terça-feira, 4 de março de 2014

A morte de Ivan Ilitch - Liev N. Tolstói


Смерть Ивана Ильича (Лев Николаевич Толстой

 A morte de Ivan Ilitch (Liev Nikoláievitch Tolstói)



1. A morte para Tolstói. A morte de Ivan Ilitch (em russo, Smiert Ivana Ilhitchá) é novela datada entre 1884 e 1886, portanto, no contexto de outras obras-primas de Tolstói (1828-1910) como Guerra e paz (1869), Anna Kariênina (1877), Sonata a Kreutzer (1889) e Ressurreição (1899). Liev Tolstói tem, assim como em Anna Kariênina, a ideia de, na vida, o personagem viver sua morte sem a perspectiva crítica daquilo que realmente vive até seu final derradeiro. Se Anna Kariênina experimenta toda sorte de tormentos por se desviar do rumo a que está submetida e por se aventurar com o príncipe Vronski, Ivan Ilitch só encontra o sentido daquilo que viveu a partir da vida que vê naqueles que estacionam na vida medíocre. Segundo Tolstói, “A morte é a passagem de uma consciência a outra, de uma imagem de mundo a outra. É como se você passasse de uma cena e seu cenário a outros. No instante da passagem, fica evidente, ou pelo menos se sente, a realidade mais presente.”. Esta obsessão pela morte se verifica ao menos em enredos como Três mortes, Polikuchka, Guerra e paz, Anna Kariênina e, de forma concisa e magistral, A morte de Ivan Ilitch.

2. O título. O título da novela é perspicaz, se desmembrado da seguinte maneira: a morte enquanto dicotomia com a vida, portanto, a aparência e a essência. Esta reflexão se torna crescente no enredo, a partir das perspectivas materiais e burocráticas de Ivan Ilitch e de seus pares, seja a família ou seus colegas de repartição judiciária. Ivan é a russificação de João, aquele que “tem a graça de Deus”. Ill, do inglês, significa “enfermo” e, finalmente, itch, “desgosto” e patronímico “filho de Iliá”, portanto, Elias, ou, ainda, “Jeová é Deus”. Simplificando: Ivan Ilitch é o escolhido por Deus para compreender a má vida que viveu a partir do egocentrismo, da hipocrisia, do parasitismo e da falsidade. Uma vida enferma e repleta de desgosto afinal entendida no momento inexorável da morte. Uma vida vazia e sem identidade, a de um homem a mais na estrutura familiar e na vida burocrática. A morte da alma de Ivan Ilitch é a marca de que viveu, em vida, a morte. Em dualismo, em sua vida mortal, quando vê a luz, não vê a morte, mas a piedade que tem daqueles que ficam com a vida mesquinha.

3. Os temas. Três temas estão interligados. A vida requisitada pela sociedade, dita decente, a vida repleta de equívocos que se desfaz com a morte (a luz) de Ivan Ilitch e, finalmente, a vida boa e natural do criado Guerássim, aquele personagem que ajuda Ivan Ilitch e responde a este quando indagado do porquê ajudar o enfermo sem reclamações e de modo humano. Resposta de Guerássim: “Todos nós vamos morrer. Por que então não me esforçar um pouco?”. Esta resposta em sua simplicidade lembra a dada por um mujique a Liêvin (“alter-ego” de Tolstói em Anna Kariênina) quando perguntado por este sobre a existência de Deus: “Existe porque existe.”.

4. Uma reflexão inoportuna. As etapas da morte são trabalhadas pelo autor, mas o que se destaca é a banalidade de comportamento da ordem das coisas no mundo da doença: o diagnóstico médico variado, a doença em seu crescente mortal e, finalmente, a ansiedade dos saudáveis para que o moribundo, de vez, desocupe o lugar que ocupa, pois o término é inevitável.

5. A exclusão social. Como não se delega aos outros o dom de morrer, a morte de Ivan, para os demais personagens, incluindo os médicos, é algo realmente seu, de Ivan Ilitch. Desta maneira, a exclusão social se dá tanto fora de casa (no consultório médico e na repartição) como em sua própria família, isolado num quarto. O empecilho que passa a ser tem nome e função: Ivan Ilitch e sua doença que atrapalha a vida social da esposa e da filha e que também abre perspectivas novas com a iminente morte. Não há mais sentido, não há mais significado social para ninguém a morte que aparece estampada na face daquele que, algum dia, também foi pedante e frio em suas atitudes de magistrado do Foro Criminal. A ansiedade daqueles que nada têm com a doença alheia é notória no decorrer do enredo. Os médicos estão, por exemplo, preocupados com o rim e o ceco e não com o indivíduo em si, assim como, outrora, o magistrado Ivan Ilitch se interessava apenas pelo caso jurídico e não com a pessoa envolvida nele.

6. Uma trajetória inesperada? A trajetória de Ivan Ilitch é a vida tipificada de cada um que se aventura a ter segurança e decência sociais. O equilíbrio de uma vida acertada com atitudes e gestos calculados para que se possa atingir a ascensão de seus propósitos é similar à decadência meteórica graças à doença que inicia com a queda sofrida ao cair de uma escadinha ao mostrar algo para o forrador de paredes. A metáfora da queda de Ivan Ilitch é, ao se preocupar com a aparência de seu apartamento para a família, o princípio da queda de uma vida concreta e bem alicerçada. O surgimento da equimose, o gosto amargo na boca, o mau humor, a dor no lado esquerdo do estômago, o diagnóstico, o rim, o ceco e, impreterivelmente, os médicos com seus diversos diagnósticos e as tentativas de Ivan Ilitch com especialistas, com homeopatas, com misticismos são a brevidade racional imposta pelo fim próximo. Tolstói dá, no início da novela, a notícia da morte de Ivan Ilitch em matéria de jornal. Os colegas comentam a partida do magistrado, pensam clandestinamente na vaga aberta ocasionada pelo óbito e na real possibilidade de promoção. Em seguida, Piotr Ivânovitch, o mais chegado a Ivan Ilitch, se vê na obrigatoriedade do velório e da conversa com a viúva Prascóvia, enquanto os demais colegas partem para o jogo de cartas, sinônimo de vida. A viúva encena conversa com Piotr Ivânovitch para saber se tem direito a algo (a mais) dado pelo Governo. Longe do cadáver e dos cheiros desagradáveis do momento, Piotr Ivânovitch retorna à vida decente.

7. Uma história de vida e não de morte. A morte de Ivan Ilitch é uma novela da vida de Ivan Ilitch, com seus mascaramentos, friezas, burocracia e falta de ambição para sair da trivialidade. O mecanicismo social e familiar engessam o magistrado, e, sua alma, frente a sua morte, deixa o ódio por aqueles que o julgam um fardo e passa a compreender aqueles que ficam em uma vida padronizada. O morto com pena dos vivos e não com inveja dos vivos. Tolstói inverte a compaixão e a conceitua diferentemente dos que estão vivos e presos num sistema: a compaixão de Ivan Ilitch é lamentar, na ocasião de sua partida, o seu filho adolescente Vassíli num mundo que sustenta o homem material. A espiritualidade tolstoiana fica com Ivan Ilitch, quando este nasce para uma nova vida, e para o leitor, quando este necessitar da (re)leitura desta que é considerada uma das mais fabulosas novelas da literatura universal.

8. O mais viável é, logo, desocupar o lugar. “Não se poderia dizer como foi que isto aconteceu no terceiro mês da doença de Ivan Ilitch, porque isto acontecia passa a passo, imperceptivelmente, mas aconteceu que a mulher, a filha, o filho, os criados, os conhecidos, os médicos, e sobretudo ele mesmo, souberam que todo o interesse que ele apresentava para os demais consistia unicamente em indagar se não demoraria muito a desocupar finalmente o seu lugar, a livrar os vivos da opressão causada pela sua presença, e a livrar-se ele mesmo dos seus sofrimentos.” (em tradução de Boris Schnaiderman, Boa Leitura Editora S.A. / S.P.).