quarta-feira, 29 de junho de 2016

A LITERATURA DE NIKOLAI SEMIÓNOVITCH LESKOV

Do denominado Realismo do século XIX, advindo da criação da “Escola Natural” de Biélinski, muita coisa se desenvolveu na literária russa. O percurso iniciado pela linguagem literária de Púchkin, assim como a dádiva implantada pelo realismo-fantástico de Gógol que, simultaneamente, não abandonou o Romantismo de Púchkin e de Liermóntov, até chegar na busca da realidade psicológica dos “humilhados e ofendidos” de Dostoiévski e no moralismo doutrinário de Tolstói, a literatura russa parecia ter se esgotado, ao menos no olhar do mundo Ocidental. Mas não. Se Dostoiévski já havia mesclado as atitudes românticas ao realismo psicopatológico, se Tolstói havia criado o épico com Guerra e paz, o psicologismo adulterino com Anna Kariênina e a profunda reflexão sobre a morte e a mesquinharia da vida com A morte de Ivan Ilitch, ainda faltava reconhecer o talento de Nikolai Semiónovitch Leskov. Nascido em 1831 e com morte em 1895, Leskov contribui com não somente uma variação de gêneros e de temáticas, como traz para a literatura russa do século XIX um realismo considerado marginal, que corre à margem dos grandes nomes de Dostoiévski e de Tolstói, mas que não deixa de apresentar tanto um trabalho impressionante com a linguagem literária, como pela variação de tipos dos mais intrigantes, persuasivos e conhecidos em sua literatura. Do campônio ao nobre, do militar ao desagregado social, do místico e religioso ao doente permissivo, do lírico ao personagem com ar de herói, do perfil ficcional ao personagem histórico, do vigarista ao honesto, do homem à mulher, do jid, do romeno, do tcheco, do alemão, entre outras etnias, Leskov retira o invólucro que protege personagens em nível social para resgatar em enredos, muitas vezes, insólitos ou demasiadamente triviais, o frugal e o excessivo das psicologias individuais e das ações desmontadas em nível social. Dos reinados de Nicolai I ao de Nicolau II, o contexto contribui positivamente ao desempenho conteudístico na literatura de Leskov, obra esta em 36 volumes, com os mais diferentes gêneros de composições artística e histórica.

A obra prima de Leskov é o romance  Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, de 1864. O enredo é dividido em 15 capítulos relativamente curtos. Um narrador distanciado narra a passagem pelo distrito que mora de uma mulher de um comerciante conhecido, uma mulher de “gênio impetuoso” e protagonista de um terrível drama. Catierina Lvovna Izmáilova, mulher de 24 anos, é casada com Zinóvi Boríssitch Izmáilov. Sua vida é tediosa, porque vive trancada em casa. Nesta casa, mora também o pai de Zinóvi, Borís Timofiéitch Izmáilov, homem com pouco mais de 80 anos. Zinóvi tem pouco mais de 50 anos. Catierina é sua segunda esposa. Com cinco anos de casados, Zinóvi é homem estéril, embora a culpa recaia sobre sua esposa. Como afirma o narrador, “o tédio das casas de comerciante, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar.” dá o clima do que possa ocorrer no enredo. Entretanto, Catierina não se mata, pois assassina inicialmente o sogro, envenenando-o, depois o marido, estrangulando-o com a ajuda de seu amante e capataz da fazendola Serguiêi, rapaz atrevido e conquistador, e, finalmente, dá cabo do herdeiro e sobrinho de Bóris, o menino Fiódor Liámin, sufocando o garoto com um travesseiro também com a ajuda de Serguiêi. Sentindo-se culpado por seus crimes, Serguiêi, amedrontado por sua superstição, crendo que os mortos achincalham com a casa que agora Catierina vive sozinha, sendo que quem achincalha janelas e portas são alguns homens que testemunham o assassinato do pequeno Fiódor, termina, o capataz, confessando os crimes feitos pelo casal amante. Desterrados para a Sibéria a trabalhos forçados depois das tradicionais chibatadas em praça pública, o incorrigível conquistador Serguiêi aproxima-se de duas prisioneiras, Fiona e Sônia. Com a primeira, sua relação é efêmera, não causando danos à Catierina; entretanto, com Sônia, as provocações do novo relacionamento são insuportáveis para Catierina, mulher que não amava nem a si mesma, mas que matou por causa do amante. Desta forma, quando os presos estão em barca no Volga, depois de tamanhas provocações de Serguiêi e castigo físico impretado por este em Catierina, através de chibatadas, ela, enlouquecida e febril, vê, nas ondas do Volga, seus três mortos, Borís, Zinóvi e Fiódor. Agarrando-se em Sônia pelas pernas, Catierina e Sônia são tragadas pelo violento e imperdoável Volga. Do fantástico ao real, do psicologismo das ações às superstições dos protagonistas, Lady Macbeth do distrito de Mtzensk discute o amor levado às últimas consequências guiado pela paixão cega, pela estupidez humana e pelo egoísmo desenfreado na alma de homens e mulheres.

Nikolai Leskov
No ano de 1857, Leskov, ao abandonar o funcionarismo público, viaja durante três anos como representante comercial da firma Scott & Wilkins, empresa que seu tio era sócio. A diversidade temática de seus contos passa, obrigatoriamente, por aquilo que viu com seus próprios olhos e como diagnosticou o que aprendeu na prática. Os personagens leskovianos em seus retratos são resultados destas argutas observações e que resultam nas mais diversas psicologias de homens e de mulheres humanos e surpreendentes em suas atitudes (regimentos, lapidadores, vigaristas, canalhas, espíritas, corruptos, místicos, machistas, xenófobos, religiosos, adulterinos, etc.).

ANÁLISE DE DOIS CONTOS DE LESKOV.

Kótin, o provedor, e Platonida.
Esta novela é publicada pela primeira vez no ano de 1867 na revista Otiétchestvennie Zapíski, em Os que esperam o borbulhar das águas: crônica romanesca. O título já identifica os dois protagonistas do enredo, e suas histórias paralelas, em determinado ponto, unificam-se para, no final, tocarem-se novamente. Konstantin Iónitch Pizónski, o “Kótin” do título, é, também, “o provedor”, também do título, ou seja, aquele que dá assistência às garotinhas Glafira e Nila, filhas de uma prima de Konstantin Pizónski casada com um tal de Nabokov. Esta beneficência de Kótin para com as duas menininhas, tirando-as de uma mendiga cega, é para que Kótin, segundo o narrador, proteja “aquilo que deve ser protegido: a infância.” A partir desta intervenção, a vida de Pizónski passa a ter objetivo preciso. Sua simplicidade e diferença em relação aos outros da Cidade Velha dá-se por sua humildade, benevolência e, sobretudo, por sua humanidade, habilidade esta promovida pela dualidade desde criança enquanto menina no convento e menino no seminário. Destas formações, sua religiosidade aparece na novela, com algumas citações bíblicas e a referência, por exemplo, ao profeta Elias. Reconhece através da religião seus dois atos impuros, no caso o rapto das meninas e o roubo de um balaio que servirá para conduzi-las. Pede, então, perdão a Deus por estes atos indignos. Nenhum outro personagem da narrativa, neste sentido religioso, faz elaboração de seus atos, nem, tampouco, redime-se perante Deus. Aqui, ponto de ligação importante com a obra de Fiódor Dostoiévski, uma das referências de Nikolai Leskov. Estas dicotomias diferem Kótin dos outros personagens, tanto pela questão do gênero (masculino/feminino), como pela sensibilidade criativa de sustentar as pobres órfãs e de ser aceito pela cidade e, finalmente, acusado, de forma infame, por esta mesma cidade, de mentir e proteger Platonida Andrêievna e Avenir Markélitch. Estes três personagens assemelham-se em alguns aspectos, considerada, por exemplo, suas generosidades. O outro protagonista mencionado no título, “Platonida”, cresce no enredo ao lado de Kótin, sendo uma mulher, assim como o início da novela é uma mulher, no caso, a mãe de Kótin, Aksínia Matviêievna (curiosamente órfã como Glafira e Nila), que será, com seus 18 anos, expulsa de casa dos Déiev por ter seu amor descoberto, uma vez que tem relação com o sacristão Iona Pizónski. Curiosamente, também, no final do enredo, Platonida Andrêievna vê-se expulsa da mesma casa pela situação que enfrenta com o sogro agressor Markel Semiónovitch. Platonida Andrêievna, a “alma de criança”, identifica-se e une-se a Kótin para ajudá-lo na proteção às garotinhas órfãs por determinado instante. Entretanto, conforme a trama começa a envolver a vida íntima de Platonida Andrêievna, Pizónski e as menininhas são subtraídos temporariamente da história para, no final, apenas aparecer Pizónski a ser acusado por algo que não tem participação. Numa primeira parte da novela, deste modo, a biografia recai sobre a figura de Pizónski para, em seguida, deslocar-se para a vida atrofiada e impedida de liberdade de Platonida Andrêievna. Quando esta se vê viúva, pensa na paz e na liberdade (metaforizada quando, após o enterro do marido, ela se deita em sua agora cama de viúva e joga ambos travesseiros no chão. Este rompimento simbólico é, entretanto, interrompido pela culpa e pela superstição da viúva, logo, reintegrada ao moralismo familiar), mas, em breve, perde este sonho, novamente, agora com a agressão do sogro que procura substituir o filho morto e déspota Marko Markélitch. Platonida Andrêievna assume, depois de fugir da casa malfadada, a postura simbólica de uma profetisa, a Ioil (stáritsa), ou seja, a de uma mulher espiritualizada e religiosa que dá conselhos, como sustenta o rápido diálogo final entre ela e Avenir Markélitch. O conselho dado por ela é a busca de um “refúgio sereno”, espiritualizado e equilibrado de vida.
Dos vinte capítulos em números romanos da novela de Leskov, a partir do sétimo capítulo é que a figura e a história de Platonida Andrêievna ganham destaques e se cruzam com a ascensão, na Cidade Velha, da figura de Kótin. Avenir Markélitch é, inicialmente, apresentado como jovem irresponsável, malandro e pouco trabalhador, mas, em seguida, o belo jovem auxilia Platonida Andrêievna na contribuição que esta dá, com roupas e comida, às garotinhas cuidadas por Kótin. Avenir Markélitch compreende, também, com sua sensibilidade, a vida que Platonida Andrêievna precisa viver, pois é diferente dos demais homens da casa. Por fim, Avenir salva a cunhada do sogro (e de seu pai, no caso, o pai de Avenir) de seu ataque para, finalmente, ir para a guerra no Cáucaso e lá casar, como afirmam na cidade, com a filha de um general.
Mas o que resta da história de vida de Platonida Andrêievna e de Kótin? Os sacrifícios que a estes o destino inexorável apresenta, pois se suas vidas são impetuosamente mal compreendidas pelos demais personagens (excetuando Avenir Markélitch), pelo juízo do leitor, é notável a capacidade de diferenciação que ambos apresentam em relação àquele tipo de sociedade brutalizada, grosseira, manipuladora, pouco solidária e interesseira que caracteriza a Cidade Velha e a casa dos Déiev. Afinal, aqueles dois protagonistas buscam e defendem a liberdade de uma vida com humanismo e autenticidade para revelarem o que cada homem e mulher possuem de bom, de possível enquanto correto e de digno enquanto cidadão. No capítulo XIII, Kótin torna-se proprietário e cidadão, assim como não quer apadrinhamento em cargos, pois deseja terras julgadas inúteis pela maioria da cidade para, dali, tirar o seu sustento. Pizónski pensa deste modo neste instante de sua vida: “A sua consciência, que não lhe permitia avançar nenhum passo à frente de quem quer que fosse, apurava sua atenção para bens descartados, deixados à toa, que não eram necessários a ninguém nem despertavam a atenção de ninguém. O fracasso da carreira nos correios convencera Pizónski ainda mais de que ele não podia seguir pelos caminhos do apadrinhamento. Sentia que para si eram proveitosos os caminhos diretos, seria mais cômodo tomar nas mãos o que os outros desprezavam e o que não levaria a uma luta indigna nem traria inimigos ou invejosos.” Assim, nestas terras da ilha despovoada, passa “nosso Robinson” quatro anos. Neste momento, uma explicação: a novela em discussão é escrita pós libertação dos servos na Rússia ocorrida em 1861, já que Kótin, o provedor, e Platonida, é datada de 1867. Poderia, desta forma, haver a sugestão de os despossuídos de terra, até então na história russa, adquirirem suas próprias terras, como acontece com Kótin, embora ele não fosse nem servo nem descendente destes, assim como poucos libertos conseguiram terras para seu próprio sustento. A predisposição de atribuir ao personagem a capacidade de valorizar as coisas simples desprezadas pelos outros homens soma-se à habilidade de preservação de Kótin a manter sua dignidade de cidadão para conquistar a partir de suas características humanas uma “luta” justa e honesta dentro da sobrevivência imposta por uma sociedade viciada em luta pela sobrevivência a qualquer custo.
Figura importante é a do narrador, com suas colocações, indagações e interesse no jogo de palavras e de jocosas imagens que o tornam também um protagonista de talento. Já no início do relato, sai com esta “inclusive na nossa época desrespeitosa”, proferindo o contexto que o leitor irá encontrar. Alerta, também, que “a história não é longa”. Aliás, conforme o andamento desta história contada evolui, alguns personagens são propositadamente “esquecidos”, como a mendiga cega e as próprias garotinhas órfãs no final do enredo, embora bastando encontrar Kótin para, por extensão, lembrá-las pelo passado vivido e pela perspectiva do leitor em reencontrá-las (o que não ocorre com a miserável cega). A ironia para tratar da condição miserável de Kótin é, por exemplo, assim apresentada: “entoava de fome as mais alegres canções”. A minúcia de algum objeto não passa despercebida pelo narrador, como a parte da roupa de Kótin onde o “botão que brilhava tolamente”. Objeto e sujeito misturam-se para traduzir a condição psicológica de Konstantin Iónitch Pizónski. Aliás, a aparência constrangedora de Pizónski assim é revelada pelo narrador às garotinhas resgatando um mundo próximo ao delas: “como um gênio horroroso de algum conto de fada”. Entretanto, as órfãs aceitam esta figura horrenda de Pizónski, embora o narrador não possa garantir que “não se sabe bem se foi o chamado oculto do sangue ou o sabor sedutor da cebola doce cozida que predispôs as órfãs a Pizónski.” Nota-se que, nesta desconcertante frase, a situação de miséria das crianças é denunciada. O narrador faz o papel que cabe ao leitor, indagando por este, por exemplo, “E agora, que é que ele vai fazer? Onde ele e as crianças vão se meter?”, em referência à adoção feita pelo miserável Pizónski das garotinhas Glafira e Nila.
O inusitado da história de Kótin, o provedor, e Platonida ganha contorno diversificado, como a religiosidade em Kótin, a questão de gênero quando o protagonista circula no convento e no seminário, sua rejeição, aceitação e condenação na Cidade Velha, a proteção à infância de Glafira e Nila, sua identificação com Platonida, a vida de casada e de infelicidade desta com o marido Marko Markélitch, sua relação afetivo-infantil com o cunhado Avenir Markélitch, a agressividade sexual do sogro Markel Semiónovitch, as punições sofridas pelos cunhados Platonida e Avenir, a despótica e malfadada casa de Semión Dmítrievitch Déiev (no início do enredo) e de Markel Semiónovitch (no meio e no final do enredo), a burocracia e a mesquinharia da Cidade Velha, as misérias apresentadas, a boa vida dos funcionários públicos, a tentativa épica da ida de Avenir Markélitch à guerra do Cáucaso, o misticismo religioso, etc., dando a sensação ao leitor de incompletude das histórias contadas, mas que formam um todo principal, acusado não somente pelo título da novela como pela epígrafe apresentada “Ferramentas de casa já quebrada.”, de Shakespeare. A casa em questão pode ser tanto metaforizada pela Cidade Velha, como pela casa dos Déiev (que expulsa Aksínia, Kótia e Platonida), assim como a de Pizónski. Ao certo, é que a casa de Kótin pouco se assemelha com as outras duas.

Nikolai Gógol
Alguns críticos comparam o trabalho de Leskov, no caso Kótin, o provedor, e Platonida, com A terrível vingança, texto de 1832, de Nikolai Gógol. A partir de suas peculiaridades literárias, Leskov conta duas histórias que se comunicam, embora a partir de um mesmo narrador, algo similar com o texto de 1832, de Gógol, que oferece esta disposição com um narrador em terceira pessoa e um cantor popular cego que encerra o texto gogoliano. Claro que há diferenças, mas Leskov, ao seu modo, recupera alguns conceitos trabalhados por Gógol. Vejamos o que escrevi em texto de palestra sobre A terrível vingança do autor ucraniano:

“Gógol universaliza o folclore a partir de conceitos que elegem a punição para uma galeria de personagens presos ao seu destino ineroxável, seja ele vítima ou opressor, seja ele herói ou anti-herói. No caso de A terrível vingança, a dicotomia entre o que vem a ser a maldade e a bondade articulam-se de modo que a antítese é também percebida como oposição própria, pois envolve o passado dos protagonistas e causa o efeito em suas vidas presente e futura. Independentemente desta ginástica conceitual, um parâmetro que não se modifica é o moralismo gogoliano, inaugural no Realismo russo e com continuísmo em Dostoiévski espiritual e em Tolstói peregrinador.”

Podemos acrescentar, sem dúvida, que o bem e o mal também articulam-se no texto de Kótin, o provedor, e Platonida, assim como o misticismo, o religioso, o moralismo e o destino inexorável movimentam o enredo de modo que as antíteses vão se alternando durante a história contada.

Ao longo do enredo, são citados Lord Byron (poeta dramático romântico autor de “Manfred”), Ivan Ivánovitch Kozlov (poeta romântico russo, autor de “O anacoreta”) e Jukovski (poeta romântico russo que traduz Schiller – poeta romântico alemão).

A PROPÓSITO DE A SONATA A KREUTZER

Este conto é publicado pela primeira vez no ano de 1899, na revista Niva, após a morte de Nikolai Leskov. Inicialmente, o título era Dama do enterro de Dostoiévski. O título do conto parece ser de artigo crítico e teórico sobre a novela de Liev Tolstói. De certa forma, há crítica ao moralismo tolstoiano se compreendido que o enredo investiga possibilidades de entendimento para a conduta da senhora N., mulher adulterina, e como a sociedade vê as diferenças entre as culpas sociais do homem e da mulher. Se a senhora N. cometeu, de fato, o suicídio, temos um diálogo com a personagem Anna Kariênina de Tolstói e, por extensão, o moralismo para uma mulher adulterina. Já a execração pública, caso ocorresse como assim inicialmente deseja a senhora N. para purificar-se de seu crime, através do castigo moral, mas com apelo de renascimento enquanto pessoa humilhada e ofendida por sua culpa, o diálogo encontraria respaldo em Dostoiévski.

Fiódor Dostoiévski
Tanto Dostoiévski como Tolstói são os motivadores para o intertextualismo do conto de Leskov, sugerido fortemente enquanto o escritor que recebe a confissão da senhora N. Esta, inclusive, confessa-se duas vezes com Dostoiévski e, o escritor de Memórias do subsolo, mostra sua dualidade de comportamento. Já Tolstói, é citado em sua concepção da igualdade entre homem e mulher em determinado momento do enredo. O pensar do escritor do conto é que a adulterina continue a viver sem a confissão ao marido (para que este não sofra), dedicando-se à família, uma vez que, a cada instante, a antipatia pelo amante aumenta. E se Tolstói e Dostoiévski tivessem que aconselhar a senhora N. em relação ao seu caso? Tolstói, certamente, daria fim à senhora N. (assim como ocorrem em sua A sonata a Kreutzer e Anna Kariênina); Dostoiévski, certamente, faria a senhora N., depois de seguir ritual de humilhação pública, tornar-se apta para uma nova vida. Mas como o conto é de Leskov, a resposta para o destino da senhora N. pode ser construído com a ambiguidade, ou seja, o suicídio possível ou o desaparecimento da senhora N. para uma nova vida longe do frio e calculado senhor N., homem que lembra por suas características o Aleksiei Karênin, marido de Anna Kariênina. Cabe lembrar que este casal tem um filho (o Serioja) com idade similar do falecido Anatoli.

Liev Tolstói

O diálogo proposto por Leskov com a literatura de Tolstói concretiza-se tanto no título de seu conto como na epígrafe, assim como na explanação, na parte III, da ideia tolstoiana sobre os direitos do homem e da mulher. Já a figura de Dostoiévski surge um tanto diferente, pois este age diretamente sobre a senhora N. Num primeiro momento, quando ela procura por duas vezes o escritor de Crime e castigo, num segundo momento, quando ela acompanha o sepultamento de Dostoiévski que a impulsiona, pela imagem de seu caixão e das correntes, para a possibilidade de confissão ao marido, o senhor N. Neste ínterim, procura, evitando mostrar-se em sua identidade, para o escritor Leskov em casa deste. A influência da figura de Dostoiévski (personagem do conto de Leskov) é expressa, em parte, no pensamento da senhora N. quando ela afirma que “Pior do que tudo no mundo é a mentira, eu sinto isso, acho que é melhor confessar a própria infâmia e suportar o castigo, ser humilhada, destruída, jogada na rua; eu não sei o que pode acontecer comigo…” Revelação típica dos personagens dostoievskianos, mas que se encontram com a possibilidade de ressurreição e da purificação da alma, distante da purificação moralista tolstoiana que dá pouca margem para a continuidade de uma vida nova em sociedade. Simbologia interessante é o caixão e as correntes do sepultamento de Dostoiévski alucinarem e confundirem a senhora N., assim como o caixote com a solução de cala orienta a pobre mãe em sua decisão, seja a de suicídio, seja a de desaparecimento da estrutura de frialdade ao lado do marido, o senhor N. se há suposta morte (ou não a sua confirmação), há similitude com Águia Branca, também na suposta (ou não) morte de Ivan Petróvitch Aquilalbov. O moralismo tolstoiano e dostoievskiano são, de certo modo, relativizados por Leskov, pois, afinal, para o escritor do conto, “a mim nunca importou como a sociedade nobre reage à vida particular de quem quer que seja. Não o mundo, mas a pessoa em si: eis o que me é caro, e, se for possível não provocar sofrimento, para que provocá-lo?”
O conto A propósito de A Sonata a Kreutzer é dividido em cinco partes. O escritor é personagem e também o narrador da história, com a sugestão de ser o próprio autor Leskov. A epígrafe de Tolstói “Toda moça é moralmente superior ao homem por ser incomparavelmente mais pura do que ele. Ao casar-se, ela é sempre superior ao marido. A moça continua superior ao marido também ao tornar-se mulher no nosso cotidiano.”, ganha nova interpretação se buscada no final do conto de Leskov, pois, afinal, se a senhora N. desapareceu do seio familiar não cometando assim o suicídio, manteve sua superioridade e sua pureza para a visão do marido, mas não abriu mão de sua igualdade com o homem para cometer seus pecadinhos. A sua rebeldia, fora as questões econômicas, lembra a novela Uma criatura dócil, de Dostoiévski, se considerada a sua autonomia em relação ao marido.

Mas recordaremos A sonata a Kreutzer, de Tolstói: é um dos textos mais polêmicos de Liev Nikoláievitch Tolstói, não somente na época em que foi publicado como parte de suas Obras Completas como atualmente espanta o leitor que, minimamente, costuma esclarecer-se sobre a desigualdade sofrida pelas mulheres em qualquer sociedade, considerando os despropósitos sobre as relações entre homem e mulher por parte de Pózdnichev, o protagonista. Entretanto, a arte desenvolvida por Tolstói nesta novela publicada em 1891 é de um aprofundamento psicológico (no que se refere à angústia e ao temor das colocações de seu protagonista vividas no tempo passado e sua emocionalidade brutal no tempo presente) que faz com que o leitor reflita sobre conceitos dissertados sobre o matrimônio, a castidade, a bestialidade carnal e o ciúme pelo ponto de vista monologal do assassino de sua própria esposa. Tolstói inicia a escrita de A sonata a Kreutzer em 1887, embora a maior parte do texto produzido dá-se em 1889. O tema do adultério e da brutalidade da morte tem seu ápice em Anna Kariênina, publicado em 1877, se visto a partir do Realismo psicológico do escritor. Desta forma, o texto de A sonata a Kreutzer é sucessor da trama adulterina entre Anna Kariênina e Vronski. A radicalização conceitual, entretanto, sobre a castidade e o matrimônio, destaca-se no texto de 1891. Depois da escrita de A morte de Ivan Ilitch, Tolstói escreve dois títulos de expressão no final da década de 80, O poder das trevas, com assassinato e adultério, e A sonata a Kreutzer, também com estes temas. A primeira é censurada para a representação teatral, embora consentida para publicação. As origens da escrita de A sonata a Kreutzer são diversas, como aponta Rosamund Bartlett: carta de certa mulher anônima que reclama do tratamento dado às mulheres pela sociedade; relato de um amigo de Tolstói que, ao estar em algum vagão de trem, escuta a confissão de um homem adulterino em relação à esposa; o conhecimento de Tolstói da peça “Sonata a Kreutzer” de Beethoven (“Sonata para violino no 9) e o desempenho de Serguiéi, filho de Tolstói, na música, além de eventos diretamente ligados a fatos familiares (casamento precoce de Ilia, segundo filho de Tolstói; desavenças com alguns filhos; o desejo sexual de Tolstói que não consegue evitar, embora a pregação moral de se abster da bebida e da carne), enfim, a instituição casamento desgastada em sua vida e condenada enquanto instituição no enredo de sua obra. Nota-se que temas como a tentativa de suicídio da esposa de Pózdnichev, as desavenças conjugais do casal, a tentativa de conquista deste ou daquele filho para si em oposição ao cônjuge, etc., são reveladores do domínio que o Conde Tolstói tem e que presencia em sua vida direta ou indiretamente, habilidade que não se vê na concepção de Pózdnichev ao tratar da ciência e dos médicos. Mas é bom destacar que Tolstói não é seu personagem Pózdnichev. Tolstói faz nove versões de A sonata a Kreutzer até sua publicação, embora, clandestinamente, o texto aparece em toda a Rússia a preço exorbitante, cerca de 10 rublos o exemplar. Alexandre III aprecia a obra, e sua esposa escandaliza-se. O procurador-chefe do Santo Sínodo, Konstantín Pobedónostsev gosta do teor apresentado sobre a castidade, mas ataca a visão de Tolstói sobre o futuro dos homens, creditando ser a publicação do livro inaceitável. Anton Tchékhov acusa, inicialmente, o interesse de estimular o pensamento até seu limite ao se ler o texto de Tolstói, mesclando exclamações tanto de verdade como de estupidez às colocações de Pózdnichev. Ao retornar de sua viagem à Ilha de Sacalina, Tchékhov revê seu conceito sobre A sonata a Kreutzer e afirma ser esta obra ridícula e absurda. Para o leitor atual, o desafio do texto de Tolstói está na capacidade enlouquecida de Pózdnichev criar um discurso absurdamente incomodativo em temas tão modernizados e arcaicos como o de casamento e de moral, seguidos de castidade e adultério, além da capacidade (ou não) de se ter filhos e saber conviver com eles (ou não). Pózdnichev e seu discurso alucinado lembra o discurso contraditório e destrutivo do “homem do subsolo” de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, em Memórias do subsolo (1864), considerando-se a capacidade de ambos de anarquizar, de ironizar, de debochar e, ainda, de se preocupar com ninharias nos momentos mais trágicos da existência entre os homens.

domingo, 5 de junho de 2016

OBLÓMOV, de Nikolai Gontcharóv

Do artigo de Nikolai Aleksándrovitch Dobroliúbov (1836-1861), “O que é oblomovismo?” (1859), às considerações do crítico Ettore Lo Gatto, passando pelas de Marc Slonim, até chegar no posfácio de Renato Poggioli, na edição da Cosac Naify, uma das certezas que se pode retirar é que esta obra Oblomóv, de Ivan Aleksándrovitch Gontcharóv, é incomodativa pelos pares que apresenta, desde a construção apática e sonolenta do protagonista Oblómov, da ativa e concreta maneira de viver a vida do alemão-russo Stolz, até a distinta maneira de se comportar de Olga Serguéievna Ilínskaia. Paralela a estas psicologias e modo de imobilidade e mobilidade sociais, surge a figura de Zakhar, servo adaptado à mesmice da vida de seu patrão Oblómov.

Ivan Aleksándrovitch Gontcharóv nasce em 18 de junho de 1862 numa pequena e monótona cidade às margens do Volga, chamada Simbirsk, atualmente Uliánov. Nas palavras do próprio autor de Oblómov, Simbirsk é uma cidade “adormecida e parada”. A criação de Ivan Aleksándrovitch Gontcharóv dá-se numa propriedade patriarcal da nobreza campesina. Seus pais são ricos comerciantes. Aos vinte e dois anos, Gontcharóv entra para o serviço público, depois de graduar-se na Universidade de Moscou. Desempenha cerca de trinta e três anos de atividade pública, ascendendo na carreira. Trabalha no Ministério da Economia e, no ano de 1856, transfere-se para o da Educação, exercendo, neste, a função de censor, atividade um tanto estranha para um escritor de literatura, mas não, talvez, para um burocrata. Conservador moderado, nas palavras de Marc Slonim, opta pela vida solteira depois de frustrações amorosas. Através de uma conduta de vida ordenada e monótona, surpreende ao realizar uma viagem de navio até o Japão, como secretário do almirante Putiatin. Desta experiência, Gontcharóv deixa relatos numa espécie de diário (A fragata Pallas – 1857, sua publicação), recuperando a viagem desde outubro de 1852 até fevereiro de 1855. Morre, em decorrência de uma pneumonia, em 26 de setembro de 1891.


Gontcharóv
Ivan Aleksándrovitch Gontcharóv tem 35 anos quando publica seu primeiro romance, em 1847, Uma história comum. Neste vasto romance, o protagonista Aleksandr Adúiev, jovem idealista com sentimentos efusivos e sinceros, enfrenta um choque em seu romantismo ao deparar-se com a realidade cotidiana, realidade esta inevitável que o vence golpeando-o. Deslocando-se para Petersburgo, seus fracassos literários, amorosos e de amizades faz com que o jovem Adúiev siga, definitivamente, o modelo de seu tio, também Adúiev, para compreender e usufruir de uma vida através do casamento de interesse, de conveniências sociais de ascensão e de hipocrisia, até o desejo e a realização na busca de cargos burocráticos. Adúiev, tanto o sobrinho como o tio Piotr, simbolicamente representam um mesmo tipo psicológico de personalidade em idades diferentes, aglutinando passado e presente de gerações que não se diferenciam muito na trajetória de uma imposta vida social. Nas palavras do próprio Gontcharóv, em sua confissão literária Antes tarde do que nunca, “Al escribir Una historia comum, yo estaba pensando em mí mismo, em mí mismo y en una cantidad de otros parecidos a mí…”

Oblómov é publicado em 1859 e escrito entre 1857-1858, embora sua formulação tenha durado uma década. A crítica oferece a seguinte discussão ao avaliar Uma história comum e Oblómov como possibilidades das recordações da infância de Gontcharóv, assim como sugerem o caráter autobiográfico destas histórias. Independente destas afirmações, Uma história comum busca um pano de fundo social em que a crítica aos círculos progressistas e a servidão da gleba se pronunciam. Os dois romances têm ótima repercussão no meio crítico da literatura e entre o público leitor. Em 1869, Gontcharóv publica outro romance, O abismo, ou como preferem algumas traduções, O precipício. Nesta obra, a abordagem dá-se mais na concepção do político e do social. Um feliz erro é seu primeiro trabalho, ou seja, um conto inédito. Escreve, também, um conto breve, em 1869, Sopa de pescado.

Púchkin
Dez anos antes da publicação de Oblómov, o público é presenteado pelo autor com O sonho de Oblómov, episódio que comporia, mais tarde, o volume Oblómov, mais precisamente na Primeira Parte (1), no capítulo IX. O sucesso deste episódio, inicialmente, em separado, dá-se pela criação psicológica somada à criação detalhista da pintura da ambientação proposta pelo herói através da mescla entre sonho e recuperação poética de sua infância em propriedade rural. A análise e a descrição de pormenores e com preocupações idealistas asseguram as atitudes realistas e românticas da literatura, iniciadas por Aleksandr Serguêievitch Púchkin (1799-1837), Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) e tão caras às obras iniciais de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881). 


Gógol
Se para estes escritores russos o limite entre o Romantismo e o Realismo são nebulosos, ler Oblómov e a não-ação de seu protagonista, faz o leitor atento a associar, na obra futura de Antón Pávlovitch Tchékhov (1860-1904), a mesmice, a apatia, a imobilidade e a falta de perspectiva de uma vida de ação nos inúmeros contos e nas peças de teatro tchekhovianos.

Tchékhov

Dostoiévski
Em Oblómov, o enredo centra a discussão em modos de vida distintos que se intercalam na perspectiva de suas ambientações individuais e sociais. Se no centro da narrativa há a saliência de personagens como Iliá Ilitch Oblómov e Andrei Ivánovitch Stolz, o leitor também acompanha o crescimento de Olga Serguéievna Ilínskaia, com suas atitudes que cercam inicialmente Oblómov, a pedido do amigo deste, Stolz, para, finalmente, unir-se com o próprio Stolz através do casamento. Conforme o enredo avança, outros, dentre os cento e vinte e oito personagens, ganham autonomia e guardadas relevâncias, como Agáfia Matviéievna Pchenítsina (Oblómova), Aníssia, Alekséiev, Ivan Matviéievitch Mukhoiarov, Mikhéi Andréievitch Tarántiev, Zakhar Trofímov e, até, o velho cão com seu latir rouco e seus movimentos já preguiçosos em pátio na casinha do inquilino Oblómov.

Oblómov tem como primeira análise o artigo de Nikolai Aleksándrovitch Dobroliúbov (1836-1861), “O que é oblomovismo?” (1859). Este texto é referência para o entendimento do romance se o leitor procura associar o enredo na esfera não do “retrato psicológico”, mas a partir das patologias social e moral provenientes da servidão em curso no século XIX. Para melhor esclarecimento destas ideias, sugiro a leitura deste ensaio em Antologia do pensamento crítico russo (1802-1901), com organização de Bruno Barretto Gomide e tradução de Sonia Branco, editora 34, 2013.
Entretanto, mesmo que a avaliação do leitor enverede pelo caminho social, uma indagação pode permanecer ao longo do enredo e, talvez, solucionada com perspicácia através de uma leitura digamos, preguiçosa, não no sentido de uma das habilidades de Iliá Ilitch Oblómov. As perguntas podem surgir na íntima relação entre os personagens Oblómov e seu servo Zakhar e, mais tarde, com Agáfia Matviéievna Pchenítsina. Na condição histórica de uma definição social mais explícita desta relação social, é claro que a vida protagonizada por estes pares mostra uma superioridade (e exploração) de Oblómov em relação à vida de Zakhar (e à de Agáfia Matviéievna Pchenítsina). Mas será que o efeito crítico desta relação não está, também, no absurdo vivido por Zakhar ao atuar da maneira em que atua para sobreviver? Ou, ainda, até que ponto as angústias do servo contagiam o modo de viver do nobre apático Oblómov? Zakhar carregou no colo a criança Iliá Ilitch e com sua fidelidade não o abandona nem no túmulo de Oblómov. É claro que a inabilidade de Oblómov é espelho de uma classe nobre que nada ou pouco faz e vive às custas dos outros, seja de um servo ou de uma suburbana. Mas será que Zakhar pode ser visto somente como a antítese de seu senhor por sua condição de servidão ou é possível averiguar que seu modo de vida em nível filosófico não é tão díspare como pode se apresentar? Resumindo: não instigando que a leitura deva ser em defesa do nobre em relação ao servo, seria interessante pegar um viés histórico daquilo que serve como talvez única e rápida possibilidade de sobrevivência dos humilhados e ofendidos a partir das inabilidades dos patrões. Zakhar sabe lidar com as deficiências do nobre Oblómov desde a infância deste, uma vez que a própria criação de Iliá Ilitch colocou-o numa redoma de proteção ao mundo externo. Zakhar parece ter compreendido esta redoma, ao ponto de proteger seu patrão na vida adulta, assim como surrupiar o necessário para seus íntimos e ínfimos prazeres. Numa espécie do tipo popular “quem não chora não mama”, Zakhar sabe até que ponto pode chorar ou mamar, mas não perdendo sua fidelidade para com o patrão, independentemente se o defende ou o ofende ao inventar histórias sobre o seu senhor. Oblómov faz isso, também, embora de uma forma aceitável por pertencer ao mesmo tipo social, com Stolz, ao esperar deste as possíveis soluções para suas preocupações mentalmente por Oblómov entendidas como temporárias. O parasitismo obloviano de Iliá Ilitch estende-se não somente por sua classe social, mas por toda uma sociedade que atua em cima deste recurso para sobreviver sem muito esforço. Acontece que isto não anula o sofrimento da periferia numa leitura mais social, como se percebe, claramente, na última parte do enredo, quando o leitor passa a ter mais detalhada a vida de um tipo de proletariado social, na forma do cotidiano de Agáfia Matviéievna e de seu irmão Ivan Matviéievitch Mukhoiarov com a instigação de Mikhéi Andréievitch Tarántiev, suposto amigo de Oblómov.

Para este trabalho, a ênfase da análise cairá, principalmente, nas relações entre pares de personagens e suas relações psicológicas para o aprofundamento das relações sociais.


O enredo de Oblómov apresenta-se em quatro partes e com um total de quarenta e seis capítulos.
A primeira parte centra a discussão, basicamente, na atualidade da vida de Oblómov no seu domínio geográfico, ou seja, em seu apartamento. Aí alguns problemas surgem para a intranquilidade do protagonista, uma vez que ele não vive completamente sozinho (mas num contexto social próximo de si com suas visitas inoportunas que desejam levá-lo para fora de seu habitat), embora queira anular-se frente ao mundo e, em especial, à sociedade, Oblómovka traz problemas agudos para Oblómov e, finalmente, o local onde mora deve ser entregue para reforma já que está na condição de inquilino. Esta é a primeira fase apresentada ao leitor para a vida do tempo presente do protagonista. Zakhar fica a buzinar nos ouvidos do patrão os problemas mundanos, como pagamento de dívidas e a mudança em iminência, além de irritá-lo ao comparar Oblómov com os “outros”. Neste ponto, algo bastante peculiar: a comparação do serviçal ofende profundamente Oblómov, já que ele, um nobre, não pode ser um “outro”, ou seja, alguém que trabalha, passeia e tem ânimo para a vida. O primeiro a visitar Oblómov é Vólkov, homem dinâmico com o costume de fazer dez visitas por dia, portanto, um ser atarefado socialmente. Para Oblómov, Vólkov tem sua vida estragada pelo social. Em seguida, aparece Sudbínski, homem de tarefas profissionais que envolvem promoções e gratificações, por isso possuidor de um ótimo salário. Oblómov conclui para si que Sudbínski trabalha para os outros, enquanto que ele, Oblómov, trabalha para si, diferença épica para os objetivos pensantes de Iliá Ilitch. A vida de Sudbínski, segundo Oblómov, é um infortúnio, além de ser um carreirista “cego, surdo e mudo”. Piénkin é o próximo a visitar Oblómov em seus “domínios”, ou seja, um casarão na Rua Gorókhovaia, em São Petersburgo. Piénkin tem bastante serviço, pois escreve em jornal, é revisor, é contista e defende o realismo na literatura. Oblómov raciocina que ele, Oblómov, lê muito pouco e que no realismo há muita descrição e pouco humanismo. Acha que a vida de Piénkin é um infortúnio, uma vez que precisa sempre escrever. Alekséiev também visita Oblómov, mas é tolerado, diferentemente dos demais, por quase não parecer que está ou que esteve no ambiente. Já Tarántiev traz vida, retirando Oblómov do tédio e da imobilidade, assim como tira dinheiro e objetos de Oblómov. Na última parte do enredo, Tarántiev será um dos traidores e parasita contumaz da vida de Oblómov. Paralelamente a estas visitas transeuntes pelo quarto de Oblómov, este basicamente fica deitado ou sentado, não conseguindo diferenciar o mundo lá fora, pois argumenta que não pode sair de seu apartamento porque está úmido e que irá chover. O problema é que as janelas do quarto de Oblómov devem ser limpas, de tanta poeira têm assim como o restante de seu apartamento. Mas isto é culpa de Zakhar que nada limpa e fica dormitando em seu leito ao lado da estufa. O criado procura cutucar o patrão lembrando o que este tem a fazer, mas Oblómov posterga suas obrigações imediatas com muitas desculpas. O limite do criado é o discurso emotivo de Iliá Ilitch e suas “palavras patéticas”, insuportáveis para Zakhar: “Zakhar fingiu que andou, mas só se balançou, mexeu a perna e ficou no mesmo lugar”. Resumindo: Oblómov passa boa parte deste início do enredo deitado na cama sem resolver absolutamente nada, embora seus problemas existam. Oblómov “não estava acostumado ao movimento, à vida, a muita gente junta e ao rebuliço” e “tendo deixado para trás o serviço público e a vida social, ele começou a resolver a questão da existência de outra forma, refletia sobre o seu papel na vida e, por fim, descobriu que seu horizonte de atividade e de existência tinha de ser encontrado dentro dele mesmo”. Para todos que o visitam em seu quarto, Oblómov pede para que não se aproximem muito dele, pois estes chegam da rua e do frio. Afinal, “ficou na poltrona, pensativo, em sua pose preguiçosa e bela, sem perceber o que acontecia e o que se falava à sua volta.” ou “quase nada o fazia sair de casa, e a cada dia, de modo cada vez mais firme e tenaz, ele se aferrava a seu apartamento”. O amigo de infância de Oblómov é quem fecha esta primeira parte da narrativa, chegando de viagem e surpreendendo Iliá Ilitch ao tirá-lo de casa para conviver com a sociedade. Conclusão oblomoviana: “Ah, meu Deus! Não se pode fugir da vida, ela alcança a gente por todos os lados.”
No capítulo VIII, desta primeira parte, o narrador conduz o leitor para o capítulo seguinte denominado “O sonho de Oblómov”: “O sono deteve o fluxo vagaroso e indolente de seus pensamentos e transportou-o instantaneamente para outra época, para outras pessoas, para outro lugar, para onde eu e o leitor seremos transportados no capítulo seguinte…” Neste capítulo, “O sonho de Oblomóv”, o leitor encontra um “abençoado cantinho da terra” e um “local maravilhoso” em que se mesclarão um sonho idealizado na perspectiva do passado da infância de Oblómov que, de real ou de verossímil, pouco ou nada tem de concreto, pois idealizado pelos adultos que o privam e o protegem. Enfim o sonho somado ao sonho de uma criança inatingível pelos problemas que crianças enfrentam normalmente. Comentário do narrador: “Não, nada disso existe em nossa região.” A infância de Iliá Ilitch assim pode ser resumida em determinada parte: “E Iliucha, com tristeza, ficava em casa, mimado como uma flor exótica na estufa e, como uma flor, cercado por vidros, ele crescia devagar e sonolento. Suas energias, impedidas de se manifestar, voltavam-se para dentro e murchavam, definhavam.” E, deste modo, a vida “avançava” em Oblomóvka: “Nada perturbava a monotonia daquela vida, e os próprios residentes de Oblomóvka não se incomodavam com aquilo, porque não imaginavam outro dia a dia; e, se pudessem imaginar, lhe dariam as costas com horror. Não gostariam nem quereriam saber de outra vida. Lamentariam se as circunstâncias causassem mudanças em sua existência, quaisquer que fossem as mudanças. Derramariam lágrimas de angústia se o dia seguinte não fosse parecido com amanhã. (…) Durante décadas, continuariam a fungar, a cochilar, a bocejar ou a desatar risadas bem-humoradas com os gracejos da roça, ou então, reunindo-se numa roda, contavam o que alguém tinha visto de noite num sonho.”
No início da segunda parte, Oblómov faz reflexão sobre a leitura: “nem imaginava que a leitura pudesse ser uma necessidade fundamental, e considerava aquilo um luxo, uma coisa sem a qual podia viver facilmente, assim como era possível ter ou não ter um quadro na parede, dar ou não um passeio: para ele, não tinha a menor importância qual era o livro; olhava para ele como uma coisa destinada a ser uma distração do tédio, do fato de não ter o que fazer.” Ainda na primeira parte, Oblómov pegava um livro por pura distração ou abandonava o livro até este pegar poeira. Esta segunda, parte, então, nos reserva algumas surpresas, pois, afinal, Oblómov vê-se obrigado a sair da toca. Deste modo, Stolz delega seu poder temporário para sua amiga Olga Serguéievna. No decorrer de boa parte da narrativa, Stolz desaparece e surge, basicamente, para salvar de algum contratempo o amigo de infância Oblómov. Stolz irá aquietar-se mais para a terça parte do romance quando aparece a discutir alguns dilemas existenciais com sua esposa Olga Serguéievna. As ideias progressistas e um tanto liberais de Stolz são exemplificadas, não somente pela dimensão que dá de seus negócios capitalistas no estrangeiro, como, também, em certa ocasião em que assim se pronuncia sobre os servos na Rússia quando em sua conversa com Oblómov (na ocasião, ambos discutem sobre a fuga de alguns servos de Oblómovka):

-  Que tratante, esse estaroste! – disse ele. – Deixou os mujiques irem embora e agora fica reclamando! Era melhor dar a eles os passaportes e deixar que fossem para os quatro cantos do mundo.
-  Mas, se fizermos isso, na certa todos vão querer ir embora – retrucou Oblómov.
-  Deixe-os ir embora! – disse Stolz, sem a menor preocupação. – Quem achar que é bom e vantajoso ficar onde está não irá embora; e se para eles não é vantajoso, para você também não é: para que segurá-los?
-  Mas onde é que já se viu? – disse Iliá Ilitch. – Em Oblomóvka, os mujiques são dóceis, caseiros; por que vão querer ficar vagando por aí?


Oblómov é romance de 1859, portanto, antes da libertação dos servos que ocorre em 1861 com as reformas liberais de Alexandre II, filho de Nicolau I.

A segunda e a terceira partes da narrativa transportam o leitor para uma casa de veraneio bastante temporária na vida de Oblómov, pois ele tem contrato assinado (e não lido) para instalar-se em casa de senhoria. Este contrato é uma das primeiras vigarices daquele Tarántiev que visitou Oblómov, em São Petersburgo, em seu apartamento. Concomunado com Tarántiev, Ivan Matviéievitch Mukhoiarov coloca cláusulas absurdas no contrato para extorquir o ingênuo Oblómov a fim de prendê-lo por um bom tempo em casa da senhoria e também sua irmã. Mas estes dois comparsas terão, em parte, o que merecem até o final do romance, pois, segundo o narrador, “a astúcia é como uma moedinha de pouco valor, com a qual não se pode comprar nada. (…) A astúcia tem vista curta.”
Enquanto para ali não se desloca, ou seja, para a casa da senhoria Agáfia Matviéievna, Oblómov manda para lá seus criados Zakhar e Aníssia. Agora, no enredo, há o amor de Oblómov para com Olga Serguéievna: “‘Sim, eu estou extraindo algo dela’, pensou, ‘alguma coisa dela está se transferindo para mim. No coração, bem aqui, parece que algo começa a palpitar e borbulhar… Aqui eu sinto algo excessivo, que parece que antes não havia… Meu Deus, que felicidade olhar para ela! Até respirar é difícil.” A relação entre Oblómov e Olga Serguéievna dá-se na ausência na vida de ambos de pessoas mais próximas que estruturem suas idealizações. Stolz, então o amigo de Olga Serguéievna, prático e objetivo, está a viajar pelo estrangeiro. Ele, Oblómov, sempre idealizou seus sonhos para evitar a realidade árdua com seus insolúveis problemas que nada têm com a vida dele, Iliá Ilitch. O romanticismo de ambos aparece e dialogam na certeza, principalmente dela, de uma união forte, estável e segura, pois desta forma pensa Olga Serguéievna. Mas a jovem também sabe (por Stolz e porque também percebeu) que ela é o guia para Oblómov. Sem ela, ele não vive nem a vida nem tampouco o amor por ela. Esta certeza de Olga Serguéievna traz certa satisfação à jovem, pois dominar a situação do amor é inerente nas mulheres e… nos homens, alerta o narrador. Mas o domínio traz responsabilidades e algumas desvantagens, para a mulher da época, porque a vida de um casal necessita da cultura do patriarcalismo e da segurança que o marido deve dar (uma vez que a sociedade assim cultua) à esposa, aos filhos e, por tabela, à família. A convivência dos dois passa a um outro estágio: indefinições de Oblómov, recaída dele e busca de uma sustentação por parte dela para que ele reaja, não somente para o amor, mas, principalmente, para a vida. O leitor, neste momento, lembra da “tarefa” dada por Stolz para Olga, a de não deixar Oblómov dormir, ficar em casa sem nada fazer, etc. Altos e baixos começam a surgir na relação entre Oblómov e Olga. Para ele, uma preocupação (social e pessoal encarada como fuga de um problema como ele vê nos conflitos que a vida apresenta) notável são os encontros entre duas pessoas sem compromisso oficial, ou seja, ainda não informado para a tia de Olga, Mária Mikháilovna, e para a sociedade. Entretanto, a exigência de Olga para que a notícia do noivado seja comunicada à sociedade depende, como forma de pressão a Oblómov, que ele resolva problemas pontuais em sua vida, coisa que ele tem extrema dificuldade de executar. As pressões, neste momento da narrativa, para Oblómov são também as obrigatoriedades dos preparativos do casamento e do seu futuro ao lado de Olga, já que seu convívio com a jovem prática e romântica estabelece prioridades concretas para o convívio a dois. Oblómov começa a se dar conta desta pressão pelas angústias que vê frente ao amor e, principalmente, as soluções que precisa dar para seus problemas. Oblómovka e sua relação de ir ou não morar em casa alheia (da senhoria) devem ser prioridades para pensar e concretizar seu futuro com Olga Serguéievna, que ama Oblómov. O amadurecimento desta jovem frente ao amor e sua escolha pelo casamento com Stolz passa, obrigatoriamente, pela leitura que Oblómov a faz enxergar quando do rompimento entre os dois. Olga Serguéievna vive ambiguamente entre o romanticismo do amor e a praticidade de uma vida ideal (nos termos da sociedade) entre ela e Oblómov. Isto ocorrerá com o casamento com Stolz, união reveladora da capacidade da jovem de, também, desempenhar parceria nos negócios profissionais do marido. O que restou na recordação de Olga Serguéievna quando de seu relacionamento com Oblómov é a bondade e a peculiaridade que Iliá Ilitch tem e que o diferencia dos demais homens: a bondade de seu coração. Neste ponto, o leitor pode perguntar por que Olga não se satisfez com aquilo que diferencia Oblómov dos demais homens e mulheres: a bondade e a honestidade. Talvez nem ela mesma saiba responder diretamente a si mesma, mas, contraditoriamente às leis da civilidade e dos discursos morais, entregar-se ao tipo preguiçoso, indeciso e honesto que é Oblómov não faz parte de seus planos práticos de vida. Entretanto, o próprio noivo tem a capacidade de ver para a sua vida algo que não conseguirá suportar por muito tempo: o trabalho, a decisão e a definição objetiva que precisa dar para sua própria vida. Oblómov é homem de personalidade forte, pois sabe de seus limites. Desta maneira, procura salvar Olga Serguéievna de seu próprio amor com ele e, por extensão, salvar-se a si mesmo de qualquer tipo de pressão vindoura. Oblómov sabe que não conseguirá suportar por muito tempo uma união com Olga Serguéievna, mulher que ele mesmo julga a mola que o faz ter momentos de querer viver e fazer coisas práticas em sua vida. Dizendo e contradizendo-se de um dia para outro, ausentando-se sem maiores explicações (pois não envia carta por mensageiro e deixa Olga esperando sua visita), chega o momento derradeiro entre o casal: ela recolhe-se ao seu quarto, depois de breve desmaio, e fica, em sua poltrona, a pensar na situação de seu amor por aquele homem pachorrento. Resolve terminar tudo entre eles. Mas ainda tenta uma última cartada para este amor: caso ele reconheça que lutará e mudará frente ao que ele é na realidade. Se ele reconhecer a possibilidade da mudança, Olga retira o que disse sobre a separação. A honestidade de Oblómov fala por ele: tem conhecimento que não resistirá por muito tempo para com este tipo de compromisso e de transformação. A separação é, então, definitiva e um alívio para Iliá Ilitch Oblomóv. Apesar do alívio, casmurro fica ele em seu cômodo em casa da senhoria, sendo, como que hipnotizado, atendido pelo servo Zakhar. A aproximação entre Oblómov e Agáfia Matviéievna, lenta anteriormente, ganha velocidade um pouco maior. Paralelamente a esta aproximação, outro golpe está sendo montado pelo irmão desta, Ivan Matviéievitch Mukhoiarov, e seu comparsa Tarántiev. Olga e sua tia viajam para a Europa e, acidentalmente, são vistas em loja de Paris pelo incrédulo Stolz. Este novamente aproxima-se da amiga Olga e termina por declarar seu amor por ela, mas um amor centrado, racional e sem excessos. Olga também já está vacinada para o amor e, surpreendentemente, “envelheceu” para este. Como ela mesma dizia a si mesma e a Oblómov, uma mulher não ama duas vezes na vida. A união entre Olga e Stolz, então, concretiza-se.
Finalmente, a quarta parte do romance. O mundo proletário, de periferia e suburbano revela-se ao leitor e a Oblómov. Morador de cômodos na casa de Agáfia Matviéievna Pchenítsina (Oblómova), com Zakhar e Aníssia, Oblómov é passado para trás ao menos por duas vezes pelos comparsas e vigaristas Mikhéi Andréievitch Tarántiev (compadre da senhoria) e Ivan Matviéievitch Mukhoiarov (irmão da senhoria). Graças às repentinas visitas do amigo de infância de Oblómov, Stolz, as falcatruas impostas a Oblómov pelos larápios são relativizadas. Mas há algo mais importante do que tudo isso para Oblómov: ali, naquela casinha, o nobre reencontra a sua vida passada no campo (embora na cidade e na periferia), ou seja, na figura daqueles moradores (em especial, Agáfia Matviéievna Pchenítsina/Oblómova, sua enamorada, sua esposa e sua criada). Assim, todos podem servi-lo (Agáfia, Zakhar e Aníssia), de modo similar a de sua criação pelos seus pais em tempos da propriedade rural. Stolz ainda procura tirá-lo dali, mas levá-lo, segundo o próprio Oblómov, é fazê-lo morrer. Stolz, com a permissão de Agáfia Matviéievna Pchenítsina, criará, com Olga Serguéievna, Andriucha, filho de Oblómov e de Agáfia Matviéievna Pchenítsina, depois da morte de Oblómov. Sofrendo dois ataques de apoplexia num intervalo de cerca de um ano, Oblómov é enterrado em cemitério das cercanias e tem como visita frequente a seu túmulo o mendigo Zakhar. Lilases, plantados por uma mão amiga (certamente a de Olga Serguéievna), enfeitam a lápide de Oblómov. Afinal, na ideia de Oblómov, independente da ação do homem, ele passa pela vida dormindo.

“Assim como naquele tempo seu pai, seu avô, os filhos, os netos e os hóspedes ficavam sentados ou deitados numa tranquilidade indolente, sabendo que em casa, em torno deles, se movimentavam eternamente olhos zelosos e mãos incansáveis, que costuravam para eles, que os alimentavam, que lhes davam de beber, que os vestiam e calçavam, que os punham para dormir e que, na hora da morte, fechavam seus olhos, também assim Oblómov agora sentava no sofá, dali não se mexia, via que algo ágil e veloz se movimentava em seu favor e que, mesmo que o sol não nascesse no dia seguinte, mesmo que tufões encobrissem o céu, mesmo que um vendaval tempestuoso desabasse vindo dos confins do mundo, ainda assim sua sopa e sua carne assada seriam servidas na mesa, as roupas de baixo estariam limpas e frescas, as teias de aranha seriam removidas das paredes, sem que ele soubesse como aquilo acontecia, sem que se desse ao trabalho de refletir no que queria, pois seu desejo seria adivinhado e ele seria servido, não com indolência, não com grosseria e não pelas mãos sujas de Zakhar, mas com um olhar dócio e bondoso, com um sorriso de profunda devoção, e por mãos limpas, brancas, e por cotovelos nus.”

Edição russa de Oblómov
Oblómov é romance com narração em terceira pessoa. Este narrador opina discretamente durante o processo literário, embora dê algumas opiniões sobre a forma de pensar em nível moral e de comportamento dos personagens. A obra é dividida em quatro partes com capítulos em romano. A parte 1 é composta por onze capítulos, com destaque ao episódio do capítulo IX, O sonho de Oblómov; a parte 2 é composta por doze capítulos, assim como a parte 3; finalmente, a parte 4, retoma o número de capítulos da parte 1, no caso, onze.
O tempo narrativo sugere a abrangência de alguns anos, em torno de dez, com marcas precisas em alguns momentos do enredo, como um ano que se passou, ou alguns meses, ou, ainda, semanas, ou pelo crescimento de algumas crianças (no caso os filhos do primeiro casamento de Agáfia Matviéievna Pchenítsina), ou viagens ao exterior por conta de Stolz e de Olga (quando solteiros e, depois, casados) e, também, pelo envelhecimento de Zakhar Trofímov, e, até, pelo do cão em casa do inquilino Oblómov em Víborg. Há, também, o passado remoto de Oblómov e de Stolz, se considerarmos, em relação ao tempo presente, suas infâncias. Há o passado recente destes mesmos personagens quando se deslocam para Moscou e Petersburgo em nível de suas formações universitárias. O tempo psicológico atua no decorrer da narrativa, não somente por se estender através da mudança entre um dia e outro, ou uma noite e outra, como na apresentação dos acontecimentos amorosos entre Oblómov e Olga Serguéievna com as visitas (secretas ou não) nas quartas, nos domingos, pelas manhãs, pelas tardes e pelos crepúsculos. O amadurecimento psicológico frente aos sentimentos do amor, em Olga Serguéievna, fortalece este tempo psicológico.
No final do enredo, Ivan Aleksándrovitch Gontcharóv apresenta como o romance foi construído a partir das observações de Stolz e da escrita de um literato com possíveis características físicas próximas às do próprio Gontcharóv.

“Certa vez, por volta do meio-dia, dois senhores caminhavam lado a lado pelas calçadas de madeira de Víborg; atrás, uma carruagem vinha devagar. Um deles era Stolz, o outro, seu amigo, um literato gordo de rosto apático, pensativo, com olhos que pareciam sonolentos.” (Parte 4. Capítulo XI).

Gontcharóv
Na evolução da conversa entre Stolz e o literato, este tem curiosidade em saber como surgem os mendigos, pois observa grupo destes perto da igreja. Stolz sugere ao amigo dar um rublo de prata para saber completamente a história de um deles. Chama, então, um típico mendigo. Este se aproxima dos dois senhores com um rosário de invencionices sobre suas condições que o levaram a situação atual de mendicidade, até ser interrompido com a exclamação de Stolz: “Zakhar!”. Por fim, pela menção que Zakhar faz de ter dúvida em abandonar o túmulo de seu patrão Oblómov e seguir o alemão à sua aldeia, o literato receberá a história de Iliá Ilitch Oblómov da boca de Stolz. De posse das informações, escreve o volume que o leitor acabou de ler.

-  Puxa, você ouviu só a história daquele mendigo? – disse Stolz a seu amigo.
-  Mas quem é esse tal de Iliá Ilitch de quem ele falou? – perguntou o literato.
-  Oblómov: eu já falei com você várias vezes sobre ele.
-  Sim, lembro o nome: seu camarada e amigo. O que aconteceu com ele?
-  Morreu, uma vida desperdiçada.
 Stolz suspirou e se pôs a pensar.
-  E não era mais tolo do que os outros, tinha a alma pura e clara, como cristal; nobre, gentil... e desperdiçou a vida!
-  Por quê? Qual foi a causa?
-  A causa... qual foi a causa? Oblomovismo! – disse Stolz.
-  Oblomovismo! – repetiu o literato com surpresa. – O que é isso?
-  Vou lhe contar daqui a pouco, deixe-me organizar as ideias e a memória. E depois você escreve: quem sabe pode ser útil a alguém?
  E ele contou o que aqui está escrito.”



Deste modo, a história apreciada pelo leitor tem a ideia do enredo proposta por Stolz a partir da vida de Oblómov e a escrita do literato.