quinta-feira, 18 de junho de 2015

Gógol e O nariz (1836)



     A primeira quebra de paradigma ocorre no título deste conto: O nariz. O que esperar de um título assim? Talvez, em um texto convencional, fosse o problema físico e psicológico que um pequeno ou monstruoso nariz viesse a torturar o seu protagonista. Mas o que pensar quando a parte de um todo torna-se um dos protagonistas do conto? Ou, ainda, rivaliza com os outros dois protagonistas do enredo, ou seja, com o barbeiro Ivan Iákovlievitch e, principalmente, com o próprio dono do nariz, Platon Kovalióv? 
     Gógol e sua originalidade para trabalhar com o banal cotidiano e seus absurdos desorienta o tradicional leitor. Este, procurando superar o impacto do título e ainda buscando alguma orientação para “descobrir” a intenção do texto, tem certa trégua no primeiro parágrafo ao ler “No dia 25 de março aconteceu em Petersburgo um fato extraordinariamente estranho.”, pois, ao menos, não fica isolado com a estranheza do título, uma vez que o narrador compactua que algo estranho aconteceu e será relatado. A precisão realista desta frase inicial parece acalmar o ânimo alterado do leitor, pois há data, mês e local administráveis como aceitáveis em qualquer história a ser contada. Mas ao virar a página (dependendo da edição), o estranhamento nocauteia o pobre leitor, pois o barbeiro Ivan Iákovlievitch encontra no pão que irá comer um nariz alheio. Pior: reconhece o nariz como sendo do assessor de colegiatura Kovalióv.
    O que esperar de uma história e de seu autor que rompe com aquilo que estamos acostumados na maioria dos textos literários? Como afirma Vladímir Nabokov, o leitor que lê o nome de Gógol como Gogól certamente terá dificuldade para entender aquele que é considerado o iniciador de uma literatura na Rússia que abrirá caminho para nomes como Dostoiévski, Turguêniev, Tolstói e Tchékhov. Apesar de entendermos a metáfora de Nabokov, de fato, Gógol atrapalha as melhores intenções do ingênuo leitor. Este realismo deformado ou este realismo fantástico, confundindo-se com o grotesco e o humor, tornam o estilo gogoliano incomparável.
     Inicialmente, Gógol, em seu texto original, opta pelo sonho, como resultado de tudo aquilo vivido por Kovalióv, para modificar drasticamente na versão definitiva. Se sonho, embora o leitor pudesse sentir-se traído no final do enredo (vá entender o leitor!), tudo estaria explicado. Mas o que admitir quando o sonho é substituído pela realidade? Aí está a confusão trazida por Gógol, pois aquilo que convencionalmente admitimos é rompido por nova e extravagante convenção. Como afirma o próprio Kovalióv, se fosse ainda um braço, uma perna ou até uma orelha (situações já horríveis!) ainda é possível entender. Mas um nariz? Algo visível? Explícito? Pouco convencional para ser discutido? Ao menos que fosse, então, extirpado em um duelo ou guerra, pondera Kovalióv. A discussão, entretanto, avança, pois duas situações constrangem o dono do nariz: passa a não ser mais dono do objeto, pois este adquire personalidade, função, autonomia e confunde-se facilmente com qualquer outro cidadão, e o que fica na cara de Kovalióv não é, ao menos, uma aceitável cicatriz, mas uma superfície plana que parece “uma panqueca recém-assada”, nas palavras do funcionário do jornal.
     Kovalióv procura, então, tornar seu problema público, contradizendo-se em seu gesto de esconder, com um lenço, o que lhe fica na cara, ou seja, a superfície, pois somente deseja restituir para si o objeto perdido, julgando-se, deste modo, em seu direito. Assim, outros personagens começam a conviver com este estranhamento sem que venham a alterar significativamente aquilo que pensam sobre a realidade que vivem. Tecnicamente, o conto divide-se em partes bem determinativas: primeiro o problema encontra-se literalmente nas mãos do barbeiro Ivan Iákovlievitch, depois na cara do assessor de colegiatura Kovalióv, para, enfim, envolver alguns outros personagens, como um funcionário de jornal, uma mãe com necessidade de casar sua filha e um médico. Por fim, a última parte retoma os dois primeiros personagens do início do conto: o barbeiro e o assessor, como se nada ou pouco tivesse acontecido de irreal.
     A discussão para o leitor continua insolúvel, pois este, certamente, deseja compreender, de fato e de direito, o que significa tudo isso proposto por Gógol. Caso seja a primeira obra lida pelo desamparado leitor, este ainda tem um longo caminho a trilhar na obra gogoliana, passando desde o folclore ucraniano, pelas tantas vezes que as expressões “diabo” e “nariz” aparecem nos textos de Gógol, até chegar nos contos petersburguenses que alteram o cotidiano aceitável proposto e definido pela literatura dita realista. Pela primeira vez na literatura russa um autor aborda, no caso de O nariz, com o duplo de cada um de nós. Este tema será seguido por Fiódor Dostoiévski em algumas de suas obras, tendo como exemplo mais evidente o seu romance O duplo. Neste trabalho, o autor de Crime e castigo dualiza as personalidades do protagonista Yákov Pietróvitch Golyádkin e seu Golyádkin segundo. O duplo foi bastante criticado pelo crítico Bielínski, pois a influência foi vista como cópia de Gógol. O tempo provou o equívoco do grande crítico e seu comentário compreensível para aqueles tempos. 
     A ambição de Kovalióv é evidente dentro do texto O nariz, quando das insinuações amorosas e sexuais, passando pela intenção de se tornar governador e pela pouca boa vontade de casar com a filha de Aleksandra Podtotchina Palaguêia Grigórievna. As ambições deste homem de 37 anos não têm nada de estranhamento nem, tampouco, de fantástico, pois bastante reais no contexto da burocracia e do social russos. Nada melhor do que afetar o ambicioso de frente, embora o trocadilho deva ficar a cargo de Nicolai Gógol. Este é outro ponto explorado pelo autor ucraniano, os trocadilhos. Convenhamos que a expressão “nariz”, em diversas partes do mundo, gera brincadeiras e jogos de palavras engraçadíssimos, assim como a sonoridade da palavra “hemorroidas”. E, nisto, Gógol é incomparável, uma vez que o trocadilho transforma-se em humor e saliência do absurdo que o homem vive a cada momento. Outra expressão bastante usada por gógol é “diabo” em toda a sua obra. Estes dois vocábulos podem, certamente, estar relacionados com o próprio e significativo nariz do autor (veja, por favor, a capa deste material), assim como o místico apreciado desde criança pelas histórias contadas por sua mãe na Ucrânia.
     A intromissão de um nariz que se julga Conselheiro de Estado separa o mundo aceitável do não aceitável, daquele mundo que procuramos dar um sentido para aquele que não queremos crer em um não sentido. A interferência de algo num mundo que julgamos com sentido desorienta todas ações que aprendemos como possíveis entre as relações sociais. Quando há transgressão, há desconforto e luta interior. Nos finais do primeiro e do segundo “capítulos” do conto, Gógol continua a atrapalhar o entendimento do leitor: “Mas aqui o acontecimento fica completamente encoberto por uma névoa e não se sabe absolutamente nada do que se passou depois” e “Depois disso... mas aqui novamente todo o acontecimento se encobre por uma névoa e não se sabe absolutamente o que aconteceu depois.”. Ainda não satisfeito, Gógol conclui sua história da seguinte maneira: “Mas, apesar de tudo, muito embora se possa, sem dúvida, admitir isso, aquilo, e mais aquilo, pode ser até... bem, e onde é que não existem absurdos? – E, não obstante, se refletirmos bem sobre tudo isto, na verdade, há algo. Digam o que disserem, mas tais fatos ocorrem no mundo; é raro, mas ocorrem.”.

     O conto O nariz é publicado pela primeira vez na revista O contemporâneo, de Púchkin, no ano de 1836, depois de ter sido recusado por ser “sujo” pela redação de O observador moscovita.