sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes - F. M. Dostoiévski

A ALDEIA DE STEPÁNTCHIKOVO E SEUS HABITANTES  (1859)

Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski




   O título A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes e seu subtítulo (Das memórias de um desconhecido) soam abrangentes e banais, num primeiro instante, ao leitor. Esta armadilha dostoievskiana é retificada pelo desenvolvimento do enredo, pois, sutilmente, cada habitante vai surgindo de dentro da casa de Iegor Ilítch Rostániev como que saindo sem muita pretensão, meio que sem querer, até começar a se desvendar através de suas falas e comportamentos um tanto estranhos e associados a conchavos para lutar por seus espaços na aldeia metaforizada pela própria casa herdada por Iegor Ilítch Rostániev. O parasitismo e a hipocrisia, aliadas ao humor, enraizam-se para não mais saírem do enredo. O que o leitor espera basicamente não ocorre, ou seja, conhecer os habitantes da aldeia em suas casas, fora de casa alheia. O social esperado pelos diversos personagens “próximos” de Stepántchikovo também não acontece, pois o emblemático conflito ficará, em regra, em quatro paredes. O movimento de atração é a casa, assim como Iegor Ilítch Rostániev; este movimento é de “fora para dentro” a partir do segundo capítulo da Primeira parte.

   Curiosamente, os rompantes de alguns personagens (Fomá Fomitch, a generala e Anna Nílovna, além de Iegor Ilítch Rostániev) seguem instruções bem definidas para o alvo da culpabilidade, ou seja, o titio do narrador Serguei, Iegor Ilítch Rostániev. A bondade do titio é vista pelo trio Fomá Fomitch/generala/Anna Nílovna como amor-próprio incorrigível, egoísmo incontrolável e desasossego para todos que vivem na casa velha. Serguei, o narrador-sobrinho, como informa o subtítulo, (Das memórias de um desconhecido), surge inicialmente na aldeia com certa autoridade e autonomia de decisão para ajudar o próprio tio, personagem este que faz pedido por carta para ajudá-lo através do casamento de Serguei com a jovem preceptora Nástienka. De possível solução para o problema que titio está a enfrentar, no caso a iminente expulsão de Nástia da casa da aldeia, o narrador Serguei, de sobrenome desconhecido (pois, de Tal), vai minguando no decorrer do enredo. Sua pessoalidade narrativa é transferida para quase uma impessoalidade, embora em primeira pessoa. No final do enredo, o destino de Serguei torna-se ignorado para o leitor, e sua jovialidade e forma de pensar enfraquecem aos olhos do próprio tio e de Nástia, sendo o narrador o único a relutar ainda para com as atitudes e artimanhas de Fomá Fomitch. Como disse certo crítico, o jovem é derrotado pelos astutos e experientes velhos. As vozes apresentadas por Dostoiévski através dos diálogos e das contradições dos personagens ao expressarem seus sentimentos e discursos, já autorizam o leitor a pensar no trabalho que o autor fará em obras de sua maturidade literária, garantindo, desta forma, o caráter polifônico de sua construção narrativa.

   O núcleo dos conflitos em A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes desloca-se após a Introdução, pois a partir do segundo capítulo da Primeira parte a figura do bufão Fomá Fomitch começa a ganhar força e autonomia vingativa daquilo que sofreu nas mãos do general Krakhótkin, homem mau, irritadiço e impiedoso para com seu agregado Fomá Fomitch, bufão que assim precisa agir para sobreviver. Este passa a ter, com a morte do general, atitudes similares do general, ou seja, Fomá Fomitch escolhe a dedo suas vítimas (Iegor Ilítch Rostániev, Falaliei e Vidopliássov, entre outros) para ser mau, irritadiço e impiedoso. Somente no final da narrativa é que Nástienka, de modo imperceptível, neutraliza e modifica em parte Fomá Fomitch, por também entendê-lo como homem sofredor. Iegor Ilítch Rostániev chama de São Petersburgo seu sobrinho para ajudá-lo, desde que este case com a preceptora Nástienka, o que não acontece. Iegor Ilítch Rostániev tem dois filhos ainda crianças, Sáchenka e Iliúcha, de seu primeiro casamento com Kátia, já falecida e que, junto com o marido, criou o órfão Serguei, o narrador. O passado deste basicamente anônimo narrador-personagem dá-se na aldeia de Stepántchikovo e nada mais o leitor sabe da vida deste até o final do enredo, incluindo seu destino, excluindo a informação que o jovem é homem de ciência. Esta sua intelectualidade e erudição, em momento algum comprovadas no enredo, pois ele é bastante tímido e introvertido para falar, são motivos de ira e de desconsideração de Fomá Fomitch ao jovem leviano.

   Fomá Fomitch cresce na casa de Iegor Ilítch Rostániev na proporção que a generala vai decrescendo no enredo, embora no início da trama, juntamente com o general, é apresentada com mais força de espírito para combater e culpar o próprio filho Iegor Ilítch Rostániev. Temente à erudição de Fomá Fomitch, seu guia, a velha generala limita-se a ter desmaios, convulsões, achaques variados e implicâncias para com o filho, garantindo, desta maneira, seu parasitismo desde quando da união faceira com o título de seu segundo casamento, um general. Fomá Fomitch, assim é descrito por Serguei, o narrador:

   “Imaginem o homenzinho mais insignificante, mais pusilânime, um pária da sociedade, de todo desnecessário, completamente inútil, completamente abjeto, mas cheio de um infinito amor-próprio, e ainda por cima rigorosamente desprovido de qualquer coisa que pudesse ao menos em alguma medida justificar esse seu amor-próprio doentio e exaltado. Previno de antemão: Fomá Fomitch é a personificação do mais ilimitado amor-próprio, mas ao mesmo tempo de um amor-próprio específico, justamente aquele que surge em meio à mais completa insignificância, e, como frequentemente acontece em tais casos, de um amor-próprio ofendido, reprimido pelos árduos fracassos do passado, há muito tempo supurado, e do qual, desde então, jorram o ódio e o veneno a cada encontro com alguém e a cada êxito alheio. Nem é preciso dizer que tudo isso vinha acompanhado da mais hedionda suscetibilidade, da mais louca desconfiança. Talvez perguntem: de onde vem tamanho amor-próprio? Como ele surge em meio a tamanha insignificância, em pessoas tão miseráveis que, até mesmo em consequência de sua posição social, seriam obrigadas a saber o seu lugar? Como responder a essa pergunta? Quem sabe: talvez haja exceções, às quais pertença o nosso herói. Ele era de fato uma exceção à regra, o que se explicará posteriormente. Permitam-me porém perguntar: estarão vocês certos de que aqueles que já se resignaram completamente e que consideram uma honra e uma alegria para si serem seus bufões, agregados e parasitas; estarão vocês certos de que eles já abdicaram completamente de qualquer amor-próprio?”. (Primeira parte. I. Introdução).

   O séquito da velha generala é bem representado por Anna Nílovna Perepelítsina e seu bordão de ser “filha de tenente-coronel”. Embotada criatura e abnegada parasita bajuladora, o tipo serve como eco irritante de acusação para desqualificar o bondoso Iegor Ilítch Rostániev, culpado de tudo e responsabilizado pelos sofrimentos da mãe generala. Paralela à hipocrisia da generala e de Perepelítsina, a figura de Tatiana Ivánovna é desenhada como uma biruta repentinamente rica que sofreu num passado recente. Tatiana cresce ao longo do enredo, depois de raptada por Pável Semiônitch Obnóskin (idiota manipulado pela mãe Obnóskina) e resgatada por Iegor Ilítch Rostániev que a protege, até o final da narrativa, com Nástia. Segunda a narrativa, uma heroína.

   Grupo paralelo e palpiteiro é formado e apresentado pelos inconstantes Mizíntchikov e Bakhtchêiev. O primeiro, de salafrário e idealizador do rapto de Tatiana Ivánovna, vê-se enganado por Obnóskin, até tornar-se proprietário de terras e de almas; o segundo, gordolucho irritável e opositor de Fomá Fomitch, torna-se um “cachorrinho” deste.

    Por fim, criados pobre-coitados como Falaliei (o honesto e sonhador do boi branco e da dança do mujique Kamarínski) e Vidopliássov, reclamador de seu sobrenome motivado pelas gozações que sofre e pelo enlouquecimento que o leva ao hospício. Dois oligofrênicos que sofrem, também, nas mãos de Fomá Fomitch.

    No fim do romance, a recuperação do bufão e inócuo moralista erudito Fomá Fomitch, em mais um golpe de sua astúcia, inverte o jogo de acusações imorais que faz à Nástia para acusar Iegor Ilítch Rostániev de imoralidade frente à preceptora. Desta forma, procurou sempre preservar a nobre moça do criminal ato de Iegor Ilítch Rostániev, reconhecendo publicamente sua intenção e sua vingança depois de ter sido expulso a bordoadas pelo titio: abençoa a união de Nástia e de Iegor Ilítch Rostániev. Caindo nas graças da maioria dos personagens, excetuando o narrador Serguei, ainda é enterrado em túmulo grandioso. Esta trajetória de confusões e de reconhecimento depois de sua própria morte, apesar das estapafúrdias atitudes e discursos que proferia na aldeia, lembra, guardadas as devidas medidas, o alienista Simão Bacamarte de Machado de Assis. Este, depois de todas as confusões sobre o conceito de loucura, ainda é enterrado como sábio cientista. A diferença está na opinião do narrador de Dostoiévski, Serguei, que sustenta a incapacidade de Fomá Fomitch mesmo depois da morte deste.

Um comentário:

  1. Oi, parabéns pela página. Sou amante da literatura russa e, confesso, vi poucas vezes blogs de tão elevado patamar quanto o seu. É um prazer inenarrável poder ter acesso a conteúdos tão firmemente fundamentados e bem estruturados quanto os que aqui encontrei. Mais uma vez, parabéns pelo trabalho e muito obrigado pelo compartilhamento de conhecimentos tão ricos.

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