terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

BOBÓK - DOSTOIÉVSKI


O título Bobók, considerado o vocábulo em russo, significa “fava”, podendo também ser admitido como "falha", de favar. Em nível dos personagens, o conto é estruturado em um narrador, sua relação rápida com um retratista, com eventuais editores, um parente morto distante e a família deste e, enfim, a um grupo de mortos que o fazem escutar quando ele, o narrador, Ivan Ivánitch, distraído, dormita em cima de uma sepultura. Em nível do grupo de mortos, há diferentes classes sociais da Rússia do século XIX, predominando, entretanto, a classe abastada. Desta conversa, o narrador Ivan Ivánitch faz o leitor tirar algumas conclusões, assim como o conto servirá como crítica à classe rica que se deteriora moralmente, em situação similar porque o morto quando fede, no conto, é porque fede em sua moral construída em vida, e resto de vida que há nos mortos reside na consciência destes.


Dostoiévski escreve Bobók, no ano de 1873, também em resposta aos ataques que sofre com a publicação de Os demônios em 1871. Dostoiévski acompanha intensamente, em Genebra, a atividade política de Mikhail Aleksandróvitch Bakunin (1814-1876) a partir da integração entre imigrantes revolucionários russos. Nietcháiev teria sido o escolhido para representar, na Rússia, o pensamento de Bakunin, com direito à documentação em seu nome assinado por Bakunin para representá-lo em seus interesses políticos num Comitê Geral. Usando deste poder, Nietcháiev abusa de suas atribuições, terminando por assassinar o estudante da Academia de Agricultura Ivanov, por este discordar e não querer mais fazer parte dos quintetos e da organização revolucionária clandestina. Spítkin, irmão de Anna Grigórievna Dostoiévskaia, segunda esposa de Dostoiévski e que fora sua estenógrafa, também fazia parte da organização revolucionária. Está instalada, então, a Justiça Sumária do Povo. A partir destes pressupostos e do assassinato de Ivanov em 21 de novembro de 1869, Dostoiévski deseja dar uma resposta aos revolucionários russos. Em carta a Máikov, datada de 24 de fevereiro de 1870, Dostoiévski afirma, impressionado pela morte do estudante Ivanov, estar elaborando uma história mais próxima da realidade do que a construída em Crime e castigo, que muito promete, pois causará um grande efeito no público leitor.


A resposta de Dostoiévski é rápida aos niilistas, aos revolucionários e aos socialistas: “o ateísmo e o socialismo são estranhos ao povo russo e até incompatíveis com sua natureza”. Segundo Dostoiévski, uma sociedade sem Deus apoiada unicamente na ciência e na razão não estabelece relações sólidas, pois é inútil. A dicotomia torna-se presente e cresce em sua ideia central: os conceitos políticos, ideológicos e religiosos de Piotr Vierkhoviénski são rechaçados pela ideia russa de Chátov, enriquecida pela universalidade de Tíkhon. Se Piotr “vence” Chátov, o mesmo não acontece com Stavróguin, o ocidentalista e niilista rico e inteligente, “derrotado” por Tíkhon, o ex-bispo profético: Stavróguin enforca-se, destruindo as suas manifestações extremas da paixão e do prazer que o tornaram vazio interiormente. Ao perder seu equilíbrio interior desempenhado ao longo do enredo de Os demônios, Stavróguin sai de cena para não se denunciar através de sua confissão da “vida de um grande pecador”. Está morto o ocidentalismo em relação à ortodoxia russa. O diálogo entre Tíkhon e Stavróguin antecipa as discussões religiosas e filosóficas entre Ivan e Aliocha em Os irmãos Karamázov, assim como o enforcamento de Stavróguin corresponde ao tiro dado por Svidrigáilov em si mesmo, pois não há perdão para quem causa sofrimento nas crianças.

Outro motivo da escrita de Bobók pode ser entendido pelo comentário de um colunista de “A voz”, usando a pseudonímia Nil Admirari, ao atacar um retrato de Dostoiévski exposto no Museu de Belas Artes: “o retrato é de um homem alquebrado por uma doença grave.”. Nesta época, Dostoiévski era acusado de fazer literatura tratando somente da anormalidade, da psicopatia e do desequilíbrio. Neste ponto, Bobók dá resposta a “Uma certa pessoa”.

Finalmente, Dostoiévski também parodia o romance de Boboríkin, Sacrifício noturno. Este escritor tinha como apelido Pierre Bobó.

Mas o principal objetivo de Dostoiévski é, através deste conto fantástico, descrever de modo conciso a desarticulação moral das camadas elitizadas da sociedade russa do século XIX. O narrador, no caso Ivan Ivánitch, também autor, não vê necessidade de prefácio para seu conto, embora faça um micro-prefácio. Em seguida caracteriza-se pelas opiniões de um conhecido seu, assim como define-se tímido. Lembra que já o consideraram louco. Comenta de um retrato que se deixou pintar e o comentário do pintor com o realismo das rugas vivinhas do retratado na tela. Comenta, também, de obras suas recusadas por editores e afirma que o tempo é de palermas e não de Voltaire! Discorre sobre conceitos de loucura, inteligência e não loucura, além de seu estilo lembrado por alguém como truncado. Até acha que deve ser mesmo truncado, pois não passa muito bem neste momento de criação literária, pois a cabeça dói, seu caráter muda e está a escutar, ao que parece, vozes. Escuta, por exemplo, a palavra Bobók. Deste modo, procura diversão, mas termina por ir em enterro de parente. Lá, distraído, dormita sob uma sepultura e, entre sonho e semiconsciência de estar acordado, escuta conversas entre diversos mortos. Antes, ao passear pelas sepulturas, percebe a divisão das classes sociais. A partir deste ponto da narrativa, o estranhamento do fantástico predomina até o espirro do narrador que faz os mortos se calarem. Da galeria dos mortos, há General-major, funcionário bajulador deste General, uma senhora que aprecia jovens rapazes, um barão petulante, uma leviana mocinha de 15 anos, uma ilustre grã-senhora, um engenheiro, um conselheiro efetivo secreto, um filósofo, uma grã-fina e somente um representante da classe ordinária, no caso, um vendeiro. Após escutar todos os barbarismos de imoralidade e de amoralidade, Ivan Ivánitch não aceita nem se acostuma com aquilo que ouviu. Entretanto, tem a esperança de ver a história que escreveu publicada na revista Grajdanin.

Algumas pérolas do narrador Ivan Ivánitch:

·  “Hoje o humor e o bom estilo estão desaparecendo e se aceitam insultos em vez de gracejos.”;
·  “Não me ofendo: não sou desses literatos que levam o leitor ao desatino.”;
·  “Ideias mesmo andam escassas, porque hoje só há lugar para fenômenos.”;
·  “Teu estilo, diz ele, está mudando, está truncado. Truncas, truncas, e sai uma oração intercalada, após a intercalada vem outra intercalada, depois mais alguma coisa entre parênteses, e depois tornas a truncar, a truncar…”.

 
Dostoiévski quando mais jovem.

Bobók é conto pequeno e dividido por blocos ou fragmentos narrativos separados por estrelinhas, ou seja, graficamente assim apresentado: * * *. Seu narrador é Ivan Ivánitch e, sua confusão, com Fiódor Dostoiévski pode ser notada. O estilo truncado, anunciado pelo próprio narrador segundo o comentário de um conhecido seu, é a marca da narrativa, assim como o fantástico registra, metaforicamente, a realidade a ser mostrada e analisada. Alguns conceitos são trabalhados pelo narrador e, também, pelo mundo dos mortos que comunicam seus pensamentos ao distraído narrador que termina por dormitar em cima de um túmulo em recepção de um parente distante que morre. As mudanças de ideias discorridas ao longo do conto faz este se apresentar fragmentado ou, ainda, atrapalhado propositadamente pelos atropelos da forma de raciocinar do narrador. Por fim, este narrador sugere a possibilidade de seu texto ser publicado no Grajdanin, revista que Dostoiévski assume como redator-chefe e que lhe traz dissabores internos e externos. Internos por seus atritos com o príncipe conservador Mechtchérski, dono da revista; externos, por seus pares da literatura estranharem e atacarem Dostoiévski por trabalhar em revista reacionária. De fato, a revista e o príncipe iam de encontro às reformas discutidas e conquistadas na Rússia. Dostoiévski, por seu lado, era defensor das reformas sociais iniciadas por Alexandre II com a libertação dos servos em 1861. A ambição de Dostoiévski nesta revista era poder ampliar suas discussões sociais com o publico leitor. No ano de 1874, Dostoiévski não trabalha mais na revista Grajdanin, rompendo com o príncipe Mechtchérski.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O SONHO DO TITIO - DOSTOIÉVSKI

O título O sonho do Titio (1859) sugere relações familiares imediatas, ou seja, a de uma estrutura familiar sendo a ampliação do enredo com suas complicações e consequências em âmbito de um microcosmos, além de possível idealização do Titio mencionado. Nada impede, entretanto, um alargamento temático no contexto de uma província ou de uma cidade metaforizada, principalmente o título criado por Dostoiévski. Assim, algumas surpresas aparecem se comparadas com o título. Primeiro: o sonho que não é sonho, pois é colocado na cabeça do Titio (o príncipe K ou, ainda, Gavrila) como sonho para substituir a realidade como tal se apresentou (o pedido de casamento do príncipe à Zinaída Afanássievna); segundo: o Titio que não é tio legítimo de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, o sobrinho impostor. O verdadeiro parente só aparece no capítulo XV, quando da morte do príncipe K em hotel em Mordássov, meio que acidentalmente, pois desloca-se  a caminho  de Petersburgo, passa na fazenda do príncipe em Dukhánovo, há sessenta verstas de Mordássov, para, finalmente (por não encontrar o tio nesta fazenda), chegar até Mordássov e se deparar com a morte do mesmo. Providencia, então, o enterro do velho príncipe. Este parente legítimo é príncipe também, no caso, de nome Schepetílov. Sorrateiramente, Pável Alieksándrovitch Mozglyákov desaparece da cidade, reaparencendo, três anos mais tarde, em local longínquo da Rússia. Terceiro: a esperada estrutura familiar apoiada na figura do Titio não é o centro da discussão, mas, sim, na de dois personagens que ganham força na construção do enredo: Mária Alieksándrovna Moskaliova e Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, deixando a figura do próprio Titio em segundo plano na narrativa, embora com o poder de comicidade que sua figura empresta à trama. Os parentes do Titio estão em Moscou e pretendem, inicialmente, colocá-lo em manicômio. Por isso sua fuga para a fazenda de Dukhánovo.


A discussão proposta por Fiódor Dostoiévski é a própria figura da tediosa província de Mordássov e seus habitantes, título que poderia assim ser parafraseada de outro título do próprio autor: A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes. Neste texto, porém, a ideia central passa a ser, de fato, a família e não a aldeia em si. Veja o que escrevi sobre este romance quando de sua análise:

“O título A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes e seu subtítulo (Das memórias de um desconhecido) soam abrangentes e banais, num primeiro instante, ao leitor. Esta armadilha dostoievskiana é retificada pelo desenvolvimento do enredo, pois, sutilmente, cada habitante vai surgindo de dentro da casa de Iegor Ilítch Rostániev como que saindo sem muita pretensão, meio que sem querer, até começar a se desvendar através de suas falas e comportamentos um tanto estranhos e associados a conchavos para lutar por seus espaços na aldeia metaforizada pela própria casa herdada por Iegor Ilítch Rostániev. O parasitismo e a hipocrisia, aliadas ao humor, enraizam-se para não mais saírem do enredo. O que o leitor espera basicamente não ocorre, ou seja, conhecer os habitantes da aldeia em suas casas, fora de casa alheia. O social esperado pelos diversos personagens “próximos” de Stepántchikovo também não acontece, pois o emblemático conflito ficará, em regra, em quatro paredes. O movimento de atração é a casa, assim como Iegor Ilítch Rostániev; este movimento é de “fora para dentro” a partir do segundo capítulo da Primeira parte.”

Em O sonho do Titio, embora a urdidura do texto parta de duas pessoas da família de Mária Alieksándrovna Moskaliova, no caso ela mesma e de sua filha Zinaída Afanássievna, a percepção que o leitor tem é a da busca da ascensão social desta estrutura familiar através da metáfora da ascensão real de uma burguesia que se forma depois da abolição dos servos em 1861 com a imposição do surgimento do capitalismo na Rússia. Mas o texto de Dostoiévski é de 1859, e a ideia inicial de 1856, para ser justo com a observação aguçada do autor sobre os acontecimentos sociais. A velha aristocracia, que se une com a burguesia (tempos depois no plano real e social russos), é representada, não somente pelo príncipe K (e seu legítimo herdeiro Schepetílov), como com o casamento de Zinaída Afanássievna com um velho general no final do enredo. Ela, representando esta burguesia em formação na Rússia; ele, simbolizando a velha estrutura de uma nobreza. Da família de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, assim como as demais famílias de Mordássov, pouco ou nada se sabe, além dos escândalos e mexericos que cada um dos personagens bem resolve fazer para ou livrar sua cara (ou fuça) de alguma complicação ou para conseguir uma vantagem social (ou seja, a de participar da sociedade e não ser excluído dela!) na tediosa província. Desta maneira, Dostoiévski desfila personagens que mostram muito bem como é a própria província de Mordássov: um local em que a intelectualidade não é apresentada como virtude, um ambiente em que as atividades culturais não são mencionadas (exceção de uma possibilidade de um teatro filantrópico a se realizar e que termina por não ser apresentado como efetivo no enredo) e, por fim, uma província que tem como mérito o interesse de um cronista-narrador-testemunha em desvendar as relações de mesquinharias de seus moradores com o subtítulo Das crônicas de Mordássov, quando da polvorosa passagem e permanência de três dias de um príncipe por algumas de suas ruas e por algumas de suas casas. Dostoiévski escolhe, propositadamente, o nome de Mordássov, pois a onomástica é recurso que o autor de O sonho do Titio torna fundamental para explicar atitudes, ações, psicologismos, intenções predeterminadas, etc. para seus personagens ou localidades na maioria de suas obras. Mordássov vem de “fuça”, “focinho”, simbolizando aquilo que é desmascarado ou, popularmente, jogado na cara de alguém. No decorrer do enredo, os personagens vão desmascarando a si mesmos, acidental ou incidentalmente, e, por extensão, aos outros e à própria província. Interessante notar que a expressão em russo bróssit v mórdu significa “lançar na fuça” ou “falar/dizer na cara”, ratificando uma das personalidades dos típicos mexeriqueiros de uma província mexeriqueira que, no descontrole de uma discussão, desempenham muito bem o seu papel social de desmascarar seu rival mexeriqueiro.
O sonho do Titio centraliza a discussão em dois personagens bem distintos, mas que se completam graças às mentiras e às ambições sociais. De um lado, Mária Alieksándrovna Moskalióva, esposa de Afanassi Matvêitch e mãe de Zinaída Afanássievna. O marido é um inepto cerebral e quando perde o emprego por esta sua incapacidade, é afastado por Mária Alieksándrova para a fazenda que os sustenta. A filha é uma romântica shakespereana que vive escandaloso caso às escondidas (mas descoberto) com Vassíli, um reles professor do colégio distrital. Este, com vil atitude após desavença com Zina, entrega uma das cartas que trocou com sua amada para que se torne pública. Conclusão: Zina fica desonrada em Mordássov. No final do enredo, a reconciliação entre os dois ex-amantes, quando da morte deste por tísica forçada. O romanticismo dostoievskiano investe em algumas breves páginas no rápido e último convívio entre os dois jovens em casa paupérrima do ex-professor em bairro também miserável de Mordássov. Aliás, basicamente o único momento de descrição com certo acento social da classe desfavorecida na crônica. Para culminar no Romantismo apelativo, a pobre mãe lavadeira de Vassíli acusa, num rompante, ao ver o filho morto, Zina como responsável de tirá-lo de sua vida. Zina, entorpecida pelo cansaço de horas a fio ao lado do moribundo, mal escuta a acusação materna e sai, quase enlouquecida, do casabre. Cena seguinte: Pável Alieksándrovitch a intercepta e deseja retomar sua relação de noivado, mas o olhar emblemático de Zina o despede definitivamente.
Mária Alieksándrovna faz parte de um quadro de mulheres dispostas a entreter-se na vida alheia custe o que custar, nem que para isso precise manipular, de todas as formas, a realidade que lhe interessa. Não é único exemplo no enredo, mas, certamente, é o mais expressivo, ao ponto de ser chamada pelo narrador de heroína. A seu lado, surgem outras quatro escandalosas e sarcásticas senhoras: Natália Dmítrievna, Anna Nikoláievna, Felissata Mikháilovna e Sófia Pietrovna. Com critérios de amizade e de solidariedade bastante efêmeros e, portanto, duvidosos, estas mulheres representam a mais chantagista categoria de caráter da província de Mordássov. Cada uma, com seu interesse adequado, procura puxar para si o príncipe K, motivo de “cabo-de-guerra” entre estas mulheres e Mária Alieksándrovna. Mas tudo se resolve para, novamente, complicar-se. Em casa de Mária Alieksándrovna, quando das ironias e indiretas destas mulheres para testar o assunto do casamento entre Zina e Gavrila (o Titio), Mária Alieksándrovna toma a dianteira, ao perceber que está perdendo terreno em suas intenções, e comunica oficialmente (à sociedade ali representada por estas mulheres) o pedido de casamento do príncipe. Surpreendidas e julgando-se valorizadas pelo segredo íntimo da família, estas mulheres cumprimentam Zina, Afanassi e Mária Alieksándrovna, além, é claro, do príncipe K.


Entra em cena, então, o outro lado de interesse, no caso, Pável Alieksándrovitch Mozglyákov. Este induz com mentira, a realidade vivida pelo Titio, tornando-a sonho. Como a memória do príncipe é imprestável, ele acredita mesmo que o pedido de casamento não passa de um sonho com uma “moça encantadora”, no caso, Zina. Derrota implacável Pável Alieksándrovitch aplica em Mária Alieksándrovna. Anteriormente a esta cena, Pável Alieksándrovitch havia destratado Zina (e, ela, a ele, chamando-o de imbecil) ao escutar, atrás de porta, a enganação que ambas fazem com o príncipe ao completar a bebedeira dele iniciada em casa de Anna Nikoláievna. De posse desta traição que se julga vítima, Mozglyákov esculacha Zina e pretende fazer o mesmo com Mária Alieksándrovna. Esta, rapidamente, inverte a situação: chama-o de amigo e explica seu plano ao casar Zina com o príncipe e, garante, quando Gavrila morrer, Mozglyákov conquistar e casar com Zina. O rapaz anima-se, mas, depois, sozinho com a noite, a neve, a solidão e o bairro distante e perdido em que se encontra, acredita que, mais uma vez, está sendo passado para trás pela esperta mãe de Zina. Aí, o trabalho onomástico de Dostoiévski com o sobrenome de Mozglyákov, de “mozglyák” (“homem de cérebro”; “homem racional”) e de “mozglyávi” (de “fraqueza”; de “mirrado”). Este antagonismo forma a psicologia de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, tornando-o capaz de investidas racionais contra o Titio e a mãe de Zina, assim como lances de estupidez e de fraqueza ao manejar seu comportamento em situações de crise que enfrenta.

Para salvar a própria mãe, Zina investe contra a própria mãe para, romanticamente e sem grande raciocínio, denunciar toda a falcatrua das duas, puxando para si a responsabilidade da sedução que fizeram com o velho e postiço príncipe K. Inicialmente, Mária Alieksándrovna afirma assumir perante a filha toda responsabilidade por algum fracasso do plano. Após o desmaio de Mária Alieksándrovna, consequência da “certeza” do príncipe ao dizer que o pedido foi sonho e, portanto, equívoco de Mária Alieksándrovna, ao retomar a consciência, a mãe de Zina só tem a gritar com a filha para que esta não fale algo contra a própria família. Tudo isso é em vão, pois o discurso de Zina é para achincalhar não somente com sua família como, também, com a sociedade mediocrizada por aquele bando de mulheres e homens que se submetem ao despotismo delas e deles próprios. Zina é a voz, um tanto inconsequente, rouca e romântica, da libertação de um mundo social que controla, que oprime e dita as normas do que vem a ser o certo e o errado conforme seus interesses. Mas o discurso de Zinaída Afanássievna não tem eco nem tampouco durabilidade, pois seu fim é, apenas, o de não mais permanecer ali em Mordássov com sua família. Depois do escândalo sociofamiliar, Mária Alieksandrovna, o marido e a filha mudam-se para casa no campo e, dali, de uma janela, Mária Alieksándrovna espreita seu cacoete de inspecionar a vida alheia. Vê, ao longe, por exemplo, o enterro do velho príncipe. Passados três anos, na conta do narrador-testemunha, uma nova vida surge para esta família, agora, frequentando os salões da nobreza. Neste momento da narração, numa espécie de conclusão do capítulo XV (encontramos a separação no texto por algumas linhas da suposta conclusão dos fatos em Mordássov), dois personagens sucumbem ao término do relato: Afanassi Matvêitch (que não é mais citado no enredo) e Pável Alieksándrovitch Mozglyákov. Este parece, particularmente, ter uma sobrevida ao encontrar, em nobre salão de festa em local distante da Rússia, Zina. Esta está casada com velho general e, ao ver seu antigo desafeto, o ignora completamente. Após esta cena, Moglyákov depara-se com Mária Alieksándrovna (toda engalanada). Esta, ao menos, troca algumas palavras com o convidado para, em seguida, deixá-lo só. Mordássov sequer é mencionada. Em seguida, este ainda acredita na conquista barata, ao se mostrar apaixonado e vítima, resquício de um romantismo afetado e sugerido, outrora, por Mária Alieksándrovna, para conquistar Zina. Cansado de esperar (e com dor nas pernas) o olhar de reconhecimento de Zina pelo sofrimento amoroso dele (ou sequer um olhar ao menos), deixa o salão bastante humilhado. No dia seguinte, em plena viagem, tem ideias diferentes que, certamente, farão com que ele toque a vida para frente…


O final de O sonho do Titio corrobora com a intenção dos casamentos com interesses financeiros, tema universal de toda atenta obra que retrata a questão sociofamiliar. Esta análise bem calculada já havia sido apresentada por Mária Alieksándrovna à Zina no capítulo V:

Permita-me expor meu ponto de vista e no mesmo instante concordarás comigo. O príncipe vai viver mais um ano, se muito dois, e, a meu ver, é melhor ser uma jovem viúva do que uma velha solteirona, já sem falar que, por morte dele, serás uma princesa, livre, rica, independente! Minha amiga, talvez vejas com desprezo todos esses cálculos – cálculos com a morte dele! Mas eu sou mãe, e que mãe me condenaria por enxergar longe? (…) Enfim, compreenderá… isto é, estou simplesmente querendo dizer que com a morte do príncipe poderás te casar de novo com quem quiseres…

domingo, 7 de fevereiro de 2016

O CROCODILO



          O título O crocodilo pode ser intrigante para quem não está acostumado com a literatura de Fiódor Dostoiévski, embora as surpresas que o autor de Humilhados e ofendidos (1861) apresenta em alguns de seus títulos mostram a capacidade também de Dostoiévski em atrair o seu público através de título estranho ou curioso. Uma lista surge com Bóbok (1873), Uma criatura dócil (1876), O duplo (1846), O idiota (1868), Os demônios (1871), O eterno marido (1870), Sonhos de Petersburgo em verso e prosa (1873), entre outros. Do resgate social em O crocodilo (1864), como chama atenção Boris Schnaiderman, “Fica evidente (…) a relação do jornalístico (…) com uma reflexão lancinante sobre o homem e a sociedade.”. Em outros títulos, o autor também explora obras diretamente ligadas ao cotidiano e aos jornais e revistas russas de sua época, como Bóbok, Sonhos de Petersburgo em verso e prosa, Uma criatura dócil (1876) e O senhor Prokhartchin (1846), além de passagens significativas de seus romances da maturidade. Diário de um escritor foi desenvolvido por Dostoiévski entre os anos de 1873 e 1878. Boa parte da preocupação do escritor de Gente pobre (1846) pelo social imediato está presente nestes seus textos, assim como a colaboração que faz nas revistas de seu irmão Mikháil Mikháilovitch Dostoiévski em tempos de Vrêmia (O Tempo) e do Epokha (A Época). A atividade jornalística de Dostoiévski é combustível em sua literatura, assim como seu ponto de vista é recorrente em nível das críticas que faz em textos que diversas vezes tornam-se híbridos em seus gêneros, transitando entre a ficção e a não-ficção. Para o leitor acostumado com apenas Crime e castigo (1866) e Os irmãos Karamázov (1880), esta atividade prosaica e eficaz do autor pode passar desapercebida, mas ela também existe nestes textos. Meses depois da escrita de O crocodilo, Dostoiévski escreve Memórias do subsolo, também no ano de 1864. Não estariam nestes dois textos, apesar de suas diferenças, uma diretriz bastante próxima em nível do discurso social e filosófico proposto pelo autor?, sugere Boris Schnaiderman. Em Notas de inverno sobre impressões de verão também já se percebe indícios daquilo que “o homem do subsolo” ironizaria e conceituaria sobre a sociedade e as “habilidades” que o homem tem para deslocar-se do âmbito social, embora de modo mais profundo.


Em O crocodilo, encontramos poucos personagens que se relacionam entre si, pois como conto (ou novela chamada por alguns críticos) precisa, por seu enredo, transitar num número reduzido de protagonistas e de coadjuvantes. Como o texto é inacabado, talvez por isso a “classificação necessária e sistemática” de inclui-la também como novela, etc. Dostoiévski deixa escrito rascunhos sobre a continuação de O crocodilo, com tópicos e observações delirantes, com sugestões de continuidade para alguns personagens e com desenvolvimento de fantasias de conotação sexual. Certamente ideias do rascunho que se concretizadas no texto “concluído” pelo autor enfrentaria problemas com a censura de sua época.

Em nível dos personagens, em número de treze, desconsiderando dois ou três que são citados em artigo de O Cabelo (Lukianov; Afímia Skapidárova; um soldado), pode-se centrar a discussão e suas simbologias em papéis definidores para fundamentar a sátira à burocracia como a crítica ao capitalismo que Dostoiévski emprega em seu texto.

Começando pelo narrador, percebemos a testemunha construída por Dostoiévski para que perambule ao lado do casal Ielena Ivânovna e Ivan Matviéitch. A dependência que o narrador tem deste casal é notável, tanto pela sedutora beleza e futilidade de Ielena Ivânova, como pelo autoritarismo do amigo que vem desde a infância do narrador, com o desejo deste de já ter rompido tal amizade. Entretanto, como se vê, essa ruptura não se concretiza. O oscilar da personalidade do narrador Siemión Siemiôvitch é também notável, pois ao mesmo tempo que odeia o amigo, adora a esposa deste e sugere a permanência deste triângulo social dentro do próprio crocodilo, local que possibilitaria a presença dos três, nas palavras de Ivan Matviéitch. Siemión Siemiôvitch passa tal ideia para Ielena Ivânovna. Apesar de sua condição de dependência para com o casal, o narrador não deixa de ser opiniático e julgador, criando juízos de valor para os demais personagens, utilizando recursos como o cinismo, o puxa-saquismo, a submissão, assim como alguns conceitos unilaterais. Como conversa com o leitor, sugere crítica a todos àqueles que convivem com ele. O que se percebe é que sua dificuldade está em abandonar o seu meio social, seja com o casal protagonista, seja com aqueles que se relaciona na repartição na qual trabalha. Afinal, nada mais natural para a maioria das pessoas, para viver em sintonia com o mundo, do que fazer concessões, às vezes, desagradáveis. Para o narrador, o alemão é um ganancioso, Ielena Ivânovna, fútil, Ivan Matviéitch (Matviéievitch), leviano e invejoso. Vantagem do narrador Siemión Siemiôvitch sobre os demais personagens, além de comandar a narrativa: tem consciência do absurdo que ocorre com o amigo dentro do crocodilo. Os patronímicos dos personagens tornam-se corruptelas criando, desta maneira, intimidade e cotidiano.

Ivan Matviéitch é apresentado inicialmente como marido de uma bela e jovem mulher. Com algum problema de saúde (que o leitor nem desconfia qual seja), ganha passagens para o estrangeiro para lá se tratar, embora tenha mais vontade de conhecer as coisas novas que o exterior proporciona (no caso, a Europa, a ocidentalização ironizada na obra). De saúde precária, encontramos o mesmo Ivan Matviéitch de bem com a vida e com sua saúde quando no interior do crocodilo, metáfora do capitalismo (e de sua ocidentalização) na Rússia pós 1861. Do doente funcionário público bancado por sua própria repartição, Ivan Matviéitch torna-se um megalomaníaco e patético homem cooptado pela parafernália do sistema capitalista na Rússia. Sem o capitalismo em sua vida, um homem doente; com o capitalismo, sua saúde melhora. No decorrer do enredo, torna-se irritado com algumas colocações contrárias à disposição dele pelo amigo, assim como autoritário em relação à esposa e ao próprio Siemión Siemiôvitch.

Ielena Ivânovna é o símbolo da beleza e da futilidade, sendo requisitada pelo próprio marido, pelo narrador, pelo Tiemofiéi Siemiônitch, pelo escurinho, etc. Sensual, leviana e adulterina, credita-se viúva com direito ao dinheiro do ordenado do marido que deveria estar em casa e não dentro de um crocodilo. Aqui, a argumentação de Siemión Siemiôvitch de que seu amigo Ivan Matviéitch ama Ielena Ivânovna faz pouco efeito na limitada esposa. Ao escutar, entretanto, os projetos que o marido tem para ela de recepcionar em casa a intelectualidade que ele preparará de dentro do crocodilo com suas palestras, ela, imediatamente, afirma precisar de todo o salário do marido para a compra de inúmeros vestidos.

Tiemofiéi Siemiônitch é reprodução de fala alheia, no caso, da fala capitalista de Ignáti Prokófitch, pois é homem de pouca inteligência. Sua característica o impulsiona para ser a metáfora do funcionalismo da sociedade russa, já que tem 50 anos de atividade neste ramo.

Os alemães do enredo são protagonizados pelo alemão (dono do crocodilo Carlinhos/ Karlchen) e sua Mutter. Frios e arrogantes como o sistema de troca capitalista, sua fonte de riqueza, inicialmente, é o crocodilo para, em seguida, ser também o prisioneiro do vazio do estômago do animal aborígene. O vazio capitalista impera naqueles que devoram os outros por seu sistema e princípio econômico.

O capitalismo é personagem a ser analisado no enredo, pois é a metáfora de Carlinhos, o crocodilo. O que o rege é o “princípio econômico em primeiro lugar” e a “atração de capitais estrangeiros”. Deste modo, o crocodilo valoriza Ivan Matviéitch e este se sente valorizado por seu aspecto externo, pois dentro do animal só há o vazio, segundo a avaliação de Ivan Matviéitch. Completamente desumano, o crocodilo/capitalista é defendido por alguns jornais, ressonância do que está acontecendo de fato em nível social na Rússia. A novidade contagia, assim como intelectuais promovem o novo sistema adaptado num clima inóspito, como o narrador avalia. A arrogância de Ivan Matviéitch é proporcional ao destaque que o crocodilo o permite, ou seja, a possibilidade de anunciação do sistema capitalista nas palestras que Ivan Matviéitch deseja fazer aos intelectuais que visitarão a sala do crocodilo. O círculo do dinheiro se completaria desta forma, pois paga-se o alemão para poder escutar o vazio interior do animal na metáfora do intelectual Ivan Matviéitch com seu discurso vazio para intelectuais dispostos a escutar as façanhas do dinheiro na nova sociedade que se deve criar na Rússia com uma burguesia capitalista.



Dostoiévski escreve O crocodilo no ano de 1864. Graças aos acessos que deixou de seus rascunhos, sabemos da intenção do autor em dar continuidade a este texto inconcluso. Entretanto, a análise possível que se pode fazer é com aquilo que se articula dentro da evolução dos subepisódios decorrentes do episódio mais significativo e simbólico do crocodilo voraz engolindo Ivan Matviéitch, após breve provocação deste. O crocodilo é visto como, inicialmente, um animal que certamente “perdera todas as suas faculdades ao contato com o nosso clima, úmido e inóspito para os estrangeiros.”. Surge aí, então, a possibilidade de leitura para a voracidade do capitalismo na figura do crocodilo com suas mandíbulas e interior vazio. O capitalismo passa a ser construído por Dostoiévski a partir desta metáfora. Mas com que objetivo o autor de Os demônios trabalha com a realidade de modo fantástico para retratar o que a Rússia está vivendo na segunda metade do século XIX?


Dostoiévski aproxima-se do ocidentalismo até ser preso e ser enviado aos trabalhos forçados na Sibéria. Passados os dez anos a que foi submetido em Omsk, em Semipalatinsk e em Tver, o autor de Recordações da casa dos mortos (1861) compreende que está no povo russo a salvação de sua pátria e, no tzar, o pai de toda a Rússia. Sua guinada eslavófila acontece e os ataques aos intelectuais que creditam no capitalismo a salvação da Rússia é implacável. No plano socioeconômico, a Rússia vive um dilema profundo, pois com a libertação dos servos em 1861, estes são completamente abandonados. Uma das possibilidades dada aos camponeses é partir para as cidades, engrossando a mão de obra das indústrias e a miséria citadina. Os impostos abalam os proprietários de terras, assim como a miséria continua compartilhada para os mujiques. Na prática, as mudanças exigidas pelos mais revolucionários tornam-se basicamente reformas inócuas. Uma das vertentes ideológicas que surge é o investir no capitalismo. Para isso, é necessário abrir a cultura e a mente das classes sociais russas para o Ocidente. Surge, desta tentativa, o choque e a resistência de alguns intelectuais, assim como outros acreditam que está no capitalismo a solução da Rússia ao incorporar o princípio fundamental do ocidentalismo para criar, entre outros mecanismos, uma burguesia endinheirada. Esta dualidade será trabalhada por Dostoiévski em O crocodilo, de modo crítico e destruidor, ao mostrar a voracidade do capitalismo e a estagnação que o dinheiro causa no homem com sua frieza, sua impassibilidade e sua capacidade de fazer os homens tornarem-se autômatos em suas funções alimentadas pelo capital e pela maneira de pensar do mundo ocidentalista.


O enredo de O crocodilo é construído com habilidade admirável, pois Dostoiévski acrescenta, ao fantástico estranhamento, o estranhamento do capitalismo que divide opiniões, causa desconforto e dúvida nos protagonistas. O início do embate surge com algo bastante corriqueiro: um convite de Ielena Ivânovna ao marido para verem certo crocodilo na Passagem. Como está de licença de saúde da repartição, Ivan Matviéitch aceita curioso o convite e acrescenta que será bom acostumar-se com o aborígene animal vindo da Europa, já que fará em breve viagem. O dono do crocodilo é um alemão, assim como comanda o animal em seu negócio. Se o crocodilo é o capitalismo europeu, surge o primeiro comentário irônico, pois com o clima inóspito da Rússia, certamente o crocodilo perdeu todas as suas faculdades… Ielena Ivânovna vê o crocodilo não da maneira que imaginava, ou seja, o vê de modo diferente do que está a ver. O narrador sai, então, com o seguinte comentário: ela imaginava ver o crocodilo como um diamante. Ielena Ivânovna afirma que o crocodilo “não é vivo”. Deste modo, o capitalismo é diamante e, como todo diamante, não pode ser riscado por outro mineral, mas tem como característica a fragilidade. Como todo sistema ideológico, este tem consistência e fragilidade, conforme o homem o vê deste ou daquele modo. É assim que Ielena Ivânovna enxerga inicialmente o crocodilo. Também acha o animal nojento e teme que ele povoará os seus sonhos. Diante deste comentário, o alemão a faz descer à realidade, pois argumenta ironicamente que, ao menos, o crocodilo não a morderá em sonho. De fato, o dinheiro pode morder as pessoas no cotidiano, engolindo-as vorazmente. Em seguida, Ielena Ivânovna compara, ao ver na sala do crocodilo, macacos com seus amigos e conhecidos. De repente, Ivan Matviéitch é engolido pelo crocodilo. Estupefação geral, paralisia, preocupação e gritos entre os presentes. O comentário do narrador é autêntico: poderia ser pior caso tivesse sido com ele, para, depois, afirmar que Ivan Matviéitch está liquidado! Assim a crítica ao capitalismo vai ganhando forma no texto. O problema é que o crocodilo engoliu todo um funcionário, ou seja, todo um burocratismo que pode comprometer a estrutura do animal ou, ainda, do capitalismo na Rússia burocratizada em suas repartições. A solução de Ielena Ivânovna é “espancar” o animal, o que pode ocasionar vaias e repúdio das crônicas progressistas e das folhas satíricas da cidade. Surge, neste instante, de dentro do crocodilo, a voz firme e convicta de Ivan Matviéitch afirmando que está bem de saúde. Sua preocupação é com os seus superiores, pois estes acreditam na viagem à Europa para tratamento de saúde de seu funcionário. O engolido tem também “presença de espírito”. O crocodilo/capitalismo faz bem ao seu próprio alimento. A mútua alimentação entre engolido e engolidor é o que se destaca em primeiro lugar, ou seja, o princípio econômico, pois, desta forma, o dono de Carlinhos pode aumentar o valor do ingresso para ver o crocodilo em sua sala, assim como não precisa mais alimentar o animal. Comentário de Siemión Siemiônitch no momento destes comentários: “infeliz prisioneiro”. O narrador comporta-se como o único dos personagens com real distanciamento em relação a tudo aquilo que ocorre do “Relato verídico de como um cavalheiro de idade e aspecto conhecidos foi engolido vivo e inteiro por um crocodilo da Passagem, e o que disto resultou.”. O narrador propõe fazer queixa aos superiores, mas Ivan Matviéitch argumenta os custos altos para abrir o crocodilo; já o alemão lembra “o amor ao ganho”. Para Ivan Matviéitch, o crocodilo é macio e quente; para o narrador, ele está cansado de toda esta história; para Ielena Ivânovna, ela de nada entende do princípio econômico. Ivan Matviéitch orienta o amigo a procurar conselho com o velho Tiemofiéi Siemiônitch. Com a entrada deste personagem na trama, percebe-se que suas ideias são a reprodução de Ignáti Prokófitch, pois este é capitalista, acha a indústria na Rússia insuficiente, sendo, deste modo, necessário “engendrá-la”, ou seja, ela, a classe média ou, ainda, a burguesia, e crê ser necessário atrair o capital estrangeiro para o país. Siemión Siemiônitch tece, neste momento da narrativa, ironias aos benefícios do capital estrangeiro na Rússia como anunciam os jornais. Para Tiemofiéi Siemiônitch “o caso é suspeito e inédito”, mas explicado pela vida que Ivan Matviétich levava até então. Aqui alusão ao comportamento arrogante do engolido pelo capitalismo, assim como a referência à vida fútil da esposa do mais novo capitalista na sociedade russa. O velho Tiemofiéi Siemiônitch opina sobre o episódio da seguinte maneira: “o capital do homem do crocodilo duplicou-se por intermédio de Ivan Matviéitch, e nós, em lugar de proteger o proprietário estrangeiro, queremos abrir a barriga do próprio capital de base.”. O que se deve fazer é estimular a burguesia! Siemión Siemiônitch contrapõe que “o senhor exige uma abnegação quase antinatural do infeliz Ivan Matviéitch!”, ou seja, o homem russo dividido com a nova ideia capitalista na Rússia e sua formação tipicamente eslavófila. Comentário raso de Tiemofiéi Siemiônitch: quem ordenou entrar no crocodilo? Ou seja, se não tens capacidade para fazer algo, por que arrisca em fazê-lo? Atitudes de homens assim são vistos em Rodion Románovitch Raskólnikov, em Crime e castigo (1866), em comentário de Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov. Para resolver o impasse, Siemión Siemiônitch sugere ao velho Tiemofiéi Siemiônitch uma “missão especial” de Ivan Matviéitch para observar as profundezas do crocodilo sem, no entanto, deixar de receber seus vencimentos enquanto funcionário de sua repartição. Colher dados do inusitado para análise, argumenta o amigo do prisioneiro, mas Tiemofiéi Siemiônitch lembra que a Rússia tem muitos dados e não sabe o que fazer com eles… Termina, desta forma, o capítulo II com o comentário do narrador fazendo referência ao episódio como um “sonho monstruoso”. No capítulo III, a ambição capitalista de Ivan Matviéitch ganha forma em seu projeto de realizar palestras aos visitantes, em especial, aos intelectuais. Assim instruirá o público e deseja, desta forma, uma carreira brilhante para si mesmo. Sente-se orgulhoso, quase não usa os pronomes pessoais e acredita que do crocodilo sairá a “vedade e a luz”. Será um “novo Fourier”, mas, agora, do capitalismo, e pretende desenvolver nova teoria das relações econômicas. Pensa em projeto para Ielena Ivânovna e deseja mostrar à sociedade quem ele realmente é! Ele e a esposa, segundo pensa Ivan Matviéitch, irão longe, pois o casal reúne as características exigidas para a ascensão capitalista: a inteligência dele e a beleza e afabilidade de Ielena Ivânovna. Basta que a esposa, para atualizar-se e ter melhor conhecimento, leia o dicionário enciclopédico de Kraiévski! (Aqui, Dostoiévski levanta a celeuma da época sobre a capacidade de Kraiévski escrever sobre tudo o que é assunto neste dicionário com investimento do governo.) Como é o interior do crocodilo?, deseja saber o narrador. Vazio, responde a vítima do crocodilo e completa: “possui somente mandíbulas, providas de dentes aguçados, e a cauda consideravelmente longa; realmente, é tudo.”. Eis a definição, no momento do enredo, do capitalismo. O crocodilo também é elástico, informa Ivan Matviéitch. Este pensa já na sua primeira conferência a realizar ali na Passagem: começará com a etimologia da palavra “crocodilo”. Talvez do italiano “crocodillo”, “voracidade”; ou do francês “croquer”, “comer”, “devorar”. Tanto o crocodilo como Ivan Matviéitch são alimentados mutuamente e, mesmo deitado de lado, significando em russo “preguiça”, ele é capaz de ter ideias. Assim inventará “todo um sistema social” e, para isso, basta negar tudo o que já foi dito inicialmente. Viverá mil anos como os crocodilos, embora reconheça que sua roupa não tenha esta durabilidade e, assim, corre o risco de ser destruído pelas substâncias do estômago do selvagem animal. E a liberdade?, indaga Siemión Siemiônitch ao amigo prisioneiro. O Sócrates ou Diógenes, ou ambos, como pretende ser Ivan Matviétich, lembra que os sábios amam a ordem, enquanto os selvagens, a independência. Seu temor: as revistas e os jornais; oficializa Siemión Siemiôvitch como seu secretário. Este lerá todos os jornais para ele. O narrador lembra ao alemão da efemeridade do crocodilo e de Ivan Matviéitch, assim como da possibilidade de exigência de pensão pedida judicialmente por Ielena Ivânovna. O alemão, temeroso, faz diversas exigências para vender o crocodilo, mas o que irrita profundamente o narrador é o alemão querer a patente de coronel do exército russo! Siemión Siemiôvitch vê tanto no alemão como no seu amigo “intoleráveis as esperanças antinaturais daqueles dois imbecis.”. Por fim, o narrador sonha com macacos e com Ielena Ivânovna. Em casa desta, o narrador vê o desinteresse de Ielena Ivânovna pelo marido preso no interior do crocodilo, insinuando que já tem amante, um tal de escurinho. A beldade chega, inclusive, a não lembrar do próprio marido, mas de seu dinheiro. Siemión Siemiônitch recorda da possibilidade dos três habitarem o interior do crocodilo. Já na repartição, através dos jornais O Cabelo e A Folhinha, as notícias do episódio com Ivan Matviéitch aparecem bastante distorcidas. Nada mais é possível fazer para conter os boatos que se acumulam. O capitalismo é notícia. No fim do relato, duas homenagens a Nikolai Gógol, quando Siemión Siemiôvitch procura esconder seu rosto na gola de seu capote e quando Prókhor Sávitch baixa o seu nariz para seus papéis. Fiódor Dostoiévski quer fazer com O crocodilo uma imitação de O nariz de Gógol.