A ALDEIA DE STEPÁNTCHIKOVO E SEUS HABITANTES (1859)
Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski

Curiosamente, os rompantes de alguns personagens (Fomá Fomitch, a generala e Anna Nílovna, além de Iegor Ilítch Rostániev) seguem instruções bem definidas para o alvo da culpabilidade, ou seja, o titio do narrador Serguei, Iegor Ilítch Rostániev. A bondade do titio é vista pelo trio Fomá Fomitch/generala/Anna Nílovna como amor-próprio incorrigível, egoísmo incontrolável e desasossego para todos que vivem na casa velha. Serguei, o narrador-sobrinho, como informa o subtítulo, (Das memórias de um desconhecido), surge inicialmente na aldeia com certa autoridade e autonomia de decisão para ajudar o próprio tio, personagem este que faz pedido por carta para ajudá-lo através do casamento de Serguei com a jovem preceptora Nástienka. De possível solução para o problema que titio está a enfrentar, no caso a iminente expulsão de Nástia da casa da aldeia, o narrador Serguei, de sobrenome desconhecido (pois, de Tal), vai minguando no decorrer do enredo. Sua pessoalidade narrativa é transferida para quase uma impessoalidade, embora em primeira pessoa. No final do enredo, o destino de Serguei torna-se ignorado para o leitor, e sua jovialidade e forma de pensar enfraquecem aos olhos do próprio tio e de Nástia, sendo o narrador o único a relutar ainda para com as atitudes e artimanhas de Fomá Fomitch. Como disse certo crítico, o jovem é derrotado pelos astutos e experientes velhos. As vozes apresentadas por Dostoiévski através dos diálogos e das contradições dos personagens ao expressarem seus sentimentos e discursos, já autorizam o leitor a pensar no trabalho que o autor fará em obras de sua maturidade literária, garantindo, desta forma, o caráter polifônico de sua construção narrativa.
O núcleo dos conflitos em A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes desloca-se após a Introdução, pois a partir do segundo capítulo da Primeira parte a figura do bufão Fomá Fomitch começa a ganhar força e autonomia vingativa daquilo que sofreu nas mãos do general Krakhótkin, homem mau, irritadiço e impiedoso para com seu agregado Fomá Fomitch, bufão que assim precisa agir para sobreviver. Este passa a ter, com a morte do general, atitudes similares do general, ou seja, Fomá Fomitch escolhe a dedo suas vítimas (Iegor Ilítch Rostániev, Falaliei e Vidopliássov, entre outros) para ser mau, irritadiço e impiedoso. Somente no final da narrativa é que Nástienka, de modo imperceptível, neutraliza e modifica em parte Fomá Fomitch, por também entendê-lo como homem sofredor. Iegor Ilítch Rostániev chama de São Petersburgo seu sobrinho para ajudá-lo, desde que este case com a preceptora Nástienka, o que não acontece. Iegor Ilítch Rostániev tem dois filhos ainda crianças, Sáchenka e Iliúcha, de seu primeiro casamento com Kátia, já falecida e que, junto com o marido, criou o órfão Serguei, o narrador. O passado deste basicamente anônimo narrador-personagem dá-se na aldeia de Stepántchikovo e nada mais o leitor sabe da vida deste até o final do enredo, incluindo seu destino, excluindo a informação que o jovem é homem de ciência. Esta sua intelectualidade e erudição, em momento algum comprovadas no enredo, pois ele é bastante tímido e introvertido para falar, são motivos de ira e de desconsideração de Fomá Fomitch ao jovem leviano.
Fomá Fomitch cresce na casa de Iegor Ilítch Rostániev na proporção que a generala vai decrescendo no enredo, embora no início da trama, juntamente com o general, é apresentada com mais força de espírito para combater e culpar o próprio filho Iegor Ilítch Rostániev. Temente à erudição de Fomá Fomitch, seu guia, a velha generala limita-se a ter desmaios, convulsões, achaques variados e implicâncias para com o filho, garantindo, desta maneira, seu parasitismo desde quando da união faceira com o título de seu segundo casamento, um general. Fomá Fomitch, assim é descrito por Serguei, o narrador:
“Imaginem o homenzinho mais insignificante, mais pusilânime, um pária da sociedade, de todo desnecessário, completamente inútil, completamente abjeto, mas cheio de um infinito amor-próprio, e ainda por cima rigorosamente desprovido de qualquer coisa que pudesse ao menos em alguma medida justificar esse seu amor-próprio doentio e exaltado. Previno de antemão: Fomá Fomitch é a personificação do mais ilimitado amor-próprio, mas ao mesmo tempo de um amor-próprio específico, justamente aquele que surge em meio à mais completa insignificância, e, como frequentemente acontece em tais casos, de um amor-próprio ofendido, reprimido pelos árduos fracassos do passado, há muito tempo supurado, e do qual, desde então, jorram o ódio e o veneno a cada encontro com alguém e a cada êxito alheio. Nem é preciso dizer que tudo isso vinha acompanhado da mais hedionda suscetibilidade, da mais louca desconfiança. Talvez perguntem: de onde vem tamanho amor-próprio? Como ele surge em meio a tamanha insignificância, em pessoas tão miseráveis que, até mesmo em consequência de sua posição social, seriam obrigadas a saber o seu lugar? Como responder a essa pergunta? Quem sabe: talvez haja exceções, às quais pertença o nosso herói. Ele era de fato uma exceção à regra, o que se explicará posteriormente. Permitam-me porém perguntar: estarão vocês certos de que aqueles que já se resignaram completamente e que consideram uma honra e uma alegria para si serem seus bufões, agregados e parasitas; estarão vocês certos de que eles já abdicaram completamente de qualquer amor-próprio?”. (Primeira parte. I. Introdução).
O séquito da velha generala é bem representado por Anna Nílovna Perepelítsina e seu bordão de ser “filha de tenente-coronel”. Embotada criatura e abnegada parasita bajuladora, o tipo serve como eco irritante de acusação para desqualificar o bondoso Iegor Ilítch Rostániev, culpado de tudo e responsabilizado pelos sofrimentos da mãe generala. Paralela à hipocrisia da generala e de Perepelítsina, a figura de Tatiana Ivánovna é desenhada como uma biruta repentinamente rica que sofreu num passado recente. Tatiana cresce ao longo do enredo, depois de raptada por Pável Semiônitch Obnóskin (idiota manipulado pela mãe Obnóskina) e resgatada por Iegor Ilítch Rostániev que a protege, até o final da narrativa, com Nástia. Segunda a narrativa, uma heroína.
Grupo paralelo e palpiteiro é formado e apresentado pelos inconstantes Mizíntchikov e Bakhtchêiev. O primeiro, de salafrário e idealizador do rapto de Tatiana Ivánovna, vê-se enganado por Obnóskin, até tornar-se proprietário de terras e de almas; o segundo, gordolucho irritável e opositor de Fomá Fomitch, torna-se um “cachorrinho” deste.
Por fim, criados pobre-coitados como Falaliei (o honesto e sonhador do boi branco e da dança do mujique Kamarínski) e Vidopliássov, reclamador de seu sobrenome motivado pelas gozações que sofre e pelo enlouquecimento que o leva ao hospício. Dois oligofrênicos que sofrem, também, nas mãos de Fomá Fomitch.
