possuem alguns personagens (Varvara; Stiepan; Nikolai; Piotr; Lebiádkin, etc.).











A SOCIEDADE SECRETA

  A Sociedade tem ligação à Internationale. Na Rússia, é representada por Piotr Vierkhoviénski, Chátov, Kiríllov, Lebiádkin, Nikolai Stavróguin, entre outros. Cada um tem participação distinta, assim como todos devem controlar a todos, partindo do pressuposto que possam ser, todos, espiões destinados a denunciar os membros da Sociedade. Chátov ingressa, por exemplo, na Sociedade no exterior e é encarregado de uma tipografia que deverá ser entregue (papéis e o linotipo) a alguém que se apresentar como da Sociedade tempos depois. Para Chátov, ele rompe com os idiotas da Sociedade, pois é de seu direito, além de crer que a tipografia é a última exigência da Sociedade, que o liberará depois. A Sociedade não pensa desta forma e não tem a intenção de deixar Chátov ir embora. Segundo Stavróguin, a participação dele se resume da seguinte maneira: reorganizou a Sociedade segundo o novo plano desta. Assim, Nikolai não se julga seu membro, tendo, assim como Chátov (mas com direitos diferentes), o direito de deixá-la. Entretanto, a Sociedade não vê desta forma o caso de Nikolai, pois está condenado como Chátov. Para a Sociedade, tudo é pena de morte e ordens no papel, carimbadas e assinadas por três membros e meio. A organização russa, no caso, é obscura “e quase sempre tão inesperada que aqui realmente se pode experimentar tudo.”. Para a Sociedade, Chátov é um espião e, por saber demais sobre ela, pode denunciá-la amanhã ou depois.

  O problema é, entretanto, que a maioria destas ideias da Sociedade são protocoladas com a liderança de Piotr Vierkhoviénski, protagonista que induz, conduz e confunde os demais membros da Sociedade com suas omissões, suas mentiras e encaminhamentos do destino dos membros de seu quinteto, embora dependente de Stavróguin. Havendo um comitê central, Piotr Vierkhoviénski é o representante deste comitê na província e, dele, o programa de ação deve ser aplicado: denúncias sistemáticas para desacreditar o poder local (no caso, a excessiva aproximação de Piotr em casa do governador da província Lembke e, principalmente, com a esposa deste Yúlia Mikháilovna), geral perplexidade nos povoados (exemplo ratificado com o baile promovido por Yúlia), engendrar o cinismo e o escândalo (exemplo da fuga de Lizavieta com Nikolai), total descrença no que quer que exista (discurso do professor substituto de Stiepan no baile de Yúlia, personagem inspirado no professor de história da Rússia, na Universidade de São Petersburgo, Platon Vassílievitch Pávlov) e lançar mão de incêndios como meio predominantemente popular (os operários da fábrica dos Chpigúlin e o incêndio em Zariétchie). Em determinado momento do enredo, Piotr acusa o quinteto subordinado a sua pessoa de insubordinação. Alerta que o quinteto será preso, pois já é conhecido também o segredo da rede. Houve delação de Chátov, mente, embora crê que Chátov fará a denúncia mais cedo ou mais tarde. Apresenta, então, seu plano: atrair Chátov ao local aonde está enterrado o linotipo secreto (máquina de compor textos em blocos de linha) e lá decidir tudo: matá-lo. Os revolucionários sabem que “caíram como moscas numa teia de aranha”, pois Piotr está fora dos trilhos.

  A resposta de Dostoiévski é rápida aos niilistas, aos revolucionários e aos socialistas: “o ateísmo e o socialismo são estranhos ao povo russo e até incompatíveis com sua natureza”. Segundo Dostoiévski, uma sociedade sem Deus apoiada unicamente na ciência e na razão não estabelece relações sólidas, pois é inútil. A dicotomia torna-se presente e cresce em sua ideia central: os conceitos políticos, ideológicos e religiosos de Piotr Vierkhoviénski são rechaçados pela ideia russa de Chátov, enriquecida pela universalidade de Tíkhon. Se Piotr “vence” Chátov, o mesmo não acontece com Stavróguin, o ocidentalista e niilista rico e inteligente, “derrotado” por Tíkhon, o ex-bispo profético: Stavróguin enforca-se, destruindo as suas manifestações extremas da paixão e do prazer que o tornaram vazio interiormente. Ao perder seu equilíbrio interior desempenhado ao longo do enredo de Os demônios, Stavróguin sai de cena para não se denunciar através de sua confissão da “vida de um grande pecador”. Está morto o ocidentalismo em relação à ortodoxia russa. O diálogo entre Tíkhon e Stavróguin antecipa as discussões religiosas e filosóficas entre Ivan e Aliocha em Os irmãos Karamázov, assim como o enforcamento de Stavróguin corresponde ao tiro dado por Svidrigáilov em si mesmo, pois não há perdão para quem causa sofrimento nas crianças.






terça-feira, 8 de outubro de 2013

O Idiota - F. M. Dostoiévski

O IDIOTA(1868)

(IDIOT /Идиот)


Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski





   Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski redige O idiota no estrangeiro, iniciando em Genebra e concluindo seu trabalho em Florença. Durante este período na Europa, com sua segunda esposa Anna Grigorievna Dostoiévskaia, a vida do casal continua turbulenta, embora sem as pressões dos credores caso estivessem na Rússia. Entretanto, enquanto trabalha em seu novo romance, Dostoiévski se vê obrigado a se mudar cinco vezes neste período na Europa. Uma tragédia também se abate no casal, porque sua primeira filha morre pouco tempo depois de nascer. Assim, a produção de O idiota dá-se em meio de turbulências.



   As primeiras anotações para O idiota aparecem em setembro de 1867. Neste mesmo ano, em novembro ou dezembro, Dostoiévski destrói a primeira redação de O idiota e idealiza novo projeto para o futuro romance. Dostoiévski aprecia Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, como também sabe que o público leitor se simpatiza com o protagonista do escritor espanhol. No Capítulo I da Segunda Parte, Aglaia guarda um bilhete enviado por Míchkin dentro de um volume de Dom Quixote de La Mancha.Depois vê qual o livro escolhido e gargalha sem saber por quê. Dostoiévski tem consciência que seu Míchkin deve ser diferente de Dom Quixote, embora em seu primeiro esboço seu futuro personagem deva preencher algo de bom que carece na sociedade moderna. Para fugir do cômico de Cervantes, a elaboração de seu Míchkin deve se aprofundar não apenas na diferença que ele é em relação ao contexto em que vive, mas ir além em suas intenções ao compreender o sofrimento humano. Ao escolher, por exemplo, por Nastácia Fílippovna, Míchkin opta por este sofrimento; Dostoiévski opta, ao escolher por um tipo como Míchkin, por um personagem disposto a sacrificar sua vida pela vida do outro, numa espécie de ressurreição proposta para Raskólnikov em Crime e castigo. Outro aspecto interessante é a maneira como Míchkin entende a vida promíscua de Nastácia Fílippovna, procurando sacrificar a sua para salvá-la; Raskólnikov, embora só vá compreender no final da trama de Crime e castigo seu amor por Sônia Semeónovna Marmieládova, se ajoelha frente à moça por estar frente ao sofrimento humano. Sim, Míchkin não é Raskólnikov, mas Raskólnikov pode ser Míchkin em sua nova vida depois da pena na Sibéria. Em dezembro de 1867, então, Dostoiévski inicia a redação definitiva de O idiota em Genebra. No ano seguinte, em janeiro de 1868, começa a publicação de seu novo romance nos números I, II, IV - XII no Rúski viéstnik. Finalmente, em 1869, em janeiro, em Florença, Dostoiévski conclui O idiota. A primeira e única edição em vida do autor sai em dois volumes em São Petersburgo no ano de 1874. Há pequenas modificações feitas pelo autor nos últimos quatro capítulos da obra daquela primeira versão no Rúski viéstnik.

   Dostoiévski prima pela dicotomia entre dois grupos de personagens em O idiota: os de caráter social e os de caráter metafísico. Os primeiros são os ditos vulgares e comuns, envolvidos em questões secundárias e de relacionamento mundano. Vê-se, por exemplo, o que o narrador desenvolve no Capítulo 1 da Quarta Parte de O idiota: há pessoas “comuns” ou “ordinárias”, mas há, também, diferenças entre estas, pois há as “limitadas” e as bem “mais inteligentes”. As limitadas são felizes por natureza; as “bem mais inteligentes”, mais infelizes. É o caso do personagem Gavrila Ardaliónovitch Ívolguin (Gánia), “contagiado pelo desejo de originalidade”, pela “falta de talento”, por seus “desejos impetuosos e invejosos”, por seus “nervos irritados”, pelo “ódio que tem da pobreza e da decadência de sua família” e por acreditar que a conquista de tudo passa pelo dinheiro. A contradição deste personagem é evidente, por isso humana, pois vive às custas do cunhado (Ptítzin) e, em determinado momento, se arrepende de ter devolvido – via Míchkin – o dinheiro “doado” por Nastácia Fílippovna. Este dinheiro, cabe salientar, é resultado da loucura apaixonada de Rogójin para conquistar Nastácia. No dia do aniversário de Nastácia, ela recebe um pacote com enorme quantia de dinheiro. Para provocar e humilhar seu suposto “noivo” Gavrila, joga o pacote contendo 100 mil rublos na lareira. Gánia fica a observar o pacote queimar, mas se contém e não pega, com certa dignidade, o pacote. Por fim, desmaia. O pacote é retirado da lareira apenas chamuscado. A luta interior de Gavrila é digna e, seu desmaio, a metáfora que reage ao materialismo iminente em sua proposta de vida.

   Os outros personagens, aqueles de caráter metafísico, personificados em três protagonistas (Liev Nikoláievitch Míchkin, Parfen Semeónovitch Rogójin e Nastácia Filíppovna Barachkova), distendem-se em preocupações mais profundas e com consequências principais, pois filosóficas. Entretanto, no decorrer da leitura de O idiota, estes últimos personagens terminam por se envolver nos problemas sociais e mundanos que estão às suas voltas, salientando ainda mais em suas personalidades a tensão em que vivem. Nas convivências estabelecidas entre si, estes três personagens principais percorrem um trajeto similar instaurando em suas performances de caráter o sombrio assustador de um destino inexorável, de um final que se torna cíclico da primeira à ultima parte do romance. Suas estranhezas são salientadas e diluídas na convivência com os personagens sociais, atendendo ao apelo da trama: o suspense, o minúsculo, o diálogo, a reflexão e as atitudes inconsequentes, pois apaixonadas.

   Para Dostoiévski, o essencial é saber como o homem deve ser em sua existência e, não apenas, como ele se apresenta em sociedade e em suas relações pessoais. Este “ir além” dostoievskiano corrobora em seus personagens a diferença dos tipos realistas do século XIX, porque a base da construção destes passa também a ser filosófica.

   As relações de Liev Nikoláievitch Míchkin, a cada momento da narrativa, se aprofundam, seja com o cotidiano mundano e cheio de mesquinharias e intrigas triviais, seja com dois personagens que se tocam para tocarem no príncipe Míchkin. Se avaliado o estreitamento entre Míchkin e Nastácia Filíppova e Rogójin, percebemos o inexorável de suas uniões e desuniões ao longo da história de Dostoiévski. Míchkin é um homem dotado de bondade e de simplicidade, agravantes em seu convívio com a maioria dos personagens. Entretanto, Dostoiévski faz um duplo interessante nos personagens Míchkin e Rogójin. Rogójin, no início da narrativa, gosta de Míchkin, apontando a este como o vê: um iuródiv, ou seja, uma mescla de tolo, mendigo bitolado e clarividente. Míchkin “vê” os outros de modo diferente, “vê” também vultos e olhares que o acompanham ou que o observam no meio de multidões; Míchkin, o Cristo simbolizado por Dostoiévski, tem uma sensibilidade destacada em nível dos demais homens. Ao conversar com os demais personagens, o príncipe, antecipadamente, já sabe o rumo que a conversa tomará, embora não consiga, racionalmente, acompanhar a razão vilipendiada dos interesses e das relações sociais de seus pares. Todos aqueles que convivem com Míchkin terminam por gostar dele ao seu modo: irritados, ofendidos, humilhados, desarmados, etc. Chegam, muitos destes personagens, a externar o que sentem a Míchkin, seja o ofendendo ou reconhecendo sua pureza e franqueza. Míckhin sofre, entretanto, ao se deparar com um mundo convencionalmente egoísta, perdulário ao dinheiro e às relações mesquinhas e parasitárias. Se Míchkin se aproxima de Rogójin e de Nastácia é porque estes precisam mais do que qualquer outro personagem de O idiota, pois, estando mal, sofrem algo que extrapola a mediocridade do mundo. A punição a estes três personagens é o tripé de um mundo metafísico pressionado pelo amor, pelo ódio, pela própria existência. O existir de Rogójin é amar odiando; o de Nastácia, odiar o amado e o de Míckhin, amar o seu semelhante, por isso nada ou pouco o surpreende.

   A cruz de Rogójin no peito de Míchkin é a duplicidade da cruz de Míchkin no peito de Rogíjin; a mão que acaricia a loucura de Nastácia Filíppovna, é a mesma mão que acaricia a cabeça do assassino da depravada. O que fica para Míchkin é a luminosidade maravilhosa de seus ataques epilépticos que, finalmente, se tornam sua loucura, sua idiotia e o não reconhecimento mais de quem é aquela mulher que o visita na Suíça e chora por seu parente distante: Lisavieta Iepántchina Prokófievna.



terça-feira, 1 de outubro de 2013

Crime e Castigo - Fiódor M. Dostoiévski

CRIME E CASTIGO (1866)


П р е с т у п л е́ н и е     и      н а к а з а́ н и е


(PRESTUPLENIE I NAKAZANIE) 


Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski



 


“... mas pode ser que Deus absolutamente não exista.” (de Rodion à Sônia) 

Inicialmente, “No Mensageiro Russo”, em 1866. 

Em forma de livro, em 1867 (com modificações). 

Nova edição, sem modificação, em 1870. 

Última publicação em vida do autor, com alguns reparos, em 1877.


Crime e Castigo (1866) é escrito cerca de vinte anos depois da estreia de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) na literatura russa (com Gente pobre, publicado em 1846 e escrito no ano anterior). Em Gente pobre, a dimensão do destino dos personagens Varvara e Makar é destacada na troca de cartas entre os dois. A preocupação que ambos apresentam em seus discursos é relevante na medida em que o amadurecimento do homem e do escritor Dostoiévski e de sua escrita aparecem na estrutura psicológica associada à ideológica de seus personagens. Há início, em seu primeiro romance, de uma dimensão que se tornará, com o tempo, mais profunda e audaciosa. Entretanto, desde Gente pobre até Recordações da casa dos mortos (1862), Dostoiévski vacila ainda em certo romanticismo em A senhoria (1847), Noites brancas (1848) e Niétotchka Niezvânova (1849). Mas este vacilo é mesclado com a impaciência nevrálgica de seus narradores oportunos com o que vivenciam. Memórias do subsolo inaugura, em 1864, o investimento subterrâneo das neuroses dos protagonistas confessionais de Dostoiévski. A denominada fase de maturidade do escritor russo termina com a publicação, em 1880, de Os irmãos Karamázov.

Raskólnikov, protagonista do romance Crime e castigo, é um jovem intelectualizado (estudante da faculdade de Direito de São Petersburgo que abandona o curso por questãos financeiras e tem artigo publicado sobre a psicologia do crime em revista da cidade) propenso a acreditar que a partir de um crime, ao eliminar “um princípio” e não um homem, poderá fazer ações boas. Assim, cometido o delito, vê-se despreparado e fracassado para pôr em prática sua teoria. Aniquilado também psicologicamente, percorre os labirintos de seus pensamentos, as ruas de São Petersburgo (becos, pátios abandonados, canais, pontes, prédios suspeitos, tabernas, descampados, etc.) e segue insinuações e delírios que se submete ao fazer a leitura de tudo o que o cerca impiedosa e amargamente. Desta maneira, surgem os demais personagens, servindo para que Rodion viva o seu “estado febril; delírio e semiconsciência”, enfim, seu inferno moral e subterrâneo, apesar de que para si mesmo não entenda o crime como um ato delituoso. Para Raskólnikov, os “homens extraordinários” (assim como Napoleão) diferenciam-se dos “homens ordinários”, pois estes não conseguem ultrapassar o limite estabelecido pela lei. Burlar o limite, ou seja, a lei, é possível para aquele que faz o próprio limite e que se julga diferente da massa. O fracasso de Raskólnikov é que o tortura, e, por extensão, o próprio crime é compreendido como incompleto. Ao entregar-se à polícia, também elucida o caso criminal em São Petersburgo, submete-se ao sofrimento e ratifica seu fracasso ao matar Aliena (a velha viúva usurária) e Lisavieta (irmã explorada por Aliena). No fim do romance, o sofrimento serve para sua redenção e sua ressurreição graças também à ex-prostituta Sônia na Sibéria.

A galeria de personagens em Crime e castigo confirma tipos expressivos da obra dostoievskiana como um todo: homens e mulheres que não aceitam facilmente a dimensão de seus destinos. Exemplos significativos são os de Marmieládov e a bebida; Catierina e a miserabilidade; Sônia, portadora da “carteira de identidade amarela” que sustenta a família e traz a Raskólnikov a redenção; Avdótia, irmã de Ródia, que abre mão do noivado seguro financeiramente para não ser humilhada pelo noivo Lújin, capitalista que a vê como miserável; Svidrigáilov, que procura superar-se fazendo doações de rublos e copeques para aqueles que pouco possuem; Razumíkhin e sua espontaneidade tola e eficaz; e Porfiri, torturador psicológico de Ródia com suas hipóteses acerca do crime cometido por este.


Dostoiévski acena, em Crime e castigo, com cerca de oitenta personagens, entre bêbados, criados, funcionários públicos (conselheiro titular, funcionário do ministério, conselheiro de Estado, conselheiro forense, tenente, inspetor de polícia, escriturário, general, juiz de instrução e policial); um ou outro príncipe e princesa apenas citados, patifes endinheirados, velhas usurárias, senhorias, cantores e proprietários de tabernas; mendigos, ex-estudantes, pintores e empregados do povo em geral; turba de curiosos; alguns estrangeiros (alemão, polaco e judeu), conselheiro da Corte, crianças famintas e órfãs, alfaiate, cozinheira e zeladores, desocupados em geral, médicos, padres, comerciantes, viúvas, livreiro, camponês, prostitutas, agenciadoras de meninas, pedófilo, assassinos, costureiras, moradores da comuna, entre outros.

Do quarto à cidade de Rodion Románovitch Raskólnikov

Viver o limite, ultrapassá-lo ou não, conformar-se e analisá-lo teoricamente são alguns dos recursos para os grandes temas da alma humana apresentados por Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski. Seguindo os raciocínios de um bêbado inveterado, como Semion Zakháritch Marmieládov, ou de um patife descarado, como Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov, respectivamente, nos deparamos com as conclusivas revelações:

“...porque tudo já é do conhecimento de todos e tudo o que estiver encoberto será revelado; e não é com desprezo mas com humildade que considero tudo isso.” e “...na terra da gente é melhor: aqui, ao menos a gente põe a culpa de tudo nos outros e se desculpa a si mesmo.”

Mas relembrando Rodion Románovitch Raskólnikov e seu pensamento furioso em sua “natureza morbitamente irritada”, é possível compreendê-lo ainda mais:

“Aí estão eles nesse vaivém pelas ruas, mas cada um deles é um patife e um bandido já pela própria natureza; pior ainda, é um idiota! Mas tenta alguém me evitar o exílio e todos eles ficarão loucos de nobre indignação! Oh, como eu odeio todos eles!”

São Petersburgo – é a cidade com seus “cheiros insuportáveis das tavernas”, seus “bêbados”, seu abafamento - como “um quarto sem postigos” (comparação importante com o quarto de Raskólnikov!), seu pôr-do-sol e sua influência na psicologia do protagonista (diversas vezes ao longo do romance a imagem do final do dia associa-se com a angústia delírica e soturna de Ródia). Segundo Svidrigáilov, assim ele define São Petersburgo: “cidade de semiloucos”, “tantas influências sombrias, grosseiras e estranhas sobre a alma humana”, “influências climáticas” e “centro administrativo de toda a Rússia”. Pela primeira vez na literatura russa, Petersburgo é tão reveladora de seus subterrâneos e, por extensão, das minúcias psicológicas de seus antros e de seus habitantes;

O quarto de Raskólnikov - “Gaiola minúscula, de uns seis passos de comprimento, do aspecto mais deplorável, com um papel de parede já amarelado, empoeirado e todo descolado, e tão baixa que um homem um pouquinho alto que fosse ficaria horrorizado, com a impressão permanente de que a qualquer momento bateria com a cabeça no teto.” “Era difícil chegar a maior degradação e mais desleixo”, ou “cubículo amarelo, parecido com um armário ou baú”, “Todo o quarto era de um tamanho tal que se podia abrir o trinco sem se levantar da cama.”, “Cabide de navio.” e “Quarto ruim... parece um caixão de defunto.” Segundo o próprio Raskólnikov, “eu me encafuei num canto do meu quarto como uma aranha”. Esta afirmação de Dostoiévski faz o leitor recordar a ideia de Fraz Kafka (1883-1924) em A metamorfose (1912).

As relações de Rodion são as mais diversas ao longo da narrativa de Crime e castigo. Desta forma, Dostoiévski cria relações tanto de piedade como de irritabilidade e confronto de seu jovem protagonista com os demais personagens. Conforme Rodion avança em suas intenções, suas ações o impossibilita de viver em liberdade, engessando sua capacidade de pensar, de raciocinar e, principalmente, lidar com as sensações que cria ao redor de si.


Uma obra significativa de encontros e desencontros, de arruaças sociais e emotivas que enriquecem os relacionamentos de Rodion, ao ponto de o leitor, por exemplo, sentir-se sufocado e desorientado na trajetória frenética que Rodion busca enfrentar desafiando as mais variadas formas de convívio social. Raskólnikov acaba, por via indireta, testar o seu limite com o mundo. Entre distrações de pensamento, de distratos pessoais, de esquecimentos devido ao seu estado quase vegetativo de raciocínio, até delírios febris, Rodion estabelece em seu domínio mental hipocondrias infames, dissonantes com a realidade e, sobretudo, fantasias inauditas para que aqueles que estabelecem trocas com ele se sintam um tanto confusos pelas atitudes pensadas e doentias do ex-estudante de Direito.