segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O jardim das cerejeiras - Antón P. Tchékhov

O jardim das cerejeiras 
Вишнëвый сад
(Vishnioviy sad)

Antón Pávlovitch Tchékhov
А н т о́ н    П а́ в л о в и ч    Ч е́ х о в

  Antón Pávilovitch Tchékhov produz sua última peça de teatro na virada do ano de 1903 para 1904, ano este também de sua morte. O jardim das cerejeiras desconstrói, mais uma vez no teatro tchékhoviano, as relações entre os personagens, sendo que, neste enredo, a dificuldade de comunicação entre os protagonistas é fortalecida a partir de nítidas diferenças, tanto em nível sociocultural, como também do burlesco à dramática situação dos proprietários de um jardim de cerejeiras hipotecado. A pantomima está formada pelo desconforto das situações construídas pelo passado e pelo presente dos protagonistas, assim como pela inadaptação que estes estão a viver no tempo da ação e no espaço de suas dificuldades, em especial no que se refere à família de Liuba Andrêievna Raniévskaia e de seu irmão Leonid Andreiêvitch Gaiév.

  Como deixou em depoimento, o poeta Vladímir Maiakóvski refere-se a Antón Tchékhov como o “mestre da palavra”. Deste modo, e a partir do jogo dos vocábulos, o surgimento de uma possibilidade de nuances transitam entre o farsante, o arrogante, o insistente, o inconsequente, o dramático, o pensante, o oportunista, o vitimado, enfim, nas personalidades que, juntas, se tornam desconexas em seus diálogos, comentários, atritos e intenções.

  Pode-se selecionar três tipos de personagens que ordenam a estrutura social a partir do dinheiro ou da iminente falta deste. Liuba Andrêievna e seu irmão Gaiév sustentam opiniões e ordens por disposição e suposição hierárquica do passado, pois do presente estão liquidados financeiramente. A tiracolo, surgem a filha Ânia, de 17 anos, e a filha adotiva Vária, de 24 anos, ambas de Liuba. Ânia vive na esperança de uma vida melhor ao lado de Trofímov, o “eterno estudante” e postulante a filósofo, enquanto que o trabalho de organização da casa do cerejal fica a cargo da adotiva Vária, mais governanta do que a titulada governanta Carlota Ivanóvna, embora esta mais mágica do que governanta.

  Num segundo grupo social, surgem os empreendedores financistas e um pensador de uma nova vida para a humanidade: representando os primeiros, o negociante Iermolai Alexêievitch Lopakhine e Bóris Borissovitch Simionov, o Pichtchik, proprietário de terras; o segundo é representado pelo estudante Piótr Serguêievitch Trofímov, o Pétia. Entretanto, a diferença entre Lopakhine e Pichtchik está na ordem do dinheiro, pois Iermolai é rico e compra a propriedade de Liuba em leilão, enquanto que Bóris tem a esperança que algo acontecerá para mudar a sua vida, no caso, o ocorrido acontece com a exploração que este permite a ingleses em sua fazenda. Já o “eterno estudante” filosofa para ter uma vida acima dos conceitos mundanos e na expectativa de ficar ao lado de Ânia para viver esta vida teorizada.

  Por fim, os sequazes Carlota, Epikodov, Duniacha, Firs, Iacha, criados, visitantes, chefe da estação e funcionário dos Correios. Ainda, um cão. Para cada um destes, excetuando o cão, a possibilidade de um entendimento da vida prática ou da procura de um preenchimento do sentido de viver, embora sem solução imediata e aparente em suas ações.

  Antón Tchékhov inventa, também, um vocábulo para O jardim das cerejeiras: niedotiópa. Na tradução de Millôr Fernandes (L&PM Editores), aparece como os “vale-nada”: Liuba; Gaiév; Lopakhine; Trofímov; Iacha e o vagabundo alcoolizado do Segundo Ato. Firs, no final da peça, conceitua-se também como um “vale-nada”; no início da peça, chama Duniacha de “vale-nada”. Em outras traduções, este “vale-nada” é chamado de “bando de inúteis” ou “lentos”. De qualquer modo, independente da tradução, os “vale-nada” equivalem à inoperância ou à inocuidade do personagem frente àquilo que desempenha, o desconforto de uma personalidade que pouco ou nada contribui numa sociedade cinzenta e sem sentido, obliterada pela permanência de inaptidões e atrapalhações que se alteram como dispositivos apáticos na engrenagem que gira em torno de uma propriedade falida e desejada por Lopakhine.
  O modo de pensar e a funcionalidade dos personagens que executam suas ideias e ações afinam-se conforme a necessidade daqueles justificarem suas atitudes. Liuba Andrêievna Ramiévskaia explicita suas culpas em vários momentos da peça, variando desde a morte do filho Gricha por afogamento, passando pelos gastos excessivos em Paris, em restaurante na Rússia para quem pouco ou nada soma em nível pecuniário, criando as reminiscências de suas duas uniões sentimentais fracassadas até, finalmente, chegar ao apego doentio ao seu passado que reforça sua irracionalidade ao venerar os objetos da casa (como beijar o armário e chamar uma mesinha de querida). Liuba acredita que a vida “de vocês” é “totalmente cinzenta” e o orgulho algo “místico e importante”. Ao viver e reviver o passado, perde alguns critérios do presente, como a distribuição do pouco que tem de dinheiro para, então, aceitar, de fato, a perda da casa e de seu passado. Ânia, a filha de Liuba, para compensar o dissabor sofrido pela mãe, promete plantar um outro jardim mais bonito do que o que acabam de perder. Mesmo assim, a acusação da vida cinzenta aos outros encaixa-se perfeitamente ao modo de viver de Liuba.

  O irmão de Liuba, Leonid Andreiêvitch Gaiév, segue o prumo da família e da irmã, com sobressaltos sentimentais, irracionalidades com objetos e invencionices neurastênicas para se iludir na solução do problema da hipoteca da propriedade. Gaiév chega a sugerir comemoração aos 100 anos da estante da casa, com a descoberta de uma gravação na gaveta da estante datada de 1803. Abraça e acaricia o objeto, chamando-o de “Querida e honrada estante!”. A comédia destes lances no decorrer da peça é intraduzível psicologicamente, tanto é o absurdo impetrado pelo dramaturgo. O hilário de Gaiév sustenta também seu discurso inconfiável, quando, por exemplo, garante por sua honra que a propriedade não será vendida, assim como idealiza possível empréstimo da tia-avó e de um certo general para a solução do cerejal. Seu pensamento lacônico, entretanto, aparece quando afirma que no final das contas todos morremos. No fim, com emprego em banco, acha-se financista, embora, talvez, pela preguiça, segundo Lopakhine, não se sustente na função por muito tempo.

  Ânia, filha de 17 anos de Liuba, vive na ilusão de manter viva em sua mãe a permanência do passado glorioso, embora, para ela mesma, a possibilidade de união com  Trofímov concretize uma nova vida, acima da banalidade vivida por ela mesma e por aqueles que a rodeiam. A abertura de leitura no final da peça de que uma nova vida virá é a marca rompedora da vida cinzenta e inócua vivida pelos protagonistas, apesar desta nova vida que está nos planos do casal não mostre as evidências concretas de como será enfrentado o cotidiano vindouro. De qualquer modo, a possibilidade de mudança é um alento para quem, como Ânia e Trofímov, deseja acabar com a autoglorificação. Para isso é necessário, defende o “eterno estudante”, muito trabalho e não ficar apenas no discurso, como fazem os intelectuais que terminam por se enganarem e aos outros também. Para o jovem estudante, os intelectuais russos tratam os criados como seres inferiores e o mujiques como animais selvagens. Trofímov mostra para Ânia que o cerejal deles é a Rússia inteira. A descoberta e o entusiasmo de Trofímov não é conclusivo na peça, pois a perspectiva do estudante é continuar estudando em Moscou...

  Vária, a filha adotiva de 24 anos, tem como esperança o casamento com o rico e matuto Iermolai Alexêievitch. Este escamoteia, no entanto, toda e qualquer possibilidade de realização amorosa com a trabalhadora e gerenciadora moça da propriedade do cerejal. No final da peça, a esperança é amordaçada mais uma vez, mesmo com a promessa de Lopakhine e a felicidade interesseira de Liuba. É mais fácil a moça conseguir 100 rublos e terminar seus dias no convento. Segundo Ânia e Trofímov, Vária procura obstruir o relacionamento do estudante com a filha de Liuba. Vária se romantiza como personagem vitimado pelo amor e pela dramaticidade dos suspiros e das abafadas lágrimas.

  Bóris Borissovitch Simionov, o Pichtchik, procura algum dinheiro para pagamento de suas dívidas mesmo sendo proprietário de terras. Tem a crença que as coisas mudarão, bastando paciência e tempo. De fato, consegue dinheiro com ingleses que explorarão as terras de sua fazenda por duas décadas. Carlota tem somente seus truques e mágicas para distrair sua vida patética e arruinada, pois a governanta confessa que não tem ninguém na vida para conversar e demonstra que seu passado não é diferente do que está por vir em sua vida, pois a obscuridade dos extremos de sua existência não se mostrará num passe de mágica, apesar do trocadilho. Afinal, o que ela é e o que faz é, para ela mesma, um mistério! O guarda livros Epikodov é personagem sofrível em suas atribuições, bastando tentar compreendê-lo no que diz respeito aos livros difíceis que já leu: não encontrou nenhuma explicação para viver ou para não viver, atribuindo ao inexorável destino o seu caminho marcado, pois, afinal, o destino para ele é um furacão a brincar com o barco que é a sua vida. Sabedor da incompreensão que o domina, adota e o abate, traz consigo sempre um revólver. O jovem criado oportunista tem nome e endereço: Iacha e a vontade de ser eterno criado de Liuba preferencialmente em Paris. Duniacha, a criada metida à senhora com esquecimento de como vivem os camponeses e possibilidades de desmaios que se encarrega de avisar, é apaixonada por Iacha, assim como pouco sabe sobre o seu próprio passado. No presente, vive assustadiça como uma dama!

  O pobre do Firs merece parágrafo em separado. O velho octogenário e tanto fecha a peça com a tristeza de quem fica para arrumar o teatro depois da saída de todos da peça. Literalmente trancado e esquecido na casa que será demolida, Firs tem a consciência do quanto vale e do quanto a vida passou para ele. O que fazer? Ficar imóvel, como um utensílio centenário que não compreendeu nem tampouco a abolição como a demolição de sua vida em meio aos decadentes patrões.

  Por fim, o triunfador pessoal de sua história de vida estúpida não tão diferente como a vida estúpida dos demais personagens. Para Trofímov, Lopakhine “devora tudo o que encontra pela frente, convertendo tudo em excrementos.”. Como é rico e como será milionário algum dia, Lopakhine é um mal social necessário, pois útil para definir o progresso e os investimentos capitais na Rússia dos séculos XIX e XX. O empreendedorismo de Lopakhine é a medida exata entre o aconselhamento aos proprietários falidos, às novas ideias e, por fim, o abocanhamento oportuno para provar a si mesmo e para os outros que o matuto endinheirado pode colocar com honradez os pés na casa que escravizou seu pai e seu avô naquele cerejal. A vitória pessoal de Lopakhine é a vibração de quem tem a estratégia e o dinheiro para comandar o futuro com olhos no passado socialmente humilhado. A cena de fechamento da casa por ele, para preservar os bens que ficarão em sua partida até Karkov, é metaforicamente a ironia da prisão e morte de Firs, homem que preferia o passado sem abolição para que a vida fosse mais clara em suas definições sociais entre amos e servos. Lopakhine é o ágil negociante e a ele é dado o papel principal de conduzir a dramaticidade das ações da família do jardim das cerejeiras. Estranhamente, sai dele o comentário de que há poucos honestos e decentes no mundo, mas apesar da contradição da parte de quem fala isto, aí talvez esteja mesmo a chave do enigma proposto por Antón Tchékhov: não sendo um intelectual, Lopakhine talvez não engana a si mesmo nem aos outros com seu discurso.


  O jardim das cerejeiras faz o leitor oscilar em sua leitura, ora sugerindo através da comicidade o surgimento de uma interpretação jocosa pela atitude descomprometida com o real drama de seus protagonistas (bengaladas, comentários desconexos, bilhar imaginário, balidos, etc.), ora pelos elementos dramáticos da vida acinzentada e estúpida que algumas personalidades insistem levar até as últimas consequências como se nada ou pouco lhe dissessem respeito. 

  O bufão (Gaiév), assim como a moça com seu drama (Vária), como o jovem esperançoso em mudar de vida e de conceitos (Trofímov), assim como aqueles que não conseguem se modificar por causa da inércia de suas lentidões e de suas obsessivas crenças (Gaiév e Liuba), contribuem para um desfecho sem solução, típico dos textos de Antón Pávilovitch Tchékhov. 

  Se o contista e o dramaturgo não buscaram estéticas definidas para suas obras, o mesmo não pode se dizer plenamente da obscuridade simbolista em O jardim das cerejeiras. Não que a peça se enquadre no Simbolismo, mas a nitidez do indecifrável nas intenções dos personagens – e de como e o porquê atravessam caminhos captados por suas incapacidades de formular um roteiro para suas vidas despedaçadas – sugere que há algo mais notável do que a imprecisão do pensamento humano, pois da comédia à farsa, do drama ao decadente espaço entre a mentira verdadeira e a verdade mentirosa há o atestado do engessamento de um resmungo de Firs, do choromingar e das bengaladas de Vânia, da alegria de Ânia, do estrionismo de Gaiév com seus imaginários lances de bilhar, da escandalosa ingenuidade de Liuba e, finalmente, de um “Méééééé!” repleto de idiotia do empreendedor dos futuros lotes veranistas em terras das cerejeiras.


Alguns Personagens de O jardim das cerejeiras
1. Ânia (Anitchka) – filha de Raniévskaia; tem 17 anos; ama Trofímov;
2. Carlota Ivanóvna – governanta; faz truques com cartas; criada por uma senhora alemã; não conheceu seus pais; no fim da peça, afirma precisar de emprego;
3. Duniacha – criada; sensível demais; ama Iacha; filha de Fiodor Kosoiedov;
4. Epikodov (Sêmion Panteleiêvitch) – apelido: “Vinte e duas desgraças”; rapaz sério; pede Duniacha em casamento; guarda livros; 
5. Firs – criado; tem 87 anos; morre no final da peça; fica dentro da casa, pois esquecem dele;
6. Gaiév (Leonid Andreiêvitch) – irmão de Liuba; 51 anos; preguiçoso; fala demais; consegue, no fim da peça, emprego em banco com vencimentos de seis mil rublos ao ano; julga-se, assim, um financista;
7. Iacha – criado jovem; seu desejo é morar em Paris; menospreza sua mãe; petulante e folgado;
8. Liuba (Madame Andrêievna Raniévskaia) – criatura esplêndida; simples; tem boa-vontade; proprietária do cerejal; esbanja dinheiro sem pensar no dia seguinte; apega-se à casa de seus pais e ama toda sua propriedade; mesmo mal financeiramente, não mede com exatidão suas economias; em Paris, tem relacionamento com homem que lhe passa a perna financeiramente; ela ama este homem, fruto de um segundo relacionamento, já que seu primeiro marido era um advogado e beberrão;
9. Lopakhine (Iermolai Alexêievitch) – seu pai (um mujique) possuiu loja na aldeia; nasceu campônio; negociante; seu pai foi servo do pai e do avô de Liuba; aquele que compra o jardim de cerejeiras; tem como ideia o loteamento a veranistas;
10. Pichtchik (Bóris Borissovitch Simionov) – proprietário de terras; paga seus credores graças à permissão que dá a ingleses para explorarem argila branca em sua fazenda;
11. Trofímov (Piótr Serguêievitch; Pétia) – “estudante eterno”; ama Ânia e, esta, ele; considera-se homem livre, forte e orgulhoso; crê em uma verdade e felicidade maiores;
12. Vária – filha adotiva de Raniévskaia; tem 24 anos; controla a casa e, em especial, possível aproximação entre Ânia e Trofímov;


A gaivota - Antón P. Tchékhov

A gaivota
(Чайка / Tchaika)

Antón Pávilovitch Tchékhov
А н т о́н    П а́в л о в и ч    Ч е́х о в


 


  A gaivota é considerado o primeiro triunfo do Teatro de Arte de Moscou. No dia 29 de dezembro de 1898, sua apresentação é reconhecida como sucesso pelo público. Este aplaude com entusiasmo. Dois anos antes, esta mesma peça fracassa em São Petersburgo. É, então, o dia 20 de outubro, e a incompreensão do que está ocorrendo no palco é significativa, tanto em nível do diretor e dos atores (estes não estão à vontade em seus papéis), quanto do público e da crítica. Na ocasião, os críticos não poupam palavras fortes contra o intuito tchékhoviano.

  Antón Tchékhov fica decepcionado com o ocorrido e com os comentários sobre A gaivota e decide não mais escrever obras de teatro nem tampouco deixar as peças que já escreveu serem representadas. Mas Tchékhov tem um amigo, dos tempos de Ialta, que procura demovê-lo desta ideia. Vladímir Niemiróvitch-Dântchenko, autor dramático e diretor junto com o ator e diretor Konstantin Stanislávski, escreve em duas oportunidades para Tchékhov, mas somente na segunda tentativa é que convence o dramaturgo a deixá-lo representar A gaivota. Deste modo, Niemiróvitch-Dântchenko encarrega seu colaborador, Stanislávski, a montar A gaivota, embora este tema por um novo fracasso de Tchékhov no palco. Neste período, a tuberculose de Antón avança.

  Ocorre, então, o primeiro êxito teatral do autor de Enfermaria nº 6, escritor já conhecido na Rússia por seu contos e por algumas novelas, mesclados pelo humorismo e pelo sentimental. Aos poucos, une-se o grande contista e o grande dramaturgo na literatura russa, pois a análise e a crítica tchékhovianas mostram as condições de vida do homem e o que rodeia estes em suas obrigações, suas aflições e buscas de suas liberdades.

  A gaivota é texto que prioriza a banalidade da vida dos personagens. A dimensão dada por cada um daqueles que convivem com a família de Sórin e de Arkádina não chega a ultrapassar o medíocre que tece todo um colapso de desentendimentos, seja pelas questões que envolvem o profissionalismo do teatro, seja ele ultrapassado ou que busque novas formas de apresentação, seja pelos íntimos envolvimentos entre protagonistas que, entre sussurros e caprichos, vivem toda a sorte de humilhação (Arkádina por Trigórin), de idealização (Nina por Trigórin), de indignação (Trepliov por Macha), de oferta (Polina por Dorn), de sujeição (Trepliov por Nina) ou, até, de desinteresse a este mesmo sentimento (Macha por Miedviediênko).

  A ciranda do amor alterna-se conforme a necessidade do egoísmo de cada envolvido, diagnosticando o vazio de um amor entre pessoas que não se correspondem em perspectivas similares. Afinal, se toda peça de teatro deve ter o sentimento do amor, conforme aponta a personagem Nina, Antón Tchékhov não deixa por menos o tratamento deste tema e de suas consequências. Impactante é o amar sem ser amado, noticiando a engrenagem alimentada pela prostração deste sentimento, assim como a ruína quando, eventualmente, concretiza-se (Nina e Trigórin e Macha e Miedviediênko). A incapacidade de ser amado não só diminui a integridade psicológica do submisso, como desmorona, neste, a capacidade de reflexão sobre o que pensam sobre ele mesmo.

  A discussão sobre as perspectivas do que vem a ser o teatro em sua construção e contemporaneidade invade as opiniões dos protagonistas e de seus ataques ora para a defesa de um teatro passadista, ora para um teatro lírico, simbólico e com pretensões de nova arte dramatúrgica. Os personagens, ao longo dos atos, discutem (ou tentam) seus pontos de vistas de forma agressiva, intransigente ou pacífica. O ardor ou a ausência deste nas discussões torna o humor e as expectativas dos envolvidos como um grande rolo compressor descontrolado passando à revelia por uma rua deserta, pois basicamente ninguém escuta (de verdade) o outro em sua opinião.

  A simbologia da gaivota no decorrer da peça é inevitável, pois surge, inicialmente, de uma caça real realizada por Tchékhov e seu amigo e pintor Levitan. Este, após abater uma ave, ferida na asa, pede para que Tchékhov mate a galinhola. O contista diz não conseguir, mas diante da insistência do amigo, termina por liquidar o animal. Esta olhava Tchékhov espantada, lembra o escritor. Assim, mais tarde, dois imbecis, segundo Tchékhov, jantavam, enquanto no mundo havia uma fascinante criatura a menos.

  A gaivota vem a ser a motivadora metáfora três anos depois na peça A gaivota. Nina Zariêtchnaia, Konstantin Trepliov e Boris Trigórin envolvem-se num triângulo amoroso e dramático costurados, também, pela simbologia da gaivota: inicialmente, Nina diz-se uma gaivota, depois, Trepliov deposita aos pés de Nina uma gaivota morta para, em seguida, afirmar que do mesmo modo se matará. Mais tarde, Nina, mais de uma vez, associa-se e assina cartas como A Gaivota; no final do enredo, Iliá entrega a Trigórin a gaivota morta (por Trepliov) empalhada (segundo Iliá, o escritor solicitara a taxidermia do animal) e, finalmente, Trigórin anota para um futuro conto seu o seguinte:

     Estou fazendo anotações... É que me veio uma ideia... (Guarda o caderninho) Uma ideia para um conto curto: uma jovem vive na beira de um lago, desde a infância, como a senhorita; ama o lago, como uma gaivota, e é feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece um homem, ele a avista e, por pura falta do que fazer, ele a destrói, assim como aconteceu a essa gaivota. (em tradução de Rubens Figueiredo; Editora Cosac & Naify).

  Curiosamente, um possível conto citado em sua origem dentro de uma peça de teatro que se torna realidade entre os personagens Nina e Trigórin, ou seja, a realidade próxima demais da arte literária.

  Aspecto oportuno, também na peça, é a disposição de cada um dos personagens frente à expectativa de viver suas vidas sem esperanças, sem conseguir mudá-las, ou simplesmente, compreendê-las como algo inexorável numa comédia (como Tchékhov denomina a peça) de vidas frustradas.


Antón Tchékhov lendo A gaivota para os atores e
diretores do Teatro de Arte de Moscou, em 1898.


Alguns personagens de A gaivota
1. Boris Trigórin – escritor famoso e inteligente; farto da vida; cerca de 40 anos; escreve contos; envolvimento e rompimento com Nina; íntimo de Arkádina;
2. Ievguêni Dorn – médico; 55 anos; saciado da vida; teve caso com Polina; quem vê o corpo de Trepliov depois do suicídio;
3. Iliá Chamraiev – tenente reformado e administrador a serviço de Sórin; marido de Polina; pai de Macha;
4. Irina Arkádina – atriz; mãe de Trepliov; talento inegável; interpretou A dama das camélias e O enlevo da vida; 43 anos; teme a velhice e a morte; íntima de Trigórin; entra em rota de colisão com o filho por causa do teatro do passado e do presente;
5. Konstantin Trepliov – filho de Irina; 25 anos; a peça apresentada na propriedade de Sórin é de sua autoria; apaixonado por Nina; não tem grande consideração pelo teatro; para ele, o teatro contemporâneo é “rotina e superstição”; fracassa em suas intenções de escritor; tem inveja de Trigórin; não suporta o envolvimento de sua mãe com Trigórin; suicida-se no quarto ato;
6. Macha – filha de Iliá e de Polina; julga-se infeliz; 22 anos; costumes: cheirar rapé, beber vodca e vestir-se de preto; ama Trepliov, mas é ignorada por este; no fim, casa com Miedviediênko, tem filho com este, mas despreza o marido;
7. Nina Zariêtchnaia – moça; filha de rico proprietário de terras; representa na peça de Trepliov; apaixonada por Konstantin; é controlada pelo pai; foge de casa; une-se a Trigórin; tem filho com este; é abandonada por Trigórin, mas continua a amá-lo; torna-se atriz de teatros mundanos; é amada por Trepliov;
8. Piotr Sórin – irmão de Irina; aposentado; segundo ele, as mulheres nunca gostaram dele; quis ser escritor e não conseguiu; quis casar e também não conseguiu; 
9. Polina Andréievna – esposa de Iliá Chamraiev; íntima de Dors;
10. Siemion Miedviediênko – professor; vida economicamente difícil; casa com Macha.


Cena do III ato de A gaivota, no Teatro de Arte de Moscou, dirigida por Stanislavski e Niemiróvitch-Dântchenko. Pintor, Símov.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Minha vida - Antón P. Tchékhov

Minha vida 
Antón Pávlovitch Tchékhov
А н т о́ н    П а́ в л о в и ч    Ч е́ х о в


   Minha vida é texto longo se considerarmos os contos curtos de Antón Tchékhov, assim como Três anos, Duelo, Um drama de caça e A enfermaria nº 6 são também mais extensos. Minha vida não é texto autobiográfico, como dizia o seu próprio autor, embora, certamente, o autor poderia claramente se identificar se assim quisesse ou deixasse o trabalho para a crítica ou para o leitor: Blagovó é médico; a doença de Kleopatra, irmã de Missail, lembra a tuberculose; a esposa de Missail, Maria Víktorovna, constrói uma escola rural; as experiências de Missail com os mujiques e sua aproximação nos bastidores do teatro amador em casa dos  Ajóguin; o despotismo de Aleksandr Pávlovitch, pai de Missail e Kleopatra, e, finalmente, a província criticada lembra Taganrog, cidade natal de Antón Tchékhov. A obra é publicada em 1896.


   Missail pode não saber ao certo o que deseja, mas sabe, desde o início de seu relato o que não deseja. O subtítulo da novela, paradoxalmente chamado de conto (“Conto de um provinciano”), identifica “de saída” a intenção do autor, através de seu narrador em primeira pessoa, de não suportar mais uma cidadezinha russa e sua sociedade diagnosticada de medíocre, hipócrita, tediosa, mentirosa, corrupta, parasitária e vulgar. Embora se reconheça um provinciano, Missail quer sua singularidade, uma vez que recusa seu título de nobre para buscar outra responsabilidade, agora, de cunho metafísico, a partir do trabalho braçal. Para isso, ou seja, para encontrar o sentido que procura sem algum horizonte definido, Missail sabe o que não quer, desde a casa paterna despótica, até o intelectualismo oferecido pela província através de serviços entediantes que fazem com que os de nível fiquem sentados esperando a vida passar. O confronto é, deste modo, inevitável, desde o interno familiar, pois seu pai se recusa a aceitar a diferença do filho em relação à tradição familiar, até as grosserias e poucas simpatias da população. Usando de um último estratagema indecoroso, o pai de Missail, via governador da província, ameaça o próprio filho com a retirada do título de nobreza. Nesta altura do relato, o próprio Missail já abriu mão de sua herança, assim como suas únicas ligações com a nobreza fica em nível do médico Blagovó e da filha do engenheiro, Maria Víktorovna. Apesar das discussões entre estes três personagens sobre progresso, estudo, ciência, trabalho, liberdade, inteligência, etc., o distanciamento se torna concreto no final da narrativa de Minha vida, pois tanto o médico como a esposa se afastam definitivamente de Missail na busca de suas perspectivas pessoais, respectivamente, de estudo e de liberdade. No fim do enredo, o pai se recusa também a reconhecer Kleopatra como filha, acusando Missail de tê-la influenciado para sua concepção absurda de vida.


   Inicialmente, o que chama a atenção do leitor é a importância que Tchékhov faz dos antepassados do protagonista para, no decorrer da novela, desconsiderá-los gradativamente. O pai é, no final do enredo, envelhecido e encurvado a andar pelos arredores da própria casa. A mãe é apenas mencionada em sua morte. A família com seus gloriosos antepassados (poeta, general, pedagogo) não é suficiente para manter a solidez, pois o protagonista Missail e sua irmã Kleopatra anarquizam a estrutura mantida por Aleksandr Pávlovitch. Mas além da família de Missail, surge também uma cidade repleta de corruptos, uma galeria de personagens que abrange políticos, médicos, religiosos, militares, professores e funcionários em geral bem dispostos a qualquer tipo de gratificação. Propina é a mola propulsora da sociedade que Missail procura se afastar. O pai, arquiteto, colabora ao desenhar o mesmo tipo de casa padrão para uma sociedade padrão que, em seus lares, liquida filhas e mães e propaga o horror. A infância estúpida e agressiva vivida por Missail e Kleopatra é sinônimo da solidão vivida na velhice por seu próprio pai. A filha não quer saber do próprio pai que tanto atendeu, servilmente, durante anos. Os casamentos também são nutridos pelo machismo, assim como a pureza das moças vai murchando conforme a vida em família. A irmã de Missail engravida do médico Vladímir Blagovó, homem separado e pai de dois filhos. Por fim, Kleopatra morre e deixa uma menina. O pai viaja para o exterior em busca de especialização na medicina. Algo similar acontece com o casamento de Missail: apesar de amar a esposa, Maria Víktorovna (Macha), esta, decepcionada com a vida no campo, parte para Petersburgo e, de lá, em carta lacônica e autoritária, despacha o marido, fazendo-o crer que o casamento entre eles foi um grande erro. Ao partir para a América, segundo a filha do engenheiro Víktor Iványtch Dóljikov, busca sua liberdade. 

   Tchékhov discute, nesta novela repleta de situações desconcertantes, temas metafísicos de modo natural e impressionantemente claro, ao pulverizar os conceitos de uma província corrompida pelo passado e pelo presente em busca do dinheiro, e um jovem que procura buscar sentido para sua vida a partir do trabalho físico. Deste modo, o trabalho dito intelectual não serve a Missail, pois ficar tediosamente sentado à espera de algo não é, segundo o que pensa, inteligência a ser desenvolvida. Entretanto, Missail não consegue explicitar o que de fato deseja para sua vida e o sentido existencial a que procura se dilui nas expectativas que cria e nos trabalhos que desenvolve, como no do telégrafo da estrada de ferro que assume à na da atividade de pintor de paredes e telhados subordinado a Riedka. Mas Tchékhov surpreende também com a ligação de Missail com Riedka, pois seu equilíbrio espiritual se dá com a união a este homem, assim como Kleopatra, já grávida, mora em casa do pintor de paredes. Riedka, Missail e Kleopatra estão ligados também ao teatro amador da casa dos Ajóguin. 


   Por fim, o casamento com uma teórica da agricultura para que ela, caprichosa e egoisticamente, abra mão do casamento para buscar a liberdade. Junto com sua irmã (também abandonada pelo médico Blagovó – se é que realmente algum dia ele esteve junto por tanto tempo ao seu lado), Missail viverá os últimos momentos de vida desta para, finalmente, ser reconhecido pela província ou, ao menos, não ser mais chamado de “Alguma Utilidade”. Sozinho, Missail já não se encontra tão só, pois a trajetória de vida que desempenhou na província mediocrizada é dialogada, individualmente, por seus habitantes, como, por exemplo, Aniuta Blagovó. 


   Missail e Riedka são personagens marcantes, pois diferenciados da província. Segundo Riedka, “O pulgão come a plantação; a ferrugem, o ferro; e a mentira, a alma. Senhor, salve a nós, pecadores!”.



Alguns Personagens de Minha vida

1. Ajóguin – família rica e beneficente; apreciadores da arte; proprietários de terra;
2. Aleksandr Pávlovitch – pai de Missail; único arquiteto municipal da cidade; mora na Bolchaia Dvóriánkaia; guarda jornais, encaderna-os e não deixa ninguém ler;
3. Andréi Ivanov (Iványtch – corruptela do patronímico Ivánovitch) – pintor de paredes; cerca de 50 anos; alto; muito magro; pálido; peito chupado; “têmporas encovadas e olheiras”; aparência assustadora; tem “doença debilitante”; apelido (mas dizem que é seu sobrenome): Riedka (“rabanete”, em russo); “pernas descarnadas e violáceas”; 
4. Aniuta Blagovó – filha do vice-presidente do tribunal; alta; 
5. Kleopatra Alekséievna – irmã de Missail; 26 anos; teme e confia na inteligência do pai; “olhos escuros maravilhosos”; feia de perfil; nariz e boca avançados para a frente sugerindo um assoprar; 
6. Maria Víktorovna (Macha) – a filha do engenheiro Dóljikov; alma simples; inteligente; bondosa; cerca de 25 anos, mas com aparência de 30; loira; bonita e cheia; estudou canto em conservatório de São Petersburgo;
7. Missail Alekséievitch (Alekséitch – corruptela do patronímico Alekséievitch) – narrador; estatura alta; forte compleição física; apelido: “Alguma Utilidade”; procura um sentido para a sua vida; 
8. Vladímir Blagovó – médico; estudante; serve em regimento militar; olhar vivo e simples; olhos acinzentados; barbicha rala; casado com três filhos; infeliz na vida familiar; dizem que não vive com a esposa; engravida Kleopatra.