“Os grandes pensamentos originam-se mais de um grande sentimento do que uma grande inteligência.”
(Páviel Pávlovitch Trussótzki
lembrando frase dita
por Alieksiéi Ivânovitch
Vieltchâninov quando amigos em T.)
No
ano de 1869, Dostoiévski passa ainda por percalços econômicos, em Dresden, e
oferece uma novela curta para o editor Strakov. Inicia então o texto e termina
por estendê-lo mais do que inicialmente imagina. O tema, então bastante em voga
na literatura ocidental, em especial a francesa, trata das relações entre um
marido, sua mulher e seu amante. As origens deste romance não são totalmente
claras, embora talvez a relação mais possível seja a reminiscência de
Dostoiévski quando em Semipalatinski, depois dos quatro anos que vive confinado
na prisão de Omsk. Na ocasião, seu amigo, o barão Vrangel, mantém um caso com
uma mulher casada com um general, no caso, a sedutora e voluptuosa senhora E.
I. Guiérngross. Dostoiévski também vive algo próximo a este tipo de enrascada,
pois ao namorar Mária Dmítrievna, esta, em determinado momento, viaja e tem um
relacionamento com um amante antes de casar com Dostoiévski. Em suas memórias,
Anna Grigoriévna Dostoiévskaia, a segunda esposa do escritor, faz comentário do
caráter autobiográfico de O eterno
marido, referindo-se no que consta ao anedótico.
Em
O eterno marido, as complicações se acentuam quando da descoberta do marido de Natália
Vassílievna Trissótzkaia, Páviel Pávlovitch Trussótzki, de cartas que a mulher
trocava com seus amantes, descobrindo desta forma sua infelicidade. Entretanto,
Natália Vassílieva se encontra morta quando desta descoberta. O marido resolve,
então, partir com sua filha Lisa para São Petersburgo. Alugando quarto em
hospedagem de certo hotel, passa a seguir pelas ruas um antigo amigo que permanece,
durante um ano, na província que Natália e Páviel moravam, no caso, a província
de T. Alieksiéi Ivânovitch Vieltchâninov, na ocasião, aproximara-se intimamente
do casal e trai o amigo com a esposa deste. Natália Vassílieva, entretanto, se
apaixona por um oficialzinho, despachando o antigo amante de T. Alega a este
estar grávida e, para não levantar suspeitas do marido, Vieltchâninov deve
deixar o local e retornar meses depois. Em carta endereçada, mais tarde, a
Vieltchâninov, afirma a este a não procurá-la mais, pois se encontra apaixonada
por outro amante. Conclui, na carta endereçada, que a gravidez foi apenas
suspeita não confirmada. No final da história, o leitor sabe que as coisas não
se deram desta forma, pois depois de Páviel Pávlovitch Trussótzki ter tentado esfaquear
Vieltchâninov, deixa a este envelope com uma carta amarelada pelo tempo. Nesta,
que não foi enviada a Vieltchâninov por Natália, esta afirma que nasceu do
relacionamento deles uma criança, no caso Lisa, filha de Vieltchâninov. Esta
menina seria a prova de toda uma amizade entre os ex-amantes. Misteriosamente,
Natália Vassílieva não envia esta carta ao ex-amante, preferindo enviar aquela
que informa seu novo amante e o alarme falso da gravidez.
Embora
com críticas negativas na época, há também elogios a’O eterno marido, fazendo com que diversos críticos, incluindo
contemporâneos, apontem o romance como uma das obras mais bem acabadas de
Dostoiévski, uma vez que a técnica narrativa aprimorada e desenvolvida durante
os capítulos promove o suspense e o psicologismo absurdamente equilibrado, em
especial, no relacionamento entre o “eterno marido” e o “eterno amante”. Alguns
críticos apontam também para a dificuldade de Páviel Pávlovitch ter uma vida
constituída fora do casamento, assim como o final do romance sustenta a
incapacidade inversa de Vieltchâninov de se ausentar de ser um libertino
amante, embora mais razoável com a aprendizagem recebida do episódio de Páviel
e Natália do que sua libertinagem no início do enredo.
Desde
o primeiro capítulo, entretanto, alguns enigmas corroboram para o
entrelaçamento esquisito entre os dois homens (marido e amante), numa caça
entre “rato-e-gato” que assume, também, alguns pontos patéticos e engraçados,
embora dramatizados quando da psicologia do humilhado e ofendido marido. A
intriga ganha força, principalmente, pela capacidade de Dostoiévski apresentar
o lado humano estraçalhado do marido corneado (há cena que ele imita cornos em
sua cabeça!) pela esposa e por aquele que ele algum dia julgou seu melhor
amigo. A pose de Vieltchâninov vai murchando conforme a engenharia de Páviel
Pávlovitch vai engendrando o ex-amante de Natália Vassílieva, usando,
impiedosamente a menina Lisa em suas maquinações. Do ódio ao amor incontido pela
criança, Páviel tortura psicologicamente “sua filha” para se vingar de
Vieltchâninov, o verdadeiro pai, também ao odiá-lo e ao amá-lo, exemplificado
quando pede um beijo do rival e quando cuida este em sua doença. Lisa ocupa
parte significativa do enredo, não somente por ser parcela do enigma proposto
por Dostoiévski, como pelo sofrimento que vive. Termina por morrer e marcar
consideravelmente seu legítimo pai, embora, no final do enredo seja lembrada
por Páviel Pávlovitch. A psicologia dos dois postulantes à dialética,
ultrapassa a discussão em busca da verdade vivida no passado no momento da luta
corporal no quarto de Vieltchâninov, embora, mais tarde, Vieltchâninov, no
capítulo “Análise”, considere a possibilidade de Páviel, “o homem do crepe do
chapéu”, ter o agredido sem querer, sem a intenção primeira do assassinato,
embora querendo matá-lo. Portanto, um assassino sem querer, pensa
Vieltchâninov: “Pessoas desse gênero – pensou -, pessoas exatamente desse tipo,
que, um instante antes, não sabem se vão matar ou não, assim que apanham uma
faca nas mãos trêmulas e mal sentem o primeiro borrifo de sangue cálido sobre
os dedos, não apenas matam, mas cortam completamente a cabeça, ‘fora de uma
vez’, como dizem os forçados. É isso.”. Neste ponto, Dostoiévski discute a
questão do crime e do criminoso, anteriormente trabalhada em Recordações da casa dos mortos (1861) e
Crime e castigo (1866) e,
posteriormente, em Os irmãos Karamázov (1880).
O “homem do subsolo” se vê na dinâmica da contradição, tanto do discurso de
Páviel Pávlovitch como no de Vieltchâninov. Alguns críticos apontam para uma
discussão mais ampla proposta por Dostoiévski em O eterno marido, no caso a dimensão da cultura russa estabelecida
por personalidades mansas e ferozes. Considerados os nomes dos protagonistas,
Vieltchâninov sugere “grandeza e magnificência”, enquanto que Trussótzki,
“covardia”. Os diálogos entre ambos é de uma perfeição inimaginável, se
consideradas as sugestões e o velamento proposto entre o que um espera que se
diga para, o outro, poder dizer o que deve dizer para não entregar o jogo que
estão jogando enquanto, por exemplo, marido, amante e “pais” de Lisa. O “eterno
marido” Páviel Pávlovitch se concretiza pela necessidade de ter esposa e noiva
ao longo da narrativa, nas figuras de Natália Vassiliévna, Nadiejda
Fiedossiéievna (possível noiva) e, finalmente, Olimpiáda. Um acordo tácito se
concretiza no último capítulo, quando da negativa de Vieltchâninov de visitar o
casal Páviel e Olimpiáda/Lípotchka. Vieltchâninov, do início da narrativa, com
sua situação financeira precária por ter torrado heranças recentemente
recebidas, com sua vida libertida e seus gastos excessivos e sua aparência de
conquistador inconsequente, ao fim do enredo, com uma herança recebida,
torna-se mais criterioso para não dilapidar seu patrimônio, embora continue a
viajar para conhecer e conquistar algumas senhoras necessárias.