sábado, 12 de outubro de 2013

Os demônios - F. M. Dostoiévski

OS   DEMÔNIOS (1871)

(BIÊSSI /Бесы)



Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski


  Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski acompanha intensamente, em Genebra, a atividade política de Mikhail Aleksandróvitch Bakúnin (1814-1876) a partir da integração entre imigrantes revolucionários russos. Nietcháiev é o escolhido para representar, na Rússia, o pensamento de Bakúnin, com direito à documentação em seu nome assinado por Bakúnin para representá-lo em seus interesses políticos num Comitê Geral. Usando deste poder, Nietcháiev abusa de suas atribuições, terminando por assassinar o estudante da Academia de Agricultura Ivanov, por este discordar e não querer mais fazer parte dos quintetos e da organização revolucionária clandestina. Spítkin, irmão de Anna Grigórievna Dostoiévskaia, segunda esposa de Dostoiévski e que fora sua estenógrafa, também fazia parte da organização revolucionária. Está instalada, então, a Justiça Sumária do Povo. A partir destes pressupostos e do assassinato de Ivanov em 21 de novembro de 1869, Dostoiévski deseja dar uma resposta aos revolucionários russos. Em carta a Máikov, datada de 24 de fevereiro de 1870, Dostoiévski afirma, impressionado pela morte do estudante Ivanov, estar elaborando uma história mais próxima da realidade do que a construída em Crime e castigo, que muito promete, pois causará um grande efeito no público leitor.

  Dostoiévski interrompe projetos que vem desenvolvendo (uma novela, sobre o capitão Kartúzov; outra, A morte do poeta; e os romances O príncipe e o agiota, Inveja e A vida de um grande pecador) para iniciar freneticamente o texto que, atualmente, lemos com ardor e paixão, pois se as questões políticas e filosóficas de seus personagens aparentemente pouca aproximação podem ter com nossa atualidade, ao enfrentarmos o texto e o subtexto de Os demônios ficamos perplexos por, ao menos, dois motivos estarrecedores: a sociedade em que vivemos se articula de maneira não tão distante daqueles tempos anárquicos e revolucionários (se observarmos a paralisia e o frenético paradoxais de conceitos), como também empresta a nossa imaginação os conluios sociais para denegrir ou enaltecer indivíduos capazes de investir na engrenagem pessoal e coletiva em busca de um proveito próprio.

  Ao iniciarmos a leitura deste romance, que aparece depois das grandiosas obras Memórias do subsolo (1864), Crime e castigo (1866) e O idiota (1868), percebemos a habilidade de Dostoiévski ao manipular conceitos, personagens e ideologia num avanço nervoso e desigual na literatura do século XIX.

  As primeiras anotações deste trabalho são encontradas em 1870, em 16 de fevereiro, em seu caderno de notas com um plano detalhado sobre Os demônios já com a maioria dos personagens confeccionados assim como diversos elementos de seu argumento. Em janeiro de 1871, sai Os demônios, em suas Partes I e II, no Mensageiro Russo (Rússkii Viéstnik) nos números I, II, IV, VII, IX, X e XI. A publicação é interrompida em novembro. O motivo da paralisação dá-se por um capítulo escrito e não aprovado pelo redator-chefe do Mensageiro Russo, Mikhail Katkóv. Este capítulo, conhecido como “A confissão de Stavróguin”, termina por sair em separado e em fragmentos no ano de 1905 e, em 1922, completo, apesar das várias modificações propostas por Dostoiévski e graças à preservação dos manuscritos por Anna Grigórievna Dostoiévskaia. Há especulações e dúvidas dos reais motivos da não publicação deste capítulo: a insuportável cena realista do envolvimento covarde de Stavróguin com Matriócha – menina com 14 anos, embora Katkóv não se opôs à cena cruel entre Svidrigáilov e uma menininha em Crime e castigo;a amizade (e inimizade) de Katkóv com Bakúnin, o protótipo de Stavróguin; a repetição da violação de uma menina já encontrada em outros títulos de Dostoiévski, etc. Quando, em 1873, Dostoiévski publica por sua própria conta Os demônios, também não inclui este capítulo basicamente dialogal entre Nikolai Stavróguin e o ex-bispo Tíkhon, reforçando, quem sabe?, a ideia da não repetição da violação infantil. Para Dostoiévski, o sofrimento de uma criança não é justificável, nem tampouco, perdoável seu violador. Finalmente, sai, em 1872, em novembro/dezembro, a Terceira parte no Mensageiro Russo (XI e XII).


  O enredo de Os demônios fixa a ambientação numa província da Rússia. Nesta localidade, há nova governança com a chegada de Andriêi Antónovitch von Lembke e sua esposa Yúlia Mikháilovna em substituição a Ivan Óssipovitch, então parente de Varvara Pietrovna. Desta maneira, Dostoiévski tece, através de seu narrador Anton, comentários da vida social desta província, com suas fofocas, estranhamentos, maledicências e violência das mais variadas: assassinato, suicídio, loucura, deformação física, histeria e epilepsia. A pequenez tanto social como física da cidade é apresentada assim: “As calçadas da nossa cidade são estreitinhas, de tijolo, e assim também as pontes.”. Complementam o cenário da cidade e de suas adjacências o seguinte: o clube, a fazenda dos Stavróguin (Skvoriéchniki), o parque com sua gruta, seus três tanques e o pinheiral de Skvoriéchniki, a fábrica dos Chpigúlin, a localidade de Zariétchie (e seu incêndio), a Estrada real que passa por Skvoriéchniki a meia versta (“Na estrada real está a ideia…”; “A estrada real é algo longo, longo, do qual não se vê o fim, como se fosse a vida de um homem, como se fosse o sonho de um homem.”), as aldeias de Khátovo, de Spássov e de Ústievo. Moscou e Petersburgo são também mencionadas pelas relações que lá possuem alguns personagens (Varvara; Stiepan; Nikolai; Piotr; Lebiádkin, etc.).











A SOCIEDADE SECRETA

  A Sociedade tem ligação à Internationale. Na Rússia, é representada por Piotr Vierkhoviénski, Chátov, Kiríllov, Lebiádkin, Nikolai Stavróguin, entre outros. Cada um tem participação distinta, assim como todos devem controlar a todos, partindo do pressuposto que possam ser, todos, espiões destinados a denunciar os membros da Sociedade. Chátov ingressa, por exemplo, na Sociedade no exterior e é encarregado de uma tipografia que deverá ser entregue (papéis e o linotipo) a alguém que se apresentar como da Sociedade tempos depois. Para Chátov, ele rompe com os idiotas da Sociedade, pois é de seu direito, além de crer que a tipografia é a última exigência da Sociedade, que o liberará depois. A Sociedade não pensa desta forma e não tem a intenção de deixar Chátov ir embora. Segundo Stavróguin, a participação dele se resume da seguinte maneira: reorganizou a Sociedade segundo o novo plano desta. Assim, Nikolai não se julga seu membro, tendo, assim como Chátov (mas com direitos diferentes), o direito de deixá-la. Entretanto, a Sociedade não vê desta forma o caso de Nikolai, pois está condenado como Chátov. Para a Sociedade, tudo é pena de morte e ordens no papel, carimbadas e assinadas por três membros e meio. A organização russa, no caso, é obscura “e quase sempre tão inesperada que aqui realmente se pode experimentar tudo.”. Para a Sociedade, Chátov é um espião e, por saber demais sobre ela, pode denunciá-la amanhã ou depois.

  O problema é, entretanto, que a maioria destas ideias da Sociedade são protocoladas com a liderança de Piotr Vierkhoviénski, protagonista que induz, conduz e confunde os demais membros da Sociedade com suas omissões, suas mentiras e encaminhamentos do destino dos membros de seu quinteto, embora dependente de Stavróguin. Havendo um comitê central, Piotr Vierkhoviénski é o representante deste comitê na província e, dele, o programa de ação deve ser aplicado: denúncias sistemáticas para desacreditar o poder local (no caso, a excessiva aproximação de Piotr em casa do governador da província Lembke e, principalmente, com a esposa deste Yúlia Mikháilovna), geral perplexidade nos povoados (exemplo ratificado com o baile promovido por Yúlia), engendrar o cinismo e o escândalo (exemplo da fuga de Lizavieta com Nikolai), total descrença no que quer que exista (discurso do professor substituto de Stiepan no baile de Yúlia, personagem inspirado no professor de história da Rússia, na Universidade de São Petersburgo, Platon Vassílievitch Pávlov) e lançar mão de incêndios como meio predominantemente popular (os operários da fábrica dos Chpigúlin e o incêndio em Zariétchie). Em determinado momento do enredo, Piotr acusa o quinteto subordinado a sua pessoa de insubordinação. Alerta que o quinteto será preso, pois já é conhecido também o segredo da rede. Houve delação de Chátov, mente, embora crê que Chátov fará a denúncia mais cedo ou mais tarde. Apresenta, então, seu plano: atrair Chátov ao local aonde está enterrado o linotipo secreto (máquina de compor textos em blocos de linha) e lá decidir tudo: matá-lo. Os revolucionários sabem que “caíram como moscas numa teia de aranha”, pois Piotr está fora dos trilhos.

  A resposta de Dostoiévski é rápida aos niilistas, aos revolucionários e aos socialistas: “o ateísmo e o socialismo são estranhos ao povo russo e até incompatíveis com sua natureza”. Segundo Dostoiévski, uma sociedade sem Deus apoiada unicamente na ciência e na razão não estabelece relações sólidas, pois é inútil. A dicotomia torna-se presente e cresce em sua ideia central: os conceitos políticos, ideológicos e religiosos de Piotr Vierkhoviénski são rechaçados pela ideia russa de Chátov, enriquecida pela universalidade de Tíkhon. Se Piotr “vence” Chátov, o mesmo não acontece com Stavróguin, o ocidentalista e niilista rico e inteligente, “derrotado” por Tíkhon, o ex-bispo profético: Stavróguin enforca-se, destruindo as suas manifestações extremas da paixão e do prazer que o tornaram vazio interiormente. Ao perder seu equilíbrio interior desempenhado ao longo do enredo de Os demônios, Stavróguin sai de cena para não se denunciar através de sua confissão da “vida de um grande pecador”. Está morto o ocidentalismo em relação à ortodoxia russa. O diálogo entre Tíkhon e Stavróguin antecipa as discussões religiosas e filosóficas entre Ivan e Aliocha em Os irmãos Karamázov, assim como o enforcamento de Stavróguin corresponde ao tiro dado por Svidrigáilov em si mesmo, pois não há perdão para quem causa sofrimento nas crianças.






terça-feira, 8 de outubro de 2013

O Idiota - F. M. Dostoiévski

O IDIOTA(1868)

(IDIOT /Идиот)


Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski





   Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski redige O idiota no estrangeiro, iniciando em Genebra e concluindo seu trabalho em Florença. Durante este período na Europa, com sua segunda esposa Anna Grigorievna Dostoiévskaia, a vida do casal continua turbulenta, embora sem as pressões dos credores caso estivessem na Rússia. Entretanto, enquanto trabalha em seu novo romance, Dostoiévski se vê obrigado a se mudar cinco vezes neste período na Europa. Uma tragédia também se abate no casal, porque sua primeira filha morre pouco tempo depois de nascer. Assim, a produção de O idiota dá-se em meio de turbulências.



   As primeiras anotações para O idiota aparecem em setembro de 1867. Neste mesmo ano, em novembro ou dezembro, Dostoiévski destrói a primeira redação de O idiota e idealiza novo projeto para o futuro romance. Dostoiévski aprecia Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, como também sabe que o público leitor se simpatiza com o protagonista do escritor espanhol. No Capítulo I da Segunda Parte, Aglaia guarda um bilhete enviado por Míchkin dentro de um volume de Dom Quixote de La Mancha.Depois vê qual o livro escolhido e gargalha sem saber por quê. Dostoiévski tem consciência que seu Míchkin deve ser diferente de Dom Quixote, embora em seu primeiro esboço seu futuro personagem deva preencher algo de bom que carece na sociedade moderna. Para fugir do cômico de Cervantes, a elaboração de seu Míchkin deve se aprofundar não apenas na diferença que ele é em relação ao contexto em que vive, mas ir além em suas intenções ao compreender o sofrimento humano. Ao escolher, por exemplo, por Nastácia Fílippovna, Míchkin opta por este sofrimento; Dostoiévski opta, ao escolher por um tipo como Míchkin, por um personagem disposto a sacrificar sua vida pela vida do outro, numa espécie de ressurreição proposta para Raskólnikov em Crime e castigo. Outro aspecto interessante é a maneira como Míchkin entende a vida promíscua de Nastácia Fílippovna, procurando sacrificar a sua para salvá-la; Raskólnikov, embora só vá compreender no final da trama de Crime e castigo seu amor por Sônia Semeónovna Marmieládova, se ajoelha frente à moça por estar frente ao sofrimento humano. Sim, Míchkin não é Raskólnikov, mas Raskólnikov pode ser Míchkin em sua nova vida depois da pena na Sibéria. Em dezembro de 1867, então, Dostoiévski inicia a redação definitiva de O idiota em Genebra. No ano seguinte, em janeiro de 1868, começa a publicação de seu novo romance nos números I, II, IV - XII no Rúski viéstnik. Finalmente, em 1869, em janeiro, em Florença, Dostoiévski conclui O idiota. A primeira e única edição em vida do autor sai em dois volumes em São Petersburgo no ano de 1874. Há pequenas modificações feitas pelo autor nos últimos quatro capítulos da obra daquela primeira versão no Rúski viéstnik.

   Dostoiévski prima pela dicotomia entre dois grupos de personagens em O idiota: os de caráter social e os de caráter metafísico. Os primeiros são os ditos vulgares e comuns, envolvidos em questões secundárias e de relacionamento mundano. Vê-se, por exemplo, o que o narrador desenvolve no Capítulo 1 da Quarta Parte de O idiota: há pessoas “comuns” ou “ordinárias”, mas há, também, diferenças entre estas, pois há as “limitadas” e as bem “mais inteligentes”. As limitadas são felizes por natureza; as “bem mais inteligentes”, mais infelizes. É o caso do personagem Gavrila Ardaliónovitch Ívolguin (Gánia), “contagiado pelo desejo de originalidade”, pela “falta de talento”, por seus “desejos impetuosos e invejosos”, por seus “nervos irritados”, pelo “ódio que tem da pobreza e da decadência de sua família” e por acreditar que a conquista de tudo passa pelo dinheiro. A contradição deste personagem é evidente, por isso humana, pois vive às custas do cunhado (Ptítzin) e, em determinado momento, se arrepende de ter devolvido – via Míchkin – o dinheiro “doado” por Nastácia Fílippovna. Este dinheiro, cabe salientar, é resultado da loucura apaixonada de Rogójin para conquistar Nastácia. No dia do aniversário de Nastácia, ela recebe um pacote com enorme quantia de dinheiro. Para provocar e humilhar seu suposto “noivo” Gavrila, joga o pacote contendo 100 mil rublos na lareira. Gánia fica a observar o pacote queimar, mas se contém e não pega, com certa dignidade, o pacote. Por fim, desmaia. O pacote é retirado da lareira apenas chamuscado. A luta interior de Gavrila é digna e, seu desmaio, a metáfora que reage ao materialismo iminente em sua proposta de vida.

   Os outros personagens, aqueles de caráter metafísico, personificados em três protagonistas (Liev Nikoláievitch Míchkin, Parfen Semeónovitch Rogójin e Nastácia Filíppovna Barachkova), distendem-se em preocupações mais profundas e com consequências principais, pois filosóficas. Entretanto, no decorrer da leitura de O idiota, estes últimos personagens terminam por se envolver nos problemas sociais e mundanos que estão às suas voltas, salientando ainda mais em suas personalidades a tensão em que vivem. Nas convivências estabelecidas entre si, estes três personagens principais percorrem um trajeto similar instaurando em suas performances de caráter o sombrio assustador de um destino inexorável, de um final que se torna cíclico da primeira à ultima parte do romance. Suas estranhezas são salientadas e diluídas na convivência com os personagens sociais, atendendo ao apelo da trama: o suspense, o minúsculo, o diálogo, a reflexão e as atitudes inconsequentes, pois apaixonadas.

   Para Dostoiévski, o essencial é saber como o homem deve ser em sua existência e, não apenas, como ele se apresenta em sociedade e em suas relações pessoais. Este “ir além” dostoievskiano corrobora em seus personagens a diferença dos tipos realistas do século XIX, porque a base da construção destes passa também a ser filosófica.

   As relações de Liev Nikoláievitch Míchkin, a cada momento da narrativa, se aprofundam, seja com o cotidiano mundano e cheio de mesquinharias e intrigas triviais, seja com dois personagens que se tocam para tocarem no príncipe Míchkin. Se avaliado o estreitamento entre Míchkin e Nastácia Filíppova e Rogójin, percebemos o inexorável de suas uniões e desuniões ao longo da história de Dostoiévski. Míchkin é um homem dotado de bondade e de simplicidade, agravantes em seu convívio com a maioria dos personagens. Entretanto, Dostoiévski faz um duplo interessante nos personagens Míchkin e Rogójin. Rogójin, no início da narrativa, gosta de Míchkin, apontando a este como o vê: um iuródiv, ou seja, uma mescla de tolo, mendigo bitolado e clarividente. Míchkin “vê” os outros de modo diferente, “vê” também vultos e olhares que o acompanham ou que o observam no meio de multidões; Míchkin, o Cristo simbolizado por Dostoiévski, tem uma sensibilidade destacada em nível dos demais homens. Ao conversar com os demais personagens, o príncipe, antecipadamente, já sabe o rumo que a conversa tomará, embora não consiga, racionalmente, acompanhar a razão vilipendiada dos interesses e das relações sociais de seus pares. Todos aqueles que convivem com Míchkin terminam por gostar dele ao seu modo: irritados, ofendidos, humilhados, desarmados, etc. Chegam, muitos destes personagens, a externar o que sentem a Míchkin, seja o ofendendo ou reconhecendo sua pureza e franqueza. Míckhin sofre, entretanto, ao se deparar com um mundo convencionalmente egoísta, perdulário ao dinheiro e às relações mesquinhas e parasitárias. Se Míchkin se aproxima de Rogójin e de Nastácia é porque estes precisam mais do que qualquer outro personagem de O idiota, pois, estando mal, sofrem algo que extrapola a mediocridade do mundo. A punição a estes três personagens é o tripé de um mundo metafísico pressionado pelo amor, pelo ódio, pela própria existência. O existir de Rogójin é amar odiando; o de Nastácia, odiar o amado e o de Míckhin, amar o seu semelhante, por isso nada ou pouco o surpreende.

   A cruz de Rogójin no peito de Míchkin é a duplicidade da cruz de Míchkin no peito de Rogíjin; a mão que acaricia a loucura de Nastácia Filíppovna, é a mesma mão que acaricia a cabeça do assassino da depravada. O que fica para Míchkin é a luminosidade maravilhosa de seus ataques epilépticos que, finalmente, se tornam sua loucura, sua idiotia e o não reconhecimento mais de quem é aquela mulher que o visita na Suíça e chora por seu parente distante: Lisavieta Iepántchina Prokófievna.



terça-feira, 1 de outubro de 2013

Crime e Castigo - Fiódor M. Dostoiévski

CRIME E CASTIGO (1866)


П р е с т у п л е́ н и е     и      н а к а з а́ н и е


(PRESTUPLENIE I NAKAZANIE) 


Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski



 


“... mas pode ser que Deus absolutamente não exista.” (de Rodion à Sônia) 

Inicialmente, “No Mensageiro Russo”, em 1866. 

Em forma de livro, em 1867 (com modificações). 

Nova edição, sem modificação, em 1870. 

Última publicação em vida do autor, com alguns reparos, em 1877.


Crime e Castigo (1866) é escrito cerca de vinte anos depois da estreia de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) na literatura russa (com Gente pobre, publicado em 1846 e escrito no ano anterior). Em Gente pobre, a dimensão do destino dos personagens Varvara e Makar é destacada na troca de cartas entre os dois. A preocupação que ambos apresentam em seus discursos é relevante na medida em que o amadurecimento do homem e do escritor Dostoiévski e de sua escrita aparecem na estrutura psicológica associada à ideológica de seus personagens. Há início, em seu primeiro romance, de uma dimensão que se tornará, com o tempo, mais profunda e audaciosa. Entretanto, desde Gente pobre até Recordações da casa dos mortos (1862), Dostoiévski vacila ainda em certo romanticismo em A senhoria (1847), Noites brancas (1848) e Niétotchka Niezvânova (1849). Mas este vacilo é mesclado com a impaciência nevrálgica de seus narradores oportunos com o que vivenciam. Memórias do subsolo inaugura, em 1864, o investimento subterrâneo das neuroses dos protagonistas confessionais de Dostoiévski. A denominada fase de maturidade do escritor russo termina com a publicação, em 1880, de Os irmãos Karamázov.

Raskólnikov, protagonista do romance Crime e castigo, é um jovem intelectualizado (estudante da faculdade de Direito de São Petersburgo que abandona o curso por questãos financeiras e tem artigo publicado sobre a psicologia do crime em revista da cidade) propenso a acreditar que a partir de um crime, ao eliminar “um princípio” e não um homem, poderá fazer ações boas. Assim, cometido o delito, vê-se despreparado e fracassado para pôr em prática sua teoria. Aniquilado também psicologicamente, percorre os labirintos de seus pensamentos, as ruas de São Petersburgo (becos, pátios abandonados, canais, pontes, prédios suspeitos, tabernas, descampados, etc.) e segue insinuações e delírios que se submete ao fazer a leitura de tudo o que o cerca impiedosa e amargamente. Desta maneira, surgem os demais personagens, servindo para que Rodion viva o seu “estado febril; delírio e semiconsciência”, enfim, seu inferno moral e subterrâneo, apesar de que para si mesmo não entenda o crime como um ato delituoso. Para Raskólnikov, os “homens extraordinários” (assim como Napoleão) diferenciam-se dos “homens ordinários”, pois estes não conseguem ultrapassar o limite estabelecido pela lei. Burlar o limite, ou seja, a lei, é possível para aquele que faz o próprio limite e que se julga diferente da massa. O fracasso de Raskólnikov é que o tortura, e, por extensão, o próprio crime é compreendido como incompleto. Ao entregar-se à polícia, também elucida o caso criminal em São Petersburgo, submete-se ao sofrimento e ratifica seu fracasso ao matar Aliena (a velha viúva usurária) e Lisavieta (irmã explorada por Aliena). No fim do romance, o sofrimento serve para sua redenção e sua ressurreição graças também à ex-prostituta Sônia na Sibéria.

A galeria de personagens em Crime e castigo confirma tipos expressivos da obra dostoievskiana como um todo: homens e mulheres que não aceitam facilmente a dimensão de seus destinos. Exemplos significativos são os de Marmieládov e a bebida; Catierina e a miserabilidade; Sônia, portadora da “carteira de identidade amarela” que sustenta a família e traz a Raskólnikov a redenção; Avdótia, irmã de Ródia, que abre mão do noivado seguro financeiramente para não ser humilhada pelo noivo Lújin, capitalista que a vê como miserável; Svidrigáilov, que procura superar-se fazendo doações de rublos e copeques para aqueles que pouco possuem; Razumíkhin e sua espontaneidade tola e eficaz; e Porfiri, torturador psicológico de Ródia com suas hipóteses acerca do crime cometido por este.


Dostoiévski acena, em Crime e castigo, com cerca de oitenta personagens, entre bêbados, criados, funcionários públicos (conselheiro titular, funcionário do ministério, conselheiro de Estado, conselheiro forense, tenente, inspetor de polícia, escriturário, general, juiz de instrução e policial); um ou outro príncipe e princesa apenas citados, patifes endinheirados, velhas usurárias, senhorias, cantores e proprietários de tabernas; mendigos, ex-estudantes, pintores e empregados do povo em geral; turba de curiosos; alguns estrangeiros (alemão, polaco e judeu), conselheiro da Corte, crianças famintas e órfãs, alfaiate, cozinheira e zeladores, desocupados em geral, médicos, padres, comerciantes, viúvas, livreiro, camponês, prostitutas, agenciadoras de meninas, pedófilo, assassinos, costureiras, moradores da comuna, entre outros.

Do quarto à cidade de Rodion Románovitch Raskólnikov

Viver o limite, ultrapassá-lo ou não, conformar-se e analisá-lo teoricamente são alguns dos recursos para os grandes temas da alma humana apresentados por Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski. Seguindo os raciocínios de um bêbado inveterado, como Semion Zakháritch Marmieládov, ou de um patife descarado, como Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov, respectivamente, nos deparamos com as conclusivas revelações:

“...porque tudo já é do conhecimento de todos e tudo o que estiver encoberto será revelado; e não é com desprezo mas com humildade que considero tudo isso.” e “...na terra da gente é melhor: aqui, ao menos a gente põe a culpa de tudo nos outros e se desculpa a si mesmo.”

Mas relembrando Rodion Románovitch Raskólnikov e seu pensamento furioso em sua “natureza morbitamente irritada”, é possível compreendê-lo ainda mais:

“Aí estão eles nesse vaivém pelas ruas, mas cada um deles é um patife e um bandido já pela própria natureza; pior ainda, é um idiota! Mas tenta alguém me evitar o exílio e todos eles ficarão loucos de nobre indignação! Oh, como eu odeio todos eles!”

São Petersburgo – é a cidade com seus “cheiros insuportáveis das tavernas”, seus “bêbados”, seu abafamento - como “um quarto sem postigos” (comparação importante com o quarto de Raskólnikov!), seu pôr-do-sol e sua influência na psicologia do protagonista (diversas vezes ao longo do romance a imagem do final do dia associa-se com a angústia delírica e soturna de Ródia). Segundo Svidrigáilov, assim ele define São Petersburgo: “cidade de semiloucos”, “tantas influências sombrias, grosseiras e estranhas sobre a alma humana”, “influências climáticas” e “centro administrativo de toda a Rússia”. Pela primeira vez na literatura russa, Petersburgo é tão reveladora de seus subterrâneos e, por extensão, das minúcias psicológicas de seus antros e de seus habitantes;

O quarto de Raskólnikov - “Gaiola minúscula, de uns seis passos de comprimento, do aspecto mais deplorável, com um papel de parede já amarelado, empoeirado e todo descolado, e tão baixa que um homem um pouquinho alto que fosse ficaria horrorizado, com a impressão permanente de que a qualquer momento bateria com a cabeça no teto.” “Era difícil chegar a maior degradação e mais desleixo”, ou “cubículo amarelo, parecido com um armário ou baú”, “Todo o quarto era de um tamanho tal que se podia abrir o trinco sem se levantar da cama.”, “Cabide de navio.” e “Quarto ruim... parece um caixão de defunto.” Segundo o próprio Raskólnikov, “eu me encafuei num canto do meu quarto como uma aranha”. Esta afirmação de Dostoiévski faz o leitor recordar a ideia de Fraz Kafka (1883-1924) em A metamorfose (1912).

As relações de Rodion são as mais diversas ao longo da narrativa de Crime e castigo. Desta forma, Dostoiévski cria relações tanto de piedade como de irritabilidade e confronto de seu jovem protagonista com os demais personagens. Conforme Rodion avança em suas intenções, suas ações o impossibilita de viver em liberdade, engessando sua capacidade de pensar, de raciocinar e, principalmente, lidar com as sensações que cria ao redor de si.


Uma obra significativa de encontros e desencontros, de arruaças sociais e emotivas que enriquecem os relacionamentos de Rodion, ao ponto de o leitor, por exemplo, sentir-se sufocado e desorientado na trajetória frenética que Rodion busca enfrentar desafiando as mais variadas formas de convívio social. Raskólnikov acaba, por via indireta, testar o seu limite com o mundo. Entre distrações de pensamento, de distratos pessoais, de esquecimentos devido ao seu estado quase vegetativo de raciocínio, até delírios febris, Rodion estabelece em seu domínio mental hipocondrias infames, dissonantes com a realidade e, sobretudo, fantasias inauditas para que aqueles que estabelecem trocas com ele se sintam um tanto confusos pelas atitudes pensadas e doentias do ex-estudante de Direito.


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

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terça-feira, 2 de julho de 2013

Enfermaria nº 6 e o minúsculo da vida cotidiana

casa onde nasceu Tchékhov




Enfermaria no 6  (Палата № 6)

А н т о́ н   П а́ в л о в и ч  Ч е́ х о в

(Antón Pávilovitch Tchékhov)



Tchékhov e Olga Knipper
Antón Pávilovitch Tchékhov é consagrado não somente por seus breves e surpreendentes contos e por sua hábil capacidade de analisar o óbvio e o minúsculo do cotidiano, mas por deixar seus relatos como “incompletos” do início ao fim. Tchékhov dizia que o escritor, depois de concluir um conto, devia eliminar o começo e o fim do texto, momentos que a mentira perdura. Dramaturgo, contista, novelista e médico que morre tuberculoso no ano de 1904 (Badenweiler, Alemanha), Tchékhov inicia sua literatura com  textos humorísticos para manter seu próprio sustento e o de sua família. Nasce em 1860 – em Taganrog – e, no final de sua breve vida, em 1901, une-se à atriz Olga Knipper. “Estou morrendo” e “pediu uma taça de champanhe” para, depois, ser conduzido até sua cama, tornam-se descrições corriqueiras em suas biografias. Também são habituais as lembranças de diversos contos de Tchékhov, assim como, ao menos, três peças de teatro que marcam o final do século XIX e o princípio do século XX na dramaturgia: A gaivota (1896), Três irmãs (1901) e O jardim das cerejeiras (1904). Platonov (1881), Ivanov (1887) e Tio Vânia (1900) também merecem destaque. A viagem que faz à ilha de Sacalina, já com a saúde comprometida, é relatada em A ilha de Sacalina (1893-1894), obra humana sobre prisioneiros desta ilha no mar do Japão e suas condições primárias de tratamento.

Não desconhece os avanços da medicina, entretanto,
loucos continuam sem liberdade e taxas de mortalidade e
de doenças permanecem as mesmas.

O hospital é altamente prejudicial à saúde dos habitantes.

Para que impedir os homens de morrer,
se a morte é o fim natural e legítimo de cada um?

(reflexões do médico Andriéi Iefímitch Ráguin, em Enfermaria no 6)


Enfermaria no 6 (Палата № 6 – Palata nomer chest), datada de 1892, atenta pelo movimento criado por Tchékhov para discutir a mesmice e mediocridade de uma província e, por contágio, a relação de um paciente e um médico e seus pontos de vista, surpreendendo e corroborando com a inócua sociedade provincial russa e sua “inteligência”. Ao se ler este conto (novela, para alguns críticos), é inevitável a comparação com O alienista (1881), de Machado de Assis 1, embora as diferenças sejam evidenciadas, como, por exemplo, a sátira corrosiva e bem-humorada no texto do escritor fluminense.



   

1. Primeira impressão. Numa leitura inicial, pode-se enumerar pontos em comum entre Enfermaria no 6 e O alienista, se considerados o inusitado das situações colocado ao limite, a ironia ou, simplesmente, o poder de persuasão crítica dos dois escritores do século XIX: Tchékhov, ao criticar a sociedade russa de seu tempo, através de sua administração pública, e Machado de Assis, ao analisar o cientificismo eminente e desenfreado na sociedade oitocentista brasileira.
2. Diferenças comparativas. Algo, porém, foge do comparativo de igualdade nas trajetórias de seus protagonistas. A trágica caminhada de Andriéi Iefímitch Ráguin – o médico do obsoleto hospital psiquiátrico – dá-se da seguinte maneira: o minúsculo é avaliado do ambiente fechado do pavilhão psiquiátrico à vida particular de Andriéi Iefímitch numa relação de causa e efeito que tangencia a vida do médico com o todo, ou seja, com a vida pública russa metaforizada pelo hospital público. Já a trajetória de Simão Bacamarte é resgatada do minúsculo exterior (no caso, a Vila de Itaguaí) e o efeito imediato se vê na construção da Casa Verde ou Casa de Orates. Outro aspecto relevante é o fim concebido aos dois médicos alienistas: a morte como cessar de suas pretensas atividades, concluindo, ambos, de que nada mais resta senão o fim de um mundo que nada mais é do que a visão constrangedora de uma vida que se acaba antes mesmo de se fechar os próprios olhos para morrer. A diferença resiste também neste ponto, se considerados os enterros: com pompas para Bacamarte, com solidão para Iefímitch. Simão Bacamarte acredita no poder da ciência e se utiliza deste poder; Andriéi Iefímitch pouco crê no poder da ciência e é utilizado por este poder.
3. O enredo de Enfermaria nº 6Num pátio de um hospital de uma província russa fica um pavilhão (a enfermaria no 6) “rodeado por verdadeira floresta de bardanas, urtigas e cânhamo selvagem” 2. Este pavilhão é deprimente, pois além de mal cuidado – paredes e degraus imprestáveis e terrível cheiro de roupas e trastes apodrecidos, tem como guarda Nikita, “velho soldado reformado” que espanca e rouba os pacientes. Há, na enfermaria, cinco internos: um pequeno-burguês, paralítico, com início de tuberculose; um velho pequeno, Moissiéika, judeu com permissão para sair do pavilhão e ir à rua; Ivan Dmítritch Gromov, 33 anos, de condição nobre, antigo oficial de justiça e professor de liceu, que sofre de mania de perseguição; um mujique obeso, que apanha horrendamente de Nikita e que não responde aos golpes sofridos e, finalmente, um antigo classificador dos Correios indicado a receber, segundo crê, a Ordem de Estanislau além da “Estrela Polar” sueca! Andriéi Iefímitch tem, ao assumir o hospital, consciência do quanto este é prejudicial aos habitantes da província, pois sabe do estado precário do local como um todo, ambiente corrupto, antiquado e desumano, embora também ele nada faça para modificá-lo. Em sua casa, lê intensamente livros e revistas velhas, além de apreciar uma boa cerveja trazida pela criada Dáriuchka. Andriéi costuma pensar na condição humana, em especial em seus sofrimentos e na inevitabilidade da morte. A realidade, segundo pensa, pouco se tem a modificar, reforçando em Iefímitch o pessimismo de algo futuro. Certo dia, Andriéi Iefímitch visita o pavilhão e conversa com o jovem demente Ivan Dmítritch, acusador do médico que lhe priva a liberdade, pois é Andriéi que o trancafia na enfermaria no 6. A partir deste encontro, o médico começa com maior frequência a procurar o pavilhão e a discutir questões filosóficas com este paciente. Entretanto, Evguéni Fiódoritch Khóbotov, médico assistente recém contratado, com cerca de 30 anos, ouve, certa vez, a conversa “estranha” entre Ivan e Andriéi. O diálogo entre os dois é inteligente e agrada consideravelmente ao médico mais antigo. Neste momento em diante, Tchékhov aprofunda a discussão entre médico e paciente, assim como investe na perseguição que Andriéi sofre da própria medicina e de sua administração. Khóbotov e o melhor amigo de Andriéi, o chefe dos Correios Mikhail Avieriánitch, procuram convencê-lo de seu estado mental debilitado. Andriéi sabe que entra num “círculo encantado”, bastando, de repente, alguém começar a notar a pessoa para que esta não tenha saída. Desta forma, Andriéi começa a se entregar, embora, enganado por seu colega Khóbotov: este solicita sua ajuda para atender a um paciente, leva Andriéi à Enfermaria no 6, sendo este lá então encerrado, espancado por Nikita e, mais tarde, sofrendo um ataque de apoplexia.

4. O enredo de O alienistaSimão Bacamarte, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, instala-se em Itaguaí, cidade interiorana fluminense, com o objetivo de, na Casa Verde, (local onde o alienista pretende colocar os loucos) “estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal”. Num primeiro momento, o alienista confina na Casa Verde os loucos mansos, os furiosos e os monomaníacos, como por exemplo o rapaz que supunha ser a estrela d’alva, ou o louco que estava à procura do fim do mundo, ou o que distribuía boiadas a toda gente. Entrentanto, como dizia o ilustre Simão Bacamarte “a loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. E, assim, começa, a contragosto da população, a encerrar diversos itaguaienses. Quer, o alienista, demarcar “definitivamente os limites da razão e da loucura”. Para ele, “A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia”. Revoltado com as ações de Bacamarte, o barbeiro Porfírio lidera uma rebelião para derrubar a Casa Verde e seu alienista. Porfírio acaba assumindo a Câmara de Itaguaí. Mas Simão Bacamarte resiste, até porque não pode, segundo o próprio barbeiro Porfírio, o governo interferir nas causas científicas. Restabelecida a ordem pelo vice-rei, o alienista ganha mais prestígio. São recolhidos, então, à Casa Verde o barbeiro, o vereador Freitas, o boticário Crispim Soares, o presidente da Câmara e seu secretário e a própria esposa de Simão Bacamarte, D. Evarista. Certo dia, para mais um espanto da população de Itaguaí, todos os supostos loucos são soltos. Em nota à Câmara, o alienista decide que os loucos são, agora, todos os casos em que o equilíbrio mental seja ininterrupto. São recolhidos à Casa Verde o vereador Galvão, o Padre Lopes, o juiz-de-fora e, novamente, o barbeiro Porfírio – que havia sido solto e, não atendendo seus conhecidos, negara-se a liderar nova rebelião. Por fim, insatisfeito com suas  conclusões, pois os cérebros que cura – no caso os equilibrados – são desequilibrados como todos os outros que frequentam um dia a Casa Verde, Simão Bacamarte recolhe-se ao hospício e morre dezessete meses depois. 
1ª ed. de Papéis Avulsos, 1881, com o conto O Alienista.
5. A trajetória de Simão Bacamarte. O alienista criado por Machado de Assis aparece em Itaguaí como autoridade médica. Sua formação europeizada da medicina (ligada às teorias espanholas e portuguesa) o autoriza a não ver discutidas as suas teses na Vila de Itaguaí. Machado de Assis desloca seu protagonista à Vila para que, lá, não possa ser questionado em sua doutrina científica, pois há, apenas, nesta Vila, um médico clínico e, se loucos há outrora, são trancafiados em casa ou passeiam, sem perigo à sociedade, pelas ruas. Até então, o critério usado para a loucura dos itaguaienses é mais familiar do que científico. Trajetória rápida e destacada pela presunção e ironia, Simão Bacamarte se vê alijado não de sua ciência, mas da capacidade de discernir esta ciência do paciente, embora institucionalize uma “nova medicina” com padrões autoritários e efêmeros até concluir que o limite tênue entre a loucura e a não loucura está nele mesmo. Ao concluir-se demente, pois em perfeito equilíbrio mental, a pantomima anterior causada na Vila de Itaguaí continua agora arrefecida, uma vez que, para a população tudo volta a sua normalidade: não há loucos e, se há, este está morto. Mas o fim reserva, ainda, uma surpresa: o louco é enterrado com muita pompa, sugerindo a completa ausência de loucos em Itaguaí ou o não entendimento social do que, de fato, vem a ser a insanidade mental. Morto Bacamarte, morta a ciência deste, inócua mas que agasalhou na Casa Verde a população (os barbeiros Porfírio e João Pina), a família (D. Evarista), a política (presidente da Câmara e vereadores), a farmácia (o boticário Crispim Soares) e a própria ciência (Simão Bacamarte). Uma trajetória meteórica que fica nas crônicas remotas da Vila de Itaguaí, não sem antes ter percorrido cada casa, cada rua, cada intenção de cada indivíduo em suas expressões externas.
6. A trajetória de Andriéi Iefímitch. Sua trajetória percorre um plano que se estende da cumplicidade medíocre de sua profissão – a sua atuação como médico – até o reconhecimento prático dessa cumplicidade pelo próprio sofrimento. Neste ponto, uma aproximação de similitude com a trajetória de Simão Bacamarte, pois tanto este como Andriéi Iefímitch são vitimados pela própria ciência que um dia defenderam. Entretanto, os caminhos dos dois médicos alienistas são pouco semelhantes, pois no texto de Tchékhov, em seu primeiro capítulo, o narrador convida o leitor a ver “o que sucede em seu interior”, referindo-se ao pavilhão onde se encontram os dementes. Há, deste modo, análise imediata de dentro para fora. O leitor acompanha a evolução do pensamento do protagonista (e das atitudes dos dementes) porque este estabelece comunicação inteligente com um dos doentes mentais: Ivan Dmítritch. As conversas entre médico e paciente criam uma filosofia que aprofunda não somente a tensão da vida dos dois, como intensifica e constrange a leitura efetuada, pois esta torna-se quase insuportável uma vez que os conceitos dos personagens tendem à rivalidade de uma vida melhor (para o demente Ivan) e a mesmice tendenciosa proposta pelas atitudes daquele que em nada ou em muito pouco crê (o médico Andriéi). A dicotomia apresentada por Tchékhov inverte-se na reflexão de paciente e médico, sugerindo a leitura mais otimista para Ivan e derrotista e complacente para a inutilidade das coisas e do mundo para Andriéi. Apenas no final, em seu encerramento, uma gota de vida e rejeição àquilo que está a viver faz de Andriéi um próximo de Ivan: ambos gritam por suas liberdades, mas nada que não possa ser ajeitado pelas pancadas do guarda Nikita, pelo conhecimento médico de Khóbotov e pela fé do enfermeiro religioso Serguéi Serguéitch que se julga mais competente do que o médico Andriéi.
7. A Rússia social retratada e a ciência. Nikolai Leskov 3, ao ler a Enfermaria no 6 (texto este bastante apreciado por Liev Nikoláievitch Tolstói 4), constata a seguinte metáfora: a província de Andriéi é a Rússia em nível social. Na apresentação dos dementes, para ilustrar as categorias sociais diversas, são mencionados um pequeno-burguês, um judeu que perde seu negócio num incêndio (Moissiéika), um intelectual de extração nobre (Ivan Dmítritch Gromov), um mujique e, finalmente, um antigo classificador dos Correios. Ao sair do pavilhão, somam-se um médico despretensioso profissionalmente (Andriéi Efímitch Ráguin), um barbeiro bêbado (Semión Lázaritch), um velho soldado reformado (Nikita), um enfermeiro religioso (Serguéi Serguéitch), uma criada (Dáriuchka), um chefe dos Correios (Mikhail Averiánitich), um médico de distrito (Evguéni Fiódoritch Khóbotov), algumas crianças (Macha e as três crianças de Biélova), um prefeito e um outro médico, um empregado do Correio e uma senhoria (viúva Biélova). As condições do hospital (e, por extensão, da enfermaria) ratificam o desinteresse público ao sistema de saúde, assim como a distinção entre intelectuais e médicos. Para Andriéi, caso ele não fosse médico, seria intelectual. Segundo ainda Andriéi, ele tem pena da medicina, assim como, segundo os seus cálculos, enganou doze mil pessoas ao longo de um ano. Existem as regras, mas não a ciência.

Num ano de exercício do cargo, recebera doze mil doentes, quer dizer, raciocinando com simplicidade, enganara doze mil pessoas. Não se podiam também internar os doentes graves nas enfermarias e tratá-los de acordo com as regras da ciência, pois existiam as regras, e não a ciência; mas, no caso de se deixar de lado a filosofia e obedecer pedantemente às regras, como os demais médicos, eram necessários em primeiro lugar asseio e ventilação em vez de sujeira, uma alimentação sadia e não schtchi de chucrute fétido, e bons auxiliares em lugar de ladrões.

           Mais adiante, a evolução da medicina e seus resultados:

A psiquiatria, com os métodos de diagnose e tratamento, com a sua atual classificação das doenças, é um verdadeiro Elborus em comparação com o que existia antes. (...) Andriéi Iefímith sabe que, pelos gostos e segundo as concepções atuais, uma ignomínia como a Enfermaria no 6 é possível unicamente a duzentas verstas da estrada de ferro, numa cidadezinha em que o prefeito e todos os conselheiros municipais são pequenos-burgueses semi-analfabetos, que veem no médico um feiticeiro, em que é preciso acreditar sem qualquer crítica, mesmo que ele despeje na boca de alguém chumbo derretido; em outro lugar, o público e os jornais já teriam há muito feito em pedaços essa pequena Bastilha. (...)
“E então?”, pergunta a si mesmo Andriéi Iefímitch, abrindo os olhos. ‘O que se conclui? Tem-se a assepsia, Koch, Pasteur, mas a essência do problema não mudou nem um pouco. Os índices de doenças e de mortalidade são os mesmos. Organizam-se espetáculos e bailes para os loucos, mas assim mesmo eles não são postos em liberdades. Quer dizer que tudo é tolice e vaidade, e, em essência, não há nenhuma diferença entre a melhor clínica vienense e o meu hospital.

evidência dos problemas sociais metaforizados na enfermaria leva Andriéi a particularizá-los. Sua vida é causa e efeito das angústias social e profissional reclamada a todo instante, e a incessante busca e pouca discussão intelectual sobre o indivíduo classifica mais do que cura dementes. A análise psicológica da enfermaria funde-se com os sentimentos de Andriéi, levando-o a frequentar com regularidade aquele ambiente outrora desprezado por ele mesmo. A inserção do médico no horrendo pavilhão psiquiátrico (comparado a um edifício carcerário) é, em síntese, a autorreflexão profissional e pessoal daquele que pouco acredita em seus atos e em seus conhecimentos acadêmicos. Este médico que não consegue encarar e falar diretamente às pessoas o que lhe diz respeito perde-se no próprio meio que alimenta. Curiosamente, consegue diálogo com um demente. Deste modo, a aproximação com o louco Ivan faz sentido, pois com este a filosofia se estende, se agita, se confronta e traz reflexões oportunas. Uma razão para a vida se apresenta a Andriéi e a Ivan, mesmo que esta não apresente o sentido desejado pelo homem, num oximoro entre a filosofia, a medicina, o bom senso e o sofrimento vivido e ainda não vivido pelos homens.

8. O demente analisa o médico. Andriéi é, em certo momento do texto, analisado por Ivan. Este ganha voz e experiência psiquiátrica ao concluir que aquele que lhe privou da liberdade – sem justificativas – pouco pode compreender se nunca viveu o sofrimento na vida. A ironia é eficiente, pois o sofrimento de Andriéi é ético e social, mas, ainda, não físico. A sua ausência de liberdade não é a de Ivan Dmítritch, mas é o inócuo de nada fazer pela vida dos outros. Para Ivan, Andriéi “não viu a vida, não a conhece absolutamente, e está a par da realidade apenas em teoria”. Para Ivan, Andriéi admite somente a explicação racional, evitando espantar-se com o fim irremediável que é a morte. Ivan conclui: “Uma filosofia cômoda: não há o que fazer, tem-se a consciência tranquila e a pessoa ainda se sente um sábio…”. A revelação de um mundo com suas frustrações – em contraste com a individualidade perdida e a impotência – forma a volubilidade social num contexto incapaz de compreensão mais humana.

...pelos seus vinte e tantos anos de serviço, não lhe pagaram aposentadoria, nem uma ajuda de custo. É verdade que não trabalhara honestamente, mas a aposentadoria é paga a todos os funcionários sem exceção, honestos ou desonestos. A justiça moderna consiste justamente em que são premiados com postos, condecorações e aposentadorias não as capacidades e as qualidades morais, mas o serviço em geral, seja qual for a sua qualidade.

9. Um fim predestinado; um fim fruto da casualidade. Regras traem Andriéi, as mesmas que lhe ensinam sua contradição. Um “círculo encantado”, nas palavra de Tchékhov, que surge quando começam a notar Andriéi. Nas reflexões deste, um único homem inteligente, casualmente louco. Não há doenças, há critérios estabelecidos; não há discussões, há monólogo com a morte. Andriéi finalmente compreende isso, pois não há mais diferença entre “um fraque, um uniforme militar ou este roupão…”. Seu recolhimento ao pavilhão horrendo também é insignificância. Seu corpo resta na capela iluminado pelo luar. A apoplexia a que foi acometido retifica a inércia durante vinte e poucos anos de profissão. Um fio de luar sobre um corpo com olhos abertos fechados pelo enfermeiro pode ser o rebotalho de quem tentou amar a vida no fim. Ivan Dmítritch descobriu há tempo essa paixão, afinal, diz, “eu amo a vida, amo-a apaixonadamente.” Em Recordações da casa dos mortos (1862) e Crime e castigo (1866), Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski 5 desenvolve esta percepção nos aprisionados, sujeitos dispostos a amar intensamente a vida fora da liberdade.
10. O pessimismo em Antón Tchékhov e em Machado de Assis. O pessimismo, em O alienista, revela-se quando os doentes encarcerados na Casa Verde (honestos em sua maioria) devem ser curados para se tornarem desonestos e, assim, aptos ao convívio social. O pessimismo, em Enfermaria no 6, quando da revelação a si mesmo do “círculo encantado” que Andriéi (excetuando poucos privilegiados) não consegue se safar.
11. Uma leitura subterrânea. A substituição do velho (Andriéi) pelo novo (Khóbotov – “com muito gosto ocuparia o lugar dele”) como marca indissociável das relações profissionais.


 
1  Machado de Assis (1839-1908). Escritor e maior nome da literatura brasileira. Foi contista, romancista, cronista, crítico literário, dramaturgo e poeta. Escreveu, entre outras obras, Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.
2 Todas as citações deste conto trabalhado neste texto foram retiradas de O beijo e outras histórias (in As três irmãs – contos), traduzidas por Boris Schnaiderman, Abril Cultural, 1982. S.P.
3 Nikolai Leskov (1831-1895). Contista russo, autor, entre outros títulos, de A fraude, Águia branca, Lady Macbeth do Distrito de Mtzenski, Homens interessantes, A sentinela e O velho gênio.
4 Liev Nikoláievitch Tolstói (1828-1910). Escritor russo, ao lado de F. M. Dostoiévski, de maior representatividade na literatura do século XIX. Escreveu, entre outros títulos de sua vasta obra, Guerra e paz, Anna Kariênina, A morte de Ivan Ilitch, Khadji-Murát e Ressurreição.
5 Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881). Escritor russo. Escreveu, entre outros títulos de sua vasta obra, Gente pobre, Recordações da casa dos mortos, Memórias do subsolo, Crime e castigo, Um jogador, O idiota, Os demônios, O adolescente, O eterno marido e Os irmãos Karamázov.




sexta-feira, 14 de junho de 2013

Ciclo de Literatura Russa - CURSO DOSTOIÉVSKI


A NOITE DE TERÇA-FEIRA, DIA 11 DE JUNHO, 

ABRIU UM NOVO ESPAÇO PARA SE DISCUTIR A LITERATURA RUSSA E ROMPEU, POR EXTENSÃO, COM A INÉRCIA NO RIO GRANDE DO SUL: 

DOSTOIÉVSKI AGORA É LIDO E SIMULTANEAMENTE ANALISADO NUM CURSO ESPECÍFICO SOBRE 

O AUTOR DE CRIME E CASTIGO E OS IRMÃOS KARAMÁZOV


Ao criar este Ciclo de Literatura Russa e iniciá-lo por Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, resolvi oportunizar meus anos de estudo acumulado sobre a obra e a vida de autores russos.
O Ciclo de Literatura Russa expandirá discussões, na sequência, da vida e da obra de Tolstói, Tchékhov, Gógol e Turguêniev.
Selecionei material também para uma exposição realizada na abertura do Curso Dostoiévski de edições das obras do autor de Os demônios que contou com 243 títulos dos mais variados anos, editoras e traduções.


1. O objetivo deste Curso. Não somente teorizar sobre a obra de Dostoiévski, como incentivar o convidado a ler, durante os cinco meses de sua realização, uma obra por mês do autor de O idiota

2. O público esperado. Reconheço que imaginei o extremo em nível do interesse do público: ou um e outro interessado ou um grupo mais expressivo. 

3. O ocorrido. Falta de vagas para as turmas abertas, restando poucas vagas para a turma em Caxias do Sul. 

4. As turmas planejadas. Abri três turmas do Curso Dostoiévski: duas em Porto Alegre; uma em Caxias do Sul. Em Porto Alegre, no Absolutto Pré-Vestibular por Disciplina (Rua André Puente, 354 – Bairro Independência) e na Livraria Palavraria (Rua Vasco da Gama, 165 – Bairro Bom Fim). Em Caxias do Sul, no Cursão-Premium (Rua Os 18 do Forte, 1771 – Bairro Centro). 

5. A repercussão. O acolhimento do público à proposta do curso oferecido foi imediato: praticamente um mês antes de seu início não havia mais vaga nas turmas de Porto Alegre. 

6. O reconhecimento e a satisfação. Publicamente, para as turmas de Porto Alegre e de Caxias, meu reconhecimento por um empenho maior do que a própria busca de vagas ofertadas: o interesse pela cultura, pela diversidade, pela discussão e pela conservação do prazer máximo de uma leitura qualificada. 

7. O ineditismo. Pela primeira vez, pelas informações que possuo, não há precedente de um Curso ou um Ciclo de Literatura Russa deste porte, ou seja, envolvendo material impresso e discussão de nomes considerados geniais do século XIX e XX da cultura e da literatura russas.