O título Bobók, considerado o vocábulo em russo, significa “fava”, podendo
também ser admitido como "falha", de favar. Em nível dos personagens, o conto é
estruturado em um narrador, sua relação rápida com um retratista, com eventuais
editores, um parente morto distante e a família deste e, enfim, a um grupo de
mortos que o fazem escutar quando ele, o narrador, Ivan Ivánitch, distraído,
dormita em cima de uma sepultura. Em nível do grupo de mortos, há diferentes
classes sociais da Rússia do século XIX, predominando, entretanto, a classe
abastada. Desta conversa, o narrador Ivan Ivánitch faz o leitor tirar algumas
conclusões, assim como o conto servirá como crítica à classe rica que se
deteriora moralmente, em situação similar porque o morto quando fede, no conto,
é porque fede em sua moral construída em vida, e resto de vida que há nos
mortos reside na consciência destes.
Dostoiévski escreve Bobók, no ano de 1873, também em
resposta aos ataques que sofre com a publicação de Os demônios em 1871. Dostoiévski acompanha intensamente, em
Genebra, a atividade política de Mikhail Aleksandróvitch Bakunin (1814-1876) a
partir da integração entre imigrantes revolucionários russos. Nietcháiev teria
sido o escolhido para representar, na Rússia, o pensamento de Bakunin, com
direito à documentação em seu nome assinado por Bakunin para representá-lo em
seus interesses políticos num Comitê Geral. Usando deste poder, Nietcháiev
abusa de suas atribuições, terminando por assassinar o estudante da Academia de
Agricultura Ivanov, por este discordar e não querer mais fazer parte dos
quintetos e da organização revolucionária clandestina. Spítkin, irmão de Anna
Grigórievna Dostoiévskaia, segunda esposa de Dostoiévski e que fora sua
estenógrafa, também fazia parte da organização revolucionária. Está instalada,
então, a Justiça Sumária do Povo. A
partir destes pressupostos e do assassinato de Ivanov em 21 de novembro de
1869, Dostoiévski deseja dar uma resposta aos revolucionários russos. Em carta
a Máikov, datada de 24 de fevereiro de 1870, Dostoiévski afirma, impressionado
pela morte do estudante Ivanov, estar elaborando uma história mais próxima da
realidade do que a construída em Crime e
castigo, que muito promete, pois causará um grande efeito no público
leitor.
A resposta de Dostoiévski é rápida aos niilistas, aos
revolucionários e aos socialistas: “o ateísmo e o socialismo são estranhos ao
povo russo e até incompatíveis com sua natureza”. Segundo Dostoiévski, uma
sociedade sem Deus apoiada unicamente na ciência e na razão não estabelece
relações sólidas, pois é inútil. A dicotomia torna-se presente e cresce em sua
ideia central: os conceitos políticos, ideológicos e religiosos de Piotr
Vierkhoviénski são rechaçados pela ideia russa de Chátov, enriquecida pela
universalidade de Tíkhon. Se Piotr “vence” Chátov, o mesmo não acontece com Stavróguin,
o ocidentalista e niilista rico e inteligente, “derrotado” por Tíkhon, o
ex-bispo profético: Stavróguin enforca-se, destruindo as suas manifestações
extremas da paixão e do prazer que o tornaram vazio interiormente. Ao perder
seu equilíbrio interior desempenhado ao longo do enredo de Os demônios, Stavróguin sai de cena para não se denunciar através
de sua confissão da “vida de um grande pecador”. Está morto o ocidentalismo em
relação à ortodoxia russa. O diálogo entre Tíkhon e Stavróguin antecipa as discussões
religiosas e filosóficas entre Ivan e Aliocha em Os irmãos Karamázov, assim como o enforcamento de Stavróguin
corresponde ao tiro dado por Svidrigáilov em si mesmo, pois não há perdão para
quem causa sofrimento nas crianças.
Outro motivo da escrita de Bobók
pode ser entendido pelo comentário de um colunista de “A voz”, usando a
pseudonímia Nil Admirari, ao atacar um retrato de Dostoiévski exposto no Museu
de Belas Artes: “o retrato é de um homem alquebrado por uma doença grave.”.
Nesta época, Dostoiévski era acusado de fazer literatura tratando somente da
anormalidade, da psicopatia e do desequilíbrio. Neste ponto, Bobók dá resposta a “Uma certa pessoa”.
Finalmente, Dostoiévski também parodia o romance de Boboríkin, Sacrifício noturno. Este escritor tinha
como apelido Pierre Bobó.
Mas o principal objetivo de Dostoiévski é, através deste conto
fantástico, descrever de modo conciso a desarticulação moral das camadas
elitizadas da sociedade russa do século XIX. O narrador, no caso Ivan Ivánitch,
também autor, não vê necessidade de prefácio para seu conto, embora faça um
micro-prefácio. Em seguida caracteriza-se pelas opiniões de um conhecido seu,
assim como define-se tímido. Lembra que já o consideraram louco. Comenta de um
retrato que se deixou pintar e o comentário do pintor com o realismo das rugas
vivinhas do retratado na tela. Comenta, também, de obras suas recusadas por
editores e afirma que o tempo é de palermas e não de Voltaire! Discorre sobre
conceitos de loucura, inteligência e não loucura, além de seu estilo lembrado
por alguém como truncado. Até acha que deve ser mesmo truncado, pois não passa
muito bem neste momento de criação literária, pois a cabeça dói, seu caráter
muda e está a escutar, ao que parece, vozes. Escuta, por exemplo, a palavra Bobók. Deste modo, procura diversão, mas
termina por ir em enterro de parente. Lá, distraído, dormita sob uma sepultura
e, entre sonho e semiconsciência de estar acordado, escuta conversas entre
diversos mortos. Antes, ao passear pelas sepulturas, percebe a divisão das
classes sociais. A partir deste ponto da narrativa, o estranhamento do
fantástico predomina até o espirro do narrador que faz os mortos se calarem. Da
galeria dos mortos, há General-major, funcionário bajulador deste General, uma
senhora que aprecia jovens rapazes, um barão petulante, uma leviana mocinha de
15 anos, uma ilustre grã-senhora, um engenheiro, um conselheiro efetivo
secreto, um filósofo, uma grã-fina e somente um representante da classe
ordinária, no caso, um vendeiro. Após escutar todos os barbarismos de
imoralidade e de amoralidade, Ivan Ivánitch não aceita nem se acostuma com
aquilo que ouviu. Entretanto, tem a esperança de ver a história que escreveu publicada
na revista Grajdanin.
Algumas pérolas do narrador
Ivan Ivánitch:
· “Hoje o humor e o bom estilo estão desaparecendo e se aceitam insultos
em vez de gracejos.”;
· “Não me ofendo: não sou desses literatos que levam o leitor ao
desatino.”;
· “Ideias mesmo andam escassas, porque hoje só há lugar para fenômenos.”;
· “Teu estilo, diz ele, está mudando, está truncado. Truncas, truncas, e
sai uma oração intercalada, após a intercalada vem outra intercalada, depois
mais alguma coisa entre parênteses, e depois tornas a truncar, a truncar…”.
Bobók é conto pequeno e dividido por
blocos ou fragmentos narrativos separados por estrelinhas, ou seja, graficamente assim apresentado: * * *. Seu narrador é
Ivan Ivánitch e, sua confusão, com Fiódor Dostoiévski pode ser notada. O estilo
truncado, anunciado pelo próprio narrador segundo o comentário de um conhecido
seu, é a marca da narrativa, assim como o fantástico registra, metaforicamente,
a realidade a ser mostrada e analisada. Alguns conceitos são trabalhados pelo
narrador e, também, pelo mundo dos mortos que comunicam seus pensamentos ao
distraído narrador que termina por dormitar em cima de um túmulo em recepção de
um parente distante que morre. As mudanças de ideias discorridas ao longo do
conto faz este se apresentar fragmentado ou, ainda, atrapalhado
propositadamente pelos atropelos da forma de raciocinar do narrador. Por fim,
este narrador sugere a possibilidade de seu texto ser publicado no Grajdanin, revista que Dostoiévski assume como redator-chefe e que lhe traz
dissabores internos e externos. Internos por seus atritos com o príncipe
conservador Mechtchérski, dono da revista; externos, por seus pares da
literatura estranharem e atacarem Dostoiévski por trabalhar em revista
reacionária. De fato, a revista e o príncipe iam de encontro às reformas
discutidas e conquistadas na Rússia. Dostoiévski, por seu lado, era defensor
das reformas sociais iniciadas por Alexandre II com a libertação dos servos em
1861. A ambição de Dostoiévski nesta revista era poder ampliar suas discussões
sociais com o publico leitor. No ano de 1874, Dostoiévski não trabalha mais na
revista Grajdanin, rompendo com o
príncipe Mechtchérski.