sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes - F. M. Dostoiévski

A ALDEIA DE STEPÁNTCHIKOVO E SEUS HABITANTES  (1859)

Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski




   O título A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes e seu subtítulo (Das memórias de um desconhecido) soam abrangentes e banais, num primeiro instante, ao leitor. Esta armadilha dostoievskiana é retificada pelo desenvolvimento do enredo, pois, sutilmente, cada habitante vai surgindo de dentro da casa de Iegor Ilítch Rostániev como que saindo sem muita pretensão, meio que sem querer, até começar a se desvendar através de suas falas e comportamentos um tanto estranhos e associados a conchavos para lutar por seus espaços na aldeia metaforizada pela própria casa herdada por Iegor Ilítch Rostániev. O parasitismo e a hipocrisia, aliadas ao humor, enraizam-se para não mais saírem do enredo. O que o leitor espera basicamente não ocorre, ou seja, conhecer os habitantes da aldeia em suas casas, fora de casa alheia. O social esperado pelos diversos personagens “próximos” de Stepántchikovo também não acontece, pois o emblemático conflito ficará, em regra, em quatro paredes. O movimento de atração é a casa, assim como Iegor Ilítch Rostániev; este movimento é de “fora para dentro” a partir do segundo capítulo da Primeira parte.

   Curiosamente, os rompantes de alguns personagens (Fomá Fomitch, a generala e Anna Nílovna, além de Iegor Ilítch Rostániev) seguem instruções bem definidas para o alvo da culpabilidade, ou seja, o titio do narrador Serguei, Iegor Ilítch Rostániev. A bondade do titio é vista pelo trio Fomá Fomitch/generala/Anna Nílovna como amor-próprio incorrigível, egoísmo incontrolável e desasossego para todos que vivem na casa velha. Serguei, o narrador-sobrinho, como informa o subtítulo, (Das memórias de um desconhecido), surge inicialmente na aldeia com certa autoridade e autonomia de decisão para ajudar o próprio tio, personagem este que faz pedido por carta para ajudá-lo através do casamento de Serguei com a jovem preceptora Nástienka. De possível solução para o problema que titio está a enfrentar, no caso a iminente expulsão de Nástia da casa da aldeia, o narrador Serguei, de sobrenome desconhecido (pois, de Tal), vai minguando no decorrer do enredo. Sua pessoalidade narrativa é transferida para quase uma impessoalidade, embora em primeira pessoa. No final do enredo, o destino de Serguei torna-se ignorado para o leitor, e sua jovialidade e forma de pensar enfraquecem aos olhos do próprio tio e de Nástia, sendo o narrador o único a relutar ainda para com as atitudes e artimanhas de Fomá Fomitch. Como disse certo crítico, o jovem é derrotado pelos astutos e experientes velhos. As vozes apresentadas por Dostoiévski através dos diálogos e das contradições dos personagens ao expressarem seus sentimentos e discursos, já autorizam o leitor a pensar no trabalho que o autor fará em obras de sua maturidade literária, garantindo, desta forma, o caráter polifônico de sua construção narrativa.

   O núcleo dos conflitos em A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes desloca-se após a Introdução, pois a partir do segundo capítulo da Primeira parte a figura do bufão Fomá Fomitch começa a ganhar força e autonomia vingativa daquilo que sofreu nas mãos do general Krakhótkin, homem mau, irritadiço e impiedoso para com seu agregado Fomá Fomitch, bufão que assim precisa agir para sobreviver. Este passa a ter, com a morte do general, atitudes similares do general, ou seja, Fomá Fomitch escolhe a dedo suas vítimas (Iegor Ilítch Rostániev, Falaliei e Vidopliássov, entre outros) para ser mau, irritadiço e impiedoso. Somente no final da narrativa é que Nástienka, de modo imperceptível, neutraliza e modifica em parte Fomá Fomitch, por também entendê-lo como homem sofredor. Iegor Ilítch Rostániev chama de São Petersburgo seu sobrinho para ajudá-lo, desde que este case com a preceptora Nástienka, o que não acontece. Iegor Ilítch Rostániev tem dois filhos ainda crianças, Sáchenka e Iliúcha, de seu primeiro casamento com Kátia, já falecida e que, junto com o marido, criou o órfão Serguei, o narrador. O passado deste basicamente anônimo narrador-personagem dá-se na aldeia de Stepántchikovo e nada mais o leitor sabe da vida deste até o final do enredo, incluindo seu destino, excluindo a informação que o jovem é homem de ciência. Esta sua intelectualidade e erudição, em momento algum comprovadas no enredo, pois ele é bastante tímido e introvertido para falar, são motivos de ira e de desconsideração de Fomá Fomitch ao jovem leviano.

   Fomá Fomitch cresce na casa de Iegor Ilítch Rostániev na proporção que a generala vai decrescendo no enredo, embora no início da trama, juntamente com o general, é apresentada com mais força de espírito para combater e culpar o próprio filho Iegor Ilítch Rostániev. Temente à erudição de Fomá Fomitch, seu guia, a velha generala limita-se a ter desmaios, convulsões, achaques variados e implicâncias para com o filho, garantindo, desta maneira, seu parasitismo desde quando da união faceira com o título de seu segundo casamento, um general. Fomá Fomitch, assim é descrito por Serguei, o narrador:

   “Imaginem o homenzinho mais insignificante, mais pusilânime, um pária da sociedade, de todo desnecessário, completamente inútil, completamente abjeto, mas cheio de um infinito amor-próprio, e ainda por cima rigorosamente desprovido de qualquer coisa que pudesse ao menos em alguma medida justificar esse seu amor-próprio doentio e exaltado. Previno de antemão: Fomá Fomitch é a personificação do mais ilimitado amor-próprio, mas ao mesmo tempo de um amor-próprio específico, justamente aquele que surge em meio à mais completa insignificância, e, como frequentemente acontece em tais casos, de um amor-próprio ofendido, reprimido pelos árduos fracassos do passado, há muito tempo supurado, e do qual, desde então, jorram o ódio e o veneno a cada encontro com alguém e a cada êxito alheio. Nem é preciso dizer que tudo isso vinha acompanhado da mais hedionda suscetibilidade, da mais louca desconfiança. Talvez perguntem: de onde vem tamanho amor-próprio? Como ele surge em meio a tamanha insignificância, em pessoas tão miseráveis que, até mesmo em consequência de sua posição social, seriam obrigadas a saber o seu lugar? Como responder a essa pergunta? Quem sabe: talvez haja exceções, às quais pertença o nosso herói. Ele era de fato uma exceção à regra, o que se explicará posteriormente. Permitam-me porém perguntar: estarão vocês certos de que aqueles que já se resignaram completamente e que consideram uma honra e uma alegria para si serem seus bufões, agregados e parasitas; estarão vocês certos de que eles já abdicaram completamente de qualquer amor-próprio?”. (Primeira parte. I. Introdução).

   O séquito da velha generala é bem representado por Anna Nílovna Perepelítsina e seu bordão de ser “filha de tenente-coronel”. Embotada criatura e abnegada parasita bajuladora, o tipo serve como eco irritante de acusação para desqualificar o bondoso Iegor Ilítch Rostániev, culpado de tudo e responsabilizado pelos sofrimentos da mãe generala. Paralela à hipocrisia da generala e de Perepelítsina, a figura de Tatiana Ivánovna é desenhada como uma biruta repentinamente rica que sofreu num passado recente. Tatiana cresce ao longo do enredo, depois de raptada por Pável Semiônitch Obnóskin (idiota manipulado pela mãe Obnóskina) e resgatada por Iegor Ilítch Rostániev que a protege, até o final da narrativa, com Nástia. Segunda a narrativa, uma heroína.

   Grupo paralelo e palpiteiro é formado e apresentado pelos inconstantes Mizíntchikov e Bakhtchêiev. O primeiro, de salafrário e idealizador do rapto de Tatiana Ivánovna, vê-se enganado por Obnóskin, até tornar-se proprietário de terras e de almas; o segundo, gordolucho irritável e opositor de Fomá Fomitch, torna-se um “cachorrinho” deste.

    Por fim, criados pobre-coitados como Falaliei (o honesto e sonhador do boi branco e da dança do mujique Kamarínski) e Vidopliássov, reclamador de seu sobrenome motivado pelas gozações que sofre e pelo enlouquecimento que o leva ao hospício. Dois oligofrênicos que sofrem, também, nas mãos de Fomá Fomitch.

    No fim do romance, a recuperação do bufão e inócuo moralista erudito Fomá Fomitch, em mais um golpe de sua astúcia, inverte o jogo de acusações imorais que faz à Nástia para acusar Iegor Ilítch Rostániev de imoralidade frente à preceptora. Desta forma, procurou sempre preservar a nobre moça do criminal ato de Iegor Ilítch Rostániev, reconhecendo publicamente sua intenção e sua vingança depois de ter sido expulso a bordoadas pelo titio: abençoa a união de Nástia e de Iegor Ilítch Rostániev. Caindo nas graças da maioria dos personagens, excetuando o narrador Serguei, ainda é enterrado em túmulo grandioso. Esta trajetória de confusões e de reconhecimento depois de sua própria morte, apesar das estapafúrdias atitudes e discursos que proferia na aldeia, lembra, guardadas as devidas medidas, o alienista Simão Bacamarte de Machado de Assis. Este, depois de todas as confusões sobre o conceito de loucura, ainda é enterrado como sábio cientista. A diferença está na opinião do narrador de Dostoiévski, Serguei, que sustenta a incapacidade de Fomá Fomitch mesmo depois da morte deste.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Gógol e Almas mortas



   Nicolai Gógol termina sua literatura de modo similar ao seu início: no ano de 1829, publica um poema estudantil que tem enorme fracasso. Gógol e seu criado compram todos os exemplares de Hans Küchelgarten. Também deixa de utilizar o pseudônimo utilizado para esta obra, não adotando mais V. Álov; no ano de 1852, momentos antes de morrer, Gógol queima os manuscritos da Segunda parte de Almas mortas. No ano de 1842, Almas mortas é publicada, depois das mortes de Púchkin (em 1837) e de Liermontóv (em 1841). Nicolái Gógol é considerado o grande escritor vivo da Rússia. 
   O declínio da literatura de Gógol inicia com suas conclusões e investimento no seu misticismo religioso, elemento este que se encontra no seu discurso moral e na esperança de alguns de seus personagens na Segunda parte de Almas mortas. Este misticismo será um dos motivadores da queima dos manuscritos desta Segunda parte, naquele que se considera um julgamento impiedoso e severo do próprio autor por sua obra literária. É razoável lembrar que Gógol peregrinou por Jerusalém no ano de 1848. 
   Gógol foi o grande inovador da literatura russa, abrindo vertentes e diretrizes importantes não somente na literatura russa como, também, na literatura ocidental, graças a sua postura crítica frente ao seu próprio tempo, num contexto de repressão e censura de um regime autoritário.
   O projeto de Gógol, desde o início para Almas mortas, era englobar toda a Rússia em seu poema, pois sabia que para a literatura de seu país ainda não havia uma obra deste porte. Esta revelação é vista em carta a Púchkin em 07 de outubro de 1835, portanto antes da escrita de O inspetor geral.
   He comenzado a escribir Almas muertas. El tema se va extendiendo y se va convirtiendo en una novela larga y parece que será tremendamente divertida. Pero ahora la he parado en el capítulo tercero. Estoy buscando un buen informador con el que pueda compartir una breve intimidad: en esta novela quiero mostrar toda Rusia, al menos desde un lado.
   Numa primeira versão de Almas mortas, iniciada em São Petersburgo, em 1836, e continuada na Suíça e em Paris, Gógol abre mão de continuá-la por considerar que há excessiva sátira em seu enredo. Deseja, sim, criar um texto que tenha mais descrição e com menos mordacidade, embora não abrindo mão de retratar a banalidade, a mesquinharia, a hipocrisia e a trivilialidade do dinheiro que encanta a sociedade e suas relações de conluio e de corrupção nas mais variadas formas.
   Entre os anos de 1836 e 1841, a obra ganha forma sem maiores modificações em seu intento, ou seja, a de avaliar as perspectivas sociais a partir da contemplação de alguns personagens que conduzirão as atitudes mais disparatadas em nível de suas ambições e cinismos. Entretanto, uma reflexão formal começa a ganhar mais propósito, com a participação do narrador e suas interferências em relação à criação da própria obra, assim como comentários com o leitor e sobre este, como também sobre os escritores.
   Feliz o escritor que, passando ao largo das personagens enfadonhas, repugnantes, que nos repelem com o seu triste realismo, aproxima-se das personagens que mostram a elevada dignidade humana; o escritor que, no grande torvelinho das imagens cotidianas, soube acolher apenas as poucas exceções, que não modificou jamais a elevada afinação da sua lira, jamais desceu dos seus altos cumes até os seus irmãos humildes e apagados, e, sem tocar a terra, mergulhou inteiro nas suas imagens tão distantes dela e tão exaltadas. (…) Ninguém o iguala em seu poder – ele é um deus!
Mas diversa é a sorte, outro é o destino do escritor que se atreveu a descortinar tudo aquilo que está diuturnamente diante dos olhos, e o que não enxergam os olhos indiferentes – todo o terrível, espantoso limo de mesquinharia que enlameia a nossa vida, toda a profunda, assustadora frieza dos caracteres fragmentados e vulgares que pululam no nosso tantas vezes amargo e tedioso caminho terrestre; o escritor que, com o vigor do seu cinzel impiedoso, ousou expô-lo em alto e nítido relevo aos olhos do mundo inteiro!                   (Cap. VII; Primeira parte)                           
    
  Nitidamente, Gógol vê-se no segundo tipo de escritor. No período da escrita de Almas mortas, Gógol alterna a produção com leituras de São Francisco de Assis, Dante Alighieri e Homero, como registra o crítico Henry Troyat.
   O título do poema mostra toda sua ambiguidade no desenvolver do enredo, como pode se revelar no vocábulo almas, como servos ou campesinos ou mujiques, assim como espíritos, reforçados pela ideia da palavra mortas, ou seja, todo aquele campesino registrado ainda como vivo no recenseamento e não como morto, embora, na realidade estivesse. Como há demora na atualização dos dados do recenseamento, figuram, estas almas mortas, ainda como vivas, para efeito de registro e de pagamento de impostos. Mas com o desenvolvimento do enredo, a expressão almas mortas ganha semântica diferente, pois há diversos personagens vivos com suas almas mortas pela maneira como atuam socialmente, não tendo senão almas inexistentes ou mortas. Lembremos o final do poema a reflexão de Muzárov a Tchítchicov:

   Pense não nas almas mortas, mas na sua própria alma viva, e siga com Deus por outro caminho! Apresse-se, porque senão, sem mim, estará em apuros.

   O título da primeira edição foi, entretanto, As aventuras de Tchítchicov ou Almas mortas, por imposição do censor petersburguense Nikitienko para atenuar o sentido macabro do título ou, quiçá, subversivo. Esta negociação, resultou em modificações na história do Capitão Kopêikin, Capítulo X, da Primeira parte. Almas mortas é submetido à censura entre janeiro e abril do ano de 1842. A primeira edição é publicada com 2.400 exemplares. 
   Gógol chama Almas mortas de poema, assim catalogado. Uma das leituras possíveis é a subversão que o autor pretende dar ao gênero literário romance (ou novela), descaracterizando, desta forma, esta composição para se valer do gênero poema. Inicialmente, o plano de Almas mortas é ser uma obra tripartida, embora o autor tenha confeccionado apenas duas partes. Aliás, a Segunda parte passa a ser uma caricatura da Primeira parte, pois torna-se em diversos pontos obscura e um tanto enigmática no discurso do autor. A ruptura intencional dá-se, também, pela intenção gogoliana de entender Almas mortas em sua composição épica, portanto, para abranger, no seu enredo como um todo, a Rússia e seus personagens. O próprio Gógol explica:
   En los últimos siglos, ha surgido un tipo de obra narrativa que, por así decirlo, está a medio caminho entre la novela y la épica y cujo héroe, pese a ser una figura aislada e insignificante, resulta no obstante significativo en muchos aspectos para aquel que observa el alma humana. El autor hace que la vida de éste discurra a través de un encadenamiento de aventuras y cambios, con el ánimo de presentar, junto con un cuadro verdadeiro y vivo de todo lo que es significativo en los rasgos y las costumbres de la época que ha elegido, una visión mundana, explorada casi estadísticamente, de las insuficiencias, las malas costumbres, los pecados y todo aquello que él ha percibido en el periodo de tempo seleccionado y que sea digno de atraer la mirada de cualquier contemporáneo atento que busque, en el pasado fabuloso, lecciones para el presente. (...) Aunque muchas de éstas se hallan escritas en prosa, pueden ser consideradas, sin embargo, creaciones poéticas. 

    A estrutura de Almas mortas, assim é vista por Yuri Mann:



1. Capítulo primeiro. 
Tchítchicov chega à cidade NN. e a conhece;

2. Capítulo segundo ao sexto (incluído).
Tchítchicov visita vários proprietários de terras, sendo um de cada vez: (1) Manílov; (2) Koróbotchka; (3) Nozdriov; (4) Sobakêvitch; (5) Pliúchkin;

3. Capítulo sétimo.
Tchítchicov registra suas compras na cidade;

4. Capítulo oitavo.
Baile em casa do governador onde Nozdriov coloca em evidência o negócio de Tchítchicov;

5. Capítulo nono.
As damas da cidade começam a elucubrar sobre Tchítchicov, seu negócio e sua personalidade.

6. Capítulo décimo.
Os altos funcionários da cidade começam a especular sobre Tchítchicov. Morte do fiscal angustiado pela situação imposta por Tchítchicov à cidade.

7. Capítulo décimo primeiro.
É contada a história de Tchítchicov e o sentido da compra das almas mortas. Tchítchicov deixa a cidade.


   Ou, ainda, assim pode-se acompanhar a estrutura da seguinte forma:

a. Chegada de Tchítchicov à cidade de NN.;
b. Tchítchicov conquista funcionários públicos graduados e proprietários de terras;
c. Compra as almas mortas de Manílov, ou seja, este cede as almas em nome da amizade;
d. Compra as almas mortas de Nastácia: esta vende por 15 rublos, pois crê que Tchítchicov a aconselhará ao governo para que este compre produtos de sua aldeola;
e. Tchítchicov vê-se obrigado a visitar Nozdriov. Afirma querer adquirir as almas mortas deste. Este quer jogar damas e apostar as suas almas mortas. Como rouba no jogo, Tchítchicov sai deste. Nozdriov manda dois de seus criados baterem em Tchítchicov, mas este se safa com a chegada de um policial que intima Nozdriov por um caso anterior de agressão;
f. Tchítchicov visita Sobakêvitch. A negociação é árdua entre os dois referente às almas mortas. Propostas de Tchítchicov por alma morta: 80 copeques/1 rublo e meio/2 rublos/2 rublos e meio (valor fechado entre as partes). Propostas de Sobakêvitch: 100 rublos/75 rublos/50 rublos/25 rublos/3 rublos;
g. Tchítchicov visita o sovina Pliúchkin. Este não oferece muita resistência no negócio e vende 200 almas mortas e fugidas por 32 copeques cada;
h. Tchítchicov vai no cartório oficial. Encontra Manílov e Sobakêvitch. Tudo é oficializado e todos, incluindo o presidente, almoçam em casa do chefe de polícia;
i. Festa em casa do governador. Chegada e denúncia do negócio por Nozdriov;
j. Imagem de Tchítchicov é afetada, pela aproximação deste pela filha do governador e pela denúncia de Nozdriov;
k. Chegada na cidade de Koróbotchka. Fofocas entre “uma senhora agradável em todos os sentidos” (Ana Grigórievna) e “uma senhora simplesmente agradável” (Sófia Ivánovna);
l. Boato sobre Tchítchicov: almas mortas + sequestro da filha do governador + falsificador;
m. Chegada do novo governador-geral (neste ponto do enredo, há similitude com o enredo de O inspetor geral);
n. Reunião em casa do chefe de polícia. Deliberações sobre Tchítchicov. O grupo não chega à conclusão alguma;
o. Tchítchicov deixa a cidade. A vida pregressa de Tchítchicov;
p. Tchítchicov torna-se hóspede de Tentiêtnikov;
q. Tchítchicov conhece o general Bétrichtchev e sua filha Úlinka;
r. Tchítchicov erra de fazenda: ao invés da fazenda de Kochkariov, está na fazenda de Piotr Petróvitch Pietukh. Ali, conhece Platónov;
s. Dali, Platonóv e Tchítchicov partem para a fazenda do cunhado de Platon, Costangioglio;
t. Tchítchicov visita o parente biruta do general Bétrichtchev, ou seja, Kochkariov;
u. Tchítchicov vista e compra a fazenda arruinada de Khlobúiev;
v. Prisão de Tchítchicov. Soltura de Tchítchicov. Desaparecimento de Tchítchicov.

   O narrador de Almas mortas é significativo e tem peso importante na condução dos acontecimentos e na formalização do discurso e na construção do poema durante seu processo. Denomina-se, também, de autor da obra, assim como considera-se como um personagem autônomo que intercede e faz a mediação entre a ação que apresenta ao público leitor. Diversas são as vezes que “dialoga” com o leitor. Não satisfeito em narrar os acontecimentos, opina sobre as situações e os personagens. Utiliza digressões, como discute conceitos de criação artística, de literatura, de herói e da construção e do caráter deste, do conceito de história, etc.

   Segundo Lotman, Gógol desejava produzir em Almas mortas o esquema da Divina comédia de Dante Alighieri.

1. Almas mortas
2. Almas fugitivas
3. Almas vivas

   Suas correspondências:

1. Inferno – Primeira parte, em que há predomínio das almas mortas: os proprietários de terras e os funcionários da cidade que aparecem;
2. Purgatório – Segunda parte, com algumas almas fugitivas (Tentiêtnikov; Platon; Khlobúiev), auxiliadas por santos como Costangioglio; Vassíli Platónov, Muzárov e o príncipe;
3. Paraíso – hipotética Terceira parte, em que todos haveriam de ser bons

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Gógol e O nariz (1836)



     A primeira quebra de paradigma ocorre no título deste conto: O nariz. O que esperar de um título assim? Talvez, em um texto convencional, fosse o problema físico e psicológico que um pequeno ou monstruoso nariz viesse a torturar o seu protagonista. Mas o que pensar quando a parte de um todo torna-se um dos protagonistas do conto? Ou, ainda, rivaliza com os outros dois protagonistas do enredo, ou seja, com o barbeiro Ivan Iákovlievitch e, principalmente, com o próprio dono do nariz, Platon Kovalióv? 
     Gógol e sua originalidade para trabalhar com o banal cotidiano e seus absurdos desorienta o tradicional leitor. Este, procurando superar o impacto do título e ainda buscando alguma orientação para “descobrir” a intenção do texto, tem certa trégua no primeiro parágrafo ao ler “No dia 25 de março aconteceu em Petersburgo um fato extraordinariamente estranho.”, pois, ao menos, não fica isolado com a estranheza do título, uma vez que o narrador compactua que algo estranho aconteceu e será relatado. A precisão realista desta frase inicial parece acalmar o ânimo alterado do leitor, pois há data, mês e local administráveis como aceitáveis em qualquer história a ser contada. Mas ao virar a página (dependendo da edição), o estranhamento nocauteia o pobre leitor, pois o barbeiro Ivan Iákovlievitch encontra no pão que irá comer um nariz alheio. Pior: reconhece o nariz como sendo do assessor de colegiatura Kovalióv.
    O que esperar de uma história e de seu autor que rompe com aquilo que estamos acostumados na maioria dos textos literários? Como afirma Vladímir Nabokov, o leitor que lê o nome de Gógol como Gogól certamente terá dificuldade para entender aquele que é considerado o iniciador de uma literatura na Rússia que abrirá caminho para nomes como Dostoiévski, Turguêniev, Tolstói e Tchékhov. Apesar de entendermos a metáfora de Nabokov, de fato, Gógol atrapalha as melhores intenções do ingênuo leitor. Este realismo deformado ou este realismo fantástico, confundindo-se com o grotesco e o humor, tornam o estilo gogoliano incomparável.
     Inicialmente, Gógol, em seu texto original, opta pelo sonho, como resultado de tudo aquilo vivido por Kovalióv, para modificar drasticamente na versão definitiva. Se sonho, embora o leitor pudesse sentir-se traído no final do enredo (vá entender o leitor!), tudo estaria explicado. Mas o que admitir quando o sonho é substituído pela realidade? Aí está a confusão trazida por Gógol, pois aquilo que convencionalmente admitimos é rompido por nova e extravagante convenção. Como afirma o próprio Kovalióv, se fosse ainda um braço, uma perna ou até uma orelha (situações já horríveis!) ainda é possível entender. Mas um nariz? Algo visível? Explícito? Pouco convencional para ser discutido? Ao menos que fosse, então, extirpado em um duelo ou guerra, pondera Kovalióv. A discussão, entretanto, avança, pois duas situações constrangem o dono do nariz: passa a não ser mais dono do objeto, pois este adquire personalidade, função, autonomia e confunde-se facilmente com qualquer outro cidadão, e o que fica na cara de Kovalióv não é, ao menos, uma aceitável cicatriz, mas uma superfície plana que parece “uma panqueca recém-assada”, nas palavras do funcionário do jornal.
     Kovalióv procura, então, tornar seu problema público, contradizendo-se em seu gesto de esconder, com um lenço, o que lhe fica na cara, ou seja, a superfície, pois somente deseja restituir para si o objeto perdido, julgando-se, deste modo, em seu direito. Assim, outros personagens começam a conviver com este estranhamento sem que venham a alterar significativamente aquilo que pensam sobre a realidade que vivem. Tecnicamente, o conto divide-se em partes bem determinativas: primeiro o problema encontra-se literalmente nas mãos do barbeiro Ivan Iákovlievitch, depois na cara do assessor de colegiatura Kovalióv, para, enfim, envolver alguns outros personagens, como um funcionário de jornal, uma mãe com necessidade de casar sua filha e um médico. Por fim, a última parte retoma os dois primeiros personagens do início do conto: o barbeiro e o assessor, como se nada ou pouco tivesse acontecido de irreal.
     A discussão para o leitor continua insolúvel, pois este, certamente, deseja compreender, de fato e de direito, o que significa tudo isso proposto por Gógol. Caso seja a primeira obra lida pelo desamparado leitor, este ainda tem um longo caminho a trilhar na obra gogoliana, passando desde o folclore ucraniano, pelas tantas vezes que as expressões “diabo” e “nariz” aparecem nos textos de Gógol, até chegar nos contos petersburguenses que alteram o cotidiano aceitável proposto e definido pela literatura dita realista. Pela primeira vez na literatura russa um autor aborda, no caso de O nariz, com o duplo de cada um de nós. Este tema será seguido por Fiódor Dostoiévski em algumas de suas obras, tendo como exemplo mais evidente o seu romance O duplo. Neste trabalho, o autor de Crime e castigo dualiza as personalidades do protagonista Yákov Pietróvitch Golyádkin e seu Golyádkin segundo. O duplo foi bastante criticado pelo crítico Bielínski, pois a influência foi vista como cópia de Gógol. O tempo provou o equívoco do grande crítico e seu comentário compreensível para aqueles tempos. 
     A ambição de Kovalióv é evidente dentro do texto O nariz, quando das insinuações amorosas e sexuais, passando pela intenção de se tornar governador e pela pouca boa vontade de casar com a filha de Aleksandra Podtotchina Palaguêia Grigórievna. As ambições deste homem de 37 anos não têm nada de estranhamento nem, tampouco, de fantástico, pois bastante reais no contexto da burocracia e do social russos. Nada melhor do que afetar o ambicioso de frente, embora o trocadilho deva ficar a cargo de Nicolai Gógol. Este é outro ponto explorado pelo autor ucraniano, os trocadilhos. Convenhamos que a expressão “nariz”, em diversas partes do mundo, gera brincadeiras e jogos de palavras engraçadíssimos, assim como a sonoridade da palavra “hemorroidas”. E, nisto, Gógol é incomparável, uma vez que o trocadilho transforma-se em humor e saliência do absurdo que o homem vive a cada momento. Outra expressão bastante usada por gógol é “diabo” em toda a sua obra. Estes dois vocábulos podem, certamente, estar relacionados com o próprio e significativo nariz do autor (veja, por favor, a capa deste material), assim como o místico apreciado desde criança pelas histórias contadas por sua mãe na Ucrânia.
     A intromissão de um nariz que se julga Conselheiro de Estado separa o mundo aceitável do não aceitável, daquele mundo que procuramos dar um sentido para aquele que não queremos crer em um não sentido. A interferência de algo num mundo que julgamos com sentido desorienta todas ações que aprendemos como possíveis entre as relações sociais. Quando há transgressão, há desconforto e luta interior. Nos finais do primeiro e do segundo “capítulos” do conto, Gógol continua a atrapalhar o entendimento do leitor: “Mas aqui o acontecimento fica completamente encoberto por uma névoa e não se sabe absolutamente nada do que se passou depois” e “Depois disso... mas aqui novamente todo o acontecimento se encobre por uma névoa e não se sabe absolutamente o que aconteceu depois.”. Ainda não satisfeito, Gógol conclui sua história da seguinte maneira: “Mas, apesar de tudo, muito embora se possa, sem dúvida, admitir isso, aquilo, e mais aquilo, pode ser até... bem, e onde é que não existem absurdos? – E, não obstante, se refletirmos bem sobre tudo isto, na verdade, há algo. Digam o que disserem, mas tais fatos ocorrem no mundo; é raro, mas ocorrem.”.

     O conto O nariz é publicado pela primeira vez na revista O contemporâneo, de Púchkin, no ano de 1836, depois de ter sido recusado por ser “sujo” pela redação de O observador moscovita.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Tio Vânia - Antón P. Tchékhov


Tio Vânia  (Дядя Ваня)

Antón Pávlovitch Tchékhov
А н т о́ н    П а́ в л о в и ч    Ч е́ х о в



  Antón Pávilovitch Tchékhov escreve Tio Vânia em 1896, mas a origem da peça dá-se com O espírito dos bosques (1889), apresentado em dezembro no Teatro Abrámov. A crítica não recebe bem a peça e afirma não ser teatro e também nada significar. Anos depois, Tchékhov retoma este texto e reescreve ele por completo. Assim, surge Tio Vânia. Sua publicação ocorre em 1897; suas representações, em diversos teatros. A estreia dá-se no Teatro de Arte de Moscou em 26 de outubro de 1899, com encenação de Konstantin Sierguêievitch Stanislavski e Vladímir Niemiróvitch-Dântchenko e cenários de V. Simov. Olga Knipper, futura esposa de Tchékhov, interpreta Ielena; Liliana, Sonia; Vichnevski, tio Vânia; Stanislavski, Astrov. Os contrastes desta peça evidenciam-se na tensão dos conflitos que se arrastam na perspectiva de uma morosidade impressionante. A passividade de Vânia parece aniquilada com a revolta que este passa a ter frente a sua própria vida, embora nada faça de concreto para sair do mesmo lugar. Sua preocupação para modificar seu modo de viver esbarra nele mesmo, pois nada muda em sua vida. A mudança não muda; sua vida passa enlutada pelo trabalho e por uma pausa ao receber, na propriedade rural, um casal citadino. Neste ponto, mais um contraste reiterado nas peças de Tchékhov: a cidade que “invade” com seus valores o modo de vida rural. Veja que o próprio subtítulo (“Cenas da vida rural”) antecipa esta discussão tchekhoviana. Assim, da vida tranquila levada por tio Vânia e sua família, surge a mudança de conceitos e de hábitos com a chegada de Serebriakov e sua jovem e linda esposa Ielena Andréievna. A beleza e seus efeitos arrematadores e destruidores são a tônica da peça, pois a “figura episódica” de Ielena balança personagens: tio Vânia; o próprio marido Serebriakov; o médico Astrov e, finalmente, Sonia e sua feiura. Coincidentemente, o belo da paisagem rural da Rússia também desaparece (assim como Ielena e o marido vão embora da casa rural). Esta concretização dá-se nos mapas ilustrados pelo médico Astrov, quando pinta a comarca há cinquenta e vinte e cinco anos até chegar no tempo presente onde se encontra. Florestas e animais vão minguando, mostra o médico que constrói bosques e não come carne. A transformação de Vânia é, no decorrer da peça, teórica e consciente de seu fracasso da existência vivida, assim como, na prática, tudo volta à estaca zero com a partida da beleza de Ielena Andréievna e a ciência de Serebriakov. A beleza, em Tio Vânia, é o retrato do medíocre e real dos personagens que, para fugir desta realidade, procuram a beleza para mascarar suas vidas insignificantes. A estética da perfeição parece ser a metáfora idealizada por Tchékhov para afirmar que o preço que se paga pelo sucesso da aparência é a capacidade de alguns homens perceberem que algo ficou para trás em suas vidas e que, realisticamente, já não é mais possível recuperar aquilo que foi desprestigiado pela própria concepção atribuída à beleza. 

  Nos versos de “Madrigal melancólico”, em O ritmo dissoluto (1924), de Manuel Bandeira, estes versos caem muito bem como exemplificação para Tio Vânia

O que eu adoro em ti, 
Não é a tua beleza. 
A beleza, é em nós que ela existe. 
A beleza é um conceito. 
E a beleza é triste. 
Não é triste em si, 
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.  

  Se a beleza é sinônimo de vitória na figura de Ielena Andréievna, também pode significar derrota para Ielena e todos aqueles que veneram esta figura maravilhosa e atraente. 


  O enredo de Tio Vânia passa-se no ano de 1896 e tem como subtítulo “Cenas da vida rural”. Cenas em quatro atos em movimento cíclico, se pensarmos que o trabalho executado na propriedade por Sonia e por Vânia terá continuidade no final do Quarto Ato. A vida apresentada por Tchékhov tem pouca ou nenhuma alteração, e a passividade de tio Vânia e de sua sobrinha Sonia ratificam esse imbróglio que é o tédio e o arrastar de uma existência sem sentido, sem felicidade e com a consciência de que a resignação dos golpes dados pelo destino é algo inexorável. Se haverá uma nova vida? Isso ficará a cargo da transcendência da própria morte ou das gerações futuras que, certamente, não reconhecerão esforço algum nos homens do passado. Tchékhov constrói em suas peças atritos que vão crescendo até se tornarem insuportáveis. 

  No Primeiro Ato de Tio Vânia, há atritos iniciais entre Voinitskii e o casal Serebriakov e Ielena, assim como críticas da babá Marina ao casal (no que se refere aos horários da casa) e Ielena e Voinitskii, pois este, no final do ato, declara-se à jovem esposa do professor aposentado. Ainda neste Primeiro Ato, o casal Ielena e Serebriakov faz com que a “vida saiu dos eixos”, pois há alteração no cotidiano da casa rural: Astrov, o médico, trabalha muito e, no enredo, pouco trabalha, ficando mais a perambular pelos cômodos e a pensar em Ielena; Voinitskii, outrora trabalhador com Sonia na fazenda, apenas bebe, come e dorme, além da declaração amorosa por Ielena; Sonia, ainda trabalha, mas esgota-se e fica, como diz, a escutar e conversar com Ielena. Esta é admirada por todos e julga-se tediosa e cansativa, assim como o marido não suporta mais viver naquela casa rural. A beleza de Ielena é seu viver (como é dito no Segundo Ato) e seu contágio é explícito em homens como Vânia e Astrov. Por sua vez, Ielena tem inclinação por Astrov, embora nada faça por fidelidade ao marido. Este julga-se velho e doente e afirma que deixará, em breve, a todos, o que não se confirma até o final da peça, quando parte da fazenda com a esposa para morar em Kharkov. Afinal, para Ielena, “as florestas são monótonas”. Tio Vânia e Sonia formam o par da infelicidade e do trabalho para os outros. Desta maneira, o título justifica-se, pois quem é lembrado como tio é porque tem sobrinho ou sobrinha, além de não ser pai, etc., ou seja, Vânia nada construiu fora o fato de ser único, ou seja, tio. O título é propositadamente estranho, pois a palavra “tio” antecipa a dura relação de Sonia e Vânia com seus destinos similares: tudo volta a ser o que foi, no cíclico de uma vida monótona e sem esperanças. Se no passado a vida de trabalho árduo para manter a fazenda e enviar dinheiro para a ciência de Serebriakov é festejada, no tempo presente a revolta de Vânia dá-se exatamente na figura desprezada que tem do professor. A revolta de Vânia está na sua vida liquidada para um homem que enganou a todos com sua falsa intelectualidade. Agora, só resta a Vânia revoltar-se e gritar em família o que fizeram com ele. Mas o ciclo e a inoperância são mais fortes, e no final da peça tudo volta a ser o que sempre foi, sem qualquer tentativa de mudança para tio e sobrinha. Aliás, esta aconselha o tio a trabalhar e a entregar-se, de vez, ao destino que os mantêm em seres infelizes e desesperançosos. Se esperança existe, é em outro nível metafísico, não mais no plano terreno e material. A sucessiva relação de fracassos e inocuidade entre os personagens é marca definitiva nas peças tchekhovianas: um professor adoentado e velho; a beleza de uma jovem esposa; uma matriarca que apenas repreende o filho de 47 anos em defesa do genro; um proprietário falido visto como parasita e serviçal; uma babá que traz boas lembranças a um médico; um médico que treme ao lembrar da morte de um paciente; uma sobrinha feia que não será amada e o tédio que a todos inferniza e que os mantêm nulos e completamente vazios em suas atitudes. 

  No Segundo Ato, as rivalidades continuam, seja com o professor não acreditando na competência do médico Astrov, tio Vânia e Astrov insatisfeitos com suas vidas, tornando-se uns “ursos rabugentes”. Astrov empolga-se com a beleza das mulheres, mas não acredita em relação íntima com ninguém. Ielena, idolatrada por Astrov e por Vânia, é a antítese de Sonia. Serebriakov, a antítese de Vânia. Este julga sua vida desperdiçada, sem passado e com um presente idiota. Astrov ama a vida, mas não aguenta a “vidinha burguesa e provinciana” que leva. Para ele, é difícil conviver com os intelectuais e, com os camponeses, impossível, pois são atrasados e sujos. 

  A peça começa a ganhar tensão principalmente no Terceiro Ato, quando da reunião proposta por Serebriakov. Este tem como objetivo vender a propriedade rural, para desespero e desconforto de tio Vânia. Os atritos continuam em paralelos: Astrov agarra pela cintura Ielena (esta encosta sua cabeça no peito dele para, em seguida, safar-se. No Quarto Ato, ao despedir-se de Astrov, Ielena abraça-o impetuosamente.); Sonia e Vânia são infelizes; Ielena é chamada de preguiçosa por Vânia; Sonia pergunta se é feia; Sonia chama Ielena de feiticeira; Ielena indaga como aguentarão todo um inverno na fazenda; Ielena tem vontade de fugir mas falta-lhe coragem; Ielena apaixonou-se um pouco por Astrov; e, finalmente, a revolta e a má pontaria de Vânia, pois atira com uma pistola em Serebriakov e erra por duas vezes. 

  No último e Quarto Ato, os conflitos são ajustados pela paz e harmonia, justificando toda e qualquer explosão por parte de alguns personagens como mera interferência sem resultado eficiente e, portanto, a manutenção da vida tediosa, arrastada e inócua. O casal desarmônico parte, assustado, para Kharkov; os horários da casa (chá, almoço e janta) voltam a ser respeitados; Vânia e Astrov continuam com suas desesperanças; a possibilidade de suicídio de Vânia deixa de existir quando este entrega a ampola de morfina que subtraiu da maleta do médico; o conselho de Sonia (a sobrinha) para Vânia (o tio) da necessidade de trabalhar para conseguir suportar tudo. Para Astrov, na comarca só ele e Vânia eram inteligentes, mas foram “tragados pelo pântano da vida pequeno-burguesa que nós desprezamos; com seus valores putrefatos ela envenenou nosso sangue e nos tornamos tão patifes quanto os outros.”. 
  Assim os atos são apresentados em nível cronológico: Primeiro Ato: cerca de 15h; Segundo Ato: 24h20min; Terceiro Ato: dia; setembro; Quarto Ato: noite; outubro. Tio Vânia é peça escrita depois de A gaivota (1896) e antes de As três irmãs (1900) e O jardim das cerejeiras (1903).


Personagens de Tio Vânia

1. Aleksander Vladimirovitch Serebriakov – professor universitário aposentado; filho de um escrivão; ex-seminarista; genro de um senador; catedrático; há 25 anos escreve e palestra sobre arte sem entender absolutamente nada, segundo tio Vânia; “mastiga ideias alheias sobre realismo, naturalismo e outras baboseiras”; vaidoso e um semideus pelo seu caminhar, segundo Voinitskii; casado com a jovem e bela Ielena Andréievna;
2. Besouro – cachorro do guarda matraqueador;
3. Criado 
4. Grigori Ilitch – irmão de Teleguin; apenas citado na peça;
5. Iefim – guarda matraqueador;
6. Ielena Andréievna (Lenotchka; Hélène) – mulher de Aleksander Vladimirovitch Serebriakov, 27 anos; belíssima e inteligente; detesta o marido, mas é fiel ao professor; nasceu em Petersburgo; estudou no conservatório; sentiu-se um pouco apaixonada por Astrov; leva cantada de Vânia;
7. Ilia Ilitch Teleguin – fazendeiro arruinado; sua esposa foge com o amante logo após o casamento; ele entregou sua fortuna para a educação dos filhos dela com o amante, pois este morreu; sua beleza murchou; o que restou para ela?, indaga Teleguin; Teleguin sempre a amou; marcas de varíola no rosto; apelido: Bexiga; padrinho de Sonia;
8. Ivan Petrovitch Voinitskii (tio Vânia; Jean) – filho de Maria Vasilievna Voinitskaia; 47 anos; segundo ele, perdeu a vida por não vê-la; odeia Aleksander Serebriakov; procura matar Serebriakov, mas erra os dois tiros que dá no professor; no fim, ambos se perdoam; 
9. Konstantin Trofimovitch Lakedemonov – irmão da esposa do irmão de Teleguin; magistrado; apenas citado na peça;
10. Maria Vasilievna Voinitskaia – viúva de um conselheiro de Estado; mãe da primeira mulher de Aleksander Serebriakov;
11. Marina – velha babá; “velha simples e gasta”; de movimentos lentos;
12. Mikhail Lvovitch Astrov – médico; segundo ele, a vida é “enfadonha, idiota e suja”; está cercado de excêntricos e estranhos; julga-se também excêntrico, mas não tonto; não ama ninguém; deseja bem só a velha babá; se diz um dos personagens de Ostrovski, com “longos bigodes e ideias curtas”; segundo ele, as florestas dão beleza à terra, ensinam o que é belo e elevam o espírito; bonito; interessante; atraente; apaixonado por Ielena Andréievna; não ama Sonia;
13. Moleca – cachorro do guarda matraqueador;
14. Pavel Aleksêievitch – apenas citado; escreve artigos e envia estes para Maria Vasilievna;
15. Sofia Aleksandrovna (Sonia; Sonietcka; Sophie) – filha do primeiro casamento de Serebriakov; feia; boa; pura; inteligente; apaixonada pelo médico Astrov; fica só;
16. Vera Petrovna – mãe de Sonia; já falecida; bela e meiga.