segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Gógol e Almas mortas



   Nicolai Gógol termina sua literatura de modo similar ao seu início: no ano de 1829, publica um poema estudantil que tem enorme fracasso. Gógol e seu criado compram todos os exemplares de Hans Küchelgarten. Também deixa de utilizar o pseudônimo utilizado para esta obra, não adotando mais V. Álov; no ano de 1852, momentos antes de morrer, Gógol queima os manuscritos da Segunda parte de Almas mortas. No ano de 1842, Almas mortas é publicada, depois das mortes de Púchkin (em 1837) e de Liermontóv (em 1841). Nicolái Gógol é considerado o grande escritor vivo da Rússia. 
   O declínio da literatura de Gógol inicia com suas conclusões e investimento no seu misticismo religioso, elemento este que se encontra no seu discurso moral e na esperança de alguns de seus personagens na Segunda parte de Almas mortas. Este misticismo será um dos motivadores da queima dos manuscritos desta Segunda parte, naquele que se considera um julgamento impiedoso e severo do próprio autor por sua obra literária. É razoável lembrar que Gógol peregrinou por Jerusalém no ano de 1848. 
   Gógol foi o grande inovador da literatura russa, abrindo vertentes e diretrizes importantes não somente na literatura russa como, também, na literatura ocidental, graças a sua postura crítica frente ao seu próprio tempo, num contexto de repressão e censura de um regime autoritário.
   O projeto de Gógol, desde o início para Almas mortas, era englobar toda a Rússia em seu poema, pois sabia que para a literatura de seu país ainda não havia uma obra deste porte. Esta revelação é vista em carta a Púchkin em 07 de outubro de 1835, portanto antes da escrita de O inspetor geral.
   He comenzado a escribir Almas muertas. El tema se va extendiendo y se va convirtiendo en una novela larga y parece que será tremendamente divertida. Pero ahora la he parado en el capítulo tercero. Estoy buscando un buen informador con el que pueda compartir una breve intimidad: en esta novela quiero mostrar toda Rusia, al menos desde un lado.
   Numa primeira versão de Almas mortas, iniciada em São Petersburgo, em 1836, e continuada na Suíça e em Paris, Gógol abre mão de continuá-la por considerar que há excessiva sátira em seu enredo. Deseja, sim, criar um texto que tenha mais descrição e com menos mordacidade, embora não abrindo mão de retratar a banalidade, a mesquinharia, a hipocrisia e a trivilialidade do dinheiro que encanta a sociedade e suas relações de conluio e de corrupção nas mais variadas formas.
   Entre os anos de 1836 e 1841, a obra ganha forma sem maiores modificações em seu intento, ou seja, a de avaliar as perspectivas sociais a partir da contemplação de alguns personagens que conduzirão as atitudes mais disparatadas em nível de suas ambições e cinismos. Entretanto, uma reflexão formal começa a ganhar mais propósito, com a participação do narrador e suas interferências em relação à criação da própria obra, assim como comentários com o leitor e sobre este, como também sobre os escritores.
   Feliz o escritor que, passando ao largo das personagens enfadonhas, repugnantes, que nos repelem com o seu triste realismo, aproxima-se das personagens que mostram a elevada dignidade humana; o escritor que, no grande torvelinho das imagens cotidianas, soube acolher apenas as poucas exceções, que não modificou jamais a elevada afinação da sua lira, jamais desceu dos seus altos cumes até os seus irmãos humildes e apagados, e, sem tocar a terra, mergulhou inteiro nas suas imagens tão distantes dela e tão exaltadas. (…) Ninguém o iguala em seu poder – ele é um deus!
Mas diversa é a sorte, outro é o destino do escritor que se atreveu a descortinar tudo aquilo que está diuturnamente diante dos olhos, e o que não enxergam os olhos indiferentes – todo o terrível, espantoso limo de mesquinharia que enlameia a nossa vida, toda a profunda, assustadora frieza dos caracteres fragmentados e vulgares que pululam no nosso tantas vezes amargo e tedioso caminho terrestre; o escritor que, com o vigor do seu cinzel impiedoso, ousou expô-lo em alto e nítido relevo aos olhos do mundo inteiro!                   (Cap. VII; Primeira parte)                           
    
  Nitidamente, Gógol vê-se no segundo tipo de escritor. No período da escrita de Almas mortas, Gógol alterna a produção com leituras de São Francisco de Assis, Dante Alighieri e Homero, como registra o crítico Henry Troyat.
   O título do poema mostra toda sua ambiguidade no desenvolver do enredo, como pode se revelar no vocábulo almas, como servos ou campesinos ou mujiques, assim como espíritos, reforçados pela ideia da palavra mortas, ou seja, todo aquele campesino registrado ainda como vivo no recenseamento e não como morto, embora, na realidade estivesse. Como há demora na atualização dos dados do recenseamento, figuram, estas almas mortas, ainda como vivas, para efeito de registro e de pagamento de impostos. Mas com o desenvolvimento do enredo, a expressão almas mortas ganha semântica diferente, pois há diversos personagens vivos com suas almas mortas pela maneira como atuam socialmente, não tendo senão almas inexistentes ou mortas. Lembremos o final do poema a reflexão de Muzárov a Tchítchicov:

   Pense não nas almas mortas, mas na sua própria alma viva, e siga com Deus por outro caminho! Apresse-se, porque senão, sem mim, estará em apuros.

   O título da primeira edição foi, entretanto, As aventuras de Tchítchicov ou Almas mortas, por imposição do censor petersburguense Nikitienko para atenuar o sentido macabro do título ou, quiçá, subversivo. Esta negociação, resultou em modificações na história do Capitão Kopêikin, Capítulo X, da Primeira parte. Almas mortas é submetido à censura entre janeiro e abril do ano de 1842. A primeira edição é publicada com 2.400 exemplares. 
   Gógol chama Almas mortas de poema, assim catalogado. Uma das leituras possíveis é a subversão que o autor pretende dar ao gênero literário romance (ou novela), descaracterizando, desta forma, esta composição para se valer do gênero poema. Inicialmente, o plano de Almas mortas é ser uma obra tripartida, embora o autor tenha confeccionado apenas duas partes. Aliás, a Segunda parte passa a ser uma caricatura da Primeira parte, pois torna-se em diversos pontos obscura e um tanto enigmática no discurso do autor. A ruptura intencional dá-se, também, pela intenção gogoliana de entender Almas mortas em sua composição épica, portanto, para abranger, no seu enredo como um todo, a Rússia e seus personagens. O próprio Gógol explica:
   En los últimos siglos, ha surgido un tipo de obra narrativa que, por así decirlo, está a medio caminho entre la novela y la épica y cujo héroe, pese a ser una figura aislada e insignificante, resulta no obstante significativo en muchos aspectos para aquel que observa el alma humana. El autor hace que la vida de éste discurra a través de un encadenamiento de aventuras y cambios, con el ánimo de presentar, junto con un cuadro verdadeiro y vivo de todo lo que es significativo en los rasgos y las costumbres de la época que ha elegido, una visión mundana, explorada casi estadísticamente, de las insuficiencias, las malas costumbres, los pecados y todo aquello que él ha percibido en el periodo de tempo seleccionado y que sea digno de atraer la mirada de cualquier contemporáneo atento que busque, en el pasado fabuloso, lecciones para el presente. (...) Aunque muchas de éstas se hallan escritas en prosa, pueden ser consideradas, sin embargo, creaciones poéticas. 

    A estrutura de Almas mortas, assim é vista por Yuri Mann:



1. Capítulo primeiro. 
Tchítchicov chega à cidade NN. e a conhece;

2. Capítulo segundo ao sexto (incluído).
Tchítchicov visita vários proprietários de terras, sendo um de cada vez: (1) Manílov; (2) Koróbotchka; (3) Nozdriov; (4) Sobakêvitch; (5) Pliúchkin;

3. Capítulo sétimo.
Tchítchicov registra suas compras na cidade;

4. Capítulo oitavo.
Baile em casa do governador onde Nozdriov coloca em evidência o negócio de Tchítchicov;

5. Capítulo nono.
As damas da cidade começam a elucubrar sobre Tchítchicov, seu negócio e sua personalidade.

6. Capítulo décimo.
Os altos funcionários da cidade começam a especular sobre Tchítchicov. Morte do fiscal angustiado pela situação imposta por Tchítchicov à cidade.

7. Capítulo décimo primeiro.
É contada a história de Tchítchicov e o sentido da compra das almas mortas. Tchítchicov deixa a cidade.


   Ou, ainda, assim pode-se acompanhar a estrutura da seguinte forma:

a. Chegada de Tchítchicov à cidade de NN.;
b. Tchítchicov conquista funcionários públicos graduados e proprietários de terras;
c. Compra as almas mortas de Manílov, ou seja, este cede as almas em nome da amizade;
d. Compra as almas mortas de Nastácia: esta vende por 15 rublos, pois crê que Tchítchicov a aconselhará ao governo para que este compre produtos de sua aldeola;
e. Tchítchicov vê-se obrigado a visitar Nozdriov. Afirma querer adquirir as almas mortas deste. Este quer jogar damas e apostar as suas almas mortas. Como rouba no jogo, Tchítchicov sai deste. Nozdriov manda dois de seus criados baterem em Tchítchicov, mas este se safa com a chegada de um policial que intima Nozdriov por um caso anterior de agressão;
f. Tchítchicov visita Sobakêvitch. A negociação é árdua entre os dois referente às almas mortas. Propostas de Tchítchicov por alma morta: 80 copeques/1 rublo e meio/2 rublos/2 rublos e meio (valor fechado entre as partes). Propostas de Sobakêvitch: 100 rublos/75 rublos/50 rublos/25 rublos/3 rublos;
g. Tchítchicov visita o sovina Pliúchkin. Este não oferece muita resistência no negócio e vende 200 almas mortas e fugidas por 32 copeques cada;
h. Tchítchicov vai no cartório oficial. Encontra Manílov e Sobakêvitch. Tudo é oficializado e todos, incluindo o presidente, almoçam em casa do chefe de polícia;
i. Festa em casa do governador. Chegada e denúncia do negócio por Nozdriov;
j. Imagem de Tchítchicov é afetada, pela aproximação deste pela filha do governador e pela denúncia de Nozdriov;
k. Chegada na cidade de Koróbotchka. Fofocas entre “uma senhora agradável em todos os sentidos” (Ana Grigórievna) e “uma senhora simplesmente agradável” (Sófia Ivánovna);
l. Boato sobre Tchítchicov: almas mortas + sequestro da filha do governador + falsificador;
m. Chegada do novo governador-geral (neste ponto do enredo, há similitude com o enredo de O inspetor geral);
n. Reunião em casa do chefe de polícia. Deliberações sobre Tchítchicov. O grupo não chega à conclusão alguma;
o. Tchítchicov deixa a cidade. A vida pregressa de Tchítchicov;
p. Tchítchicov torna-se hóspede de Tentiêtnikov;
q. Tchítchicov conhece o general Bétrichtchev e sua filha Úlinka;
r. Tchítchicov erra de fazenda: ao invés da fazenda de Kochkariov, está na fazenda de Piotr Petróvitch Pietukh. Ali, conhece Platónov;
s. Dali, Platonóv e Tchítchicov partem para a fazenda do cunhado de Platon, Costangioglio;
t. Tchítchicov visita o parente biruta do general Bétrichtchev, ou seja, Kochkariov;
u. Tchítchicov vista e compra a fazenda arruinada de Khlobúiev;
v. Prisão de Tchítchicov. Soltura de Tchítchicov. Desaparecimento de Tchítchicov.

   O narrador de Almas mortas é significativo e tem peso importante na condução dos acontecimentos e na formalização do discurso e na construção do poema durante seu processo. Denomina-se, também, de autor da obra, assim como considera-se como um personagem autônomo que intercede e faz a mediação entre a ação que apresenta ao público leitor. Diversas são as vezes que “dialoga” com o leitor. Não satisfeito em narrar os acontecimentos, opina sobre as situações e os personagens. Utiliza digressões, como discute conceitos de criação artística, de literatura, de herói e da construção e do caráter deste, do conceito de história, etc.

   Segundo Lotman, Gógol desejava produzir em Almas mortas o esquema da Divina comédia de Dante Alighieri.

1. Almas mortas
2. Almas fugitivas
3. Almas vivas

   Suas correspondências:

1. Inferno – Primeira parte, em que há predomínio das almas mortas: os proprietários de terras e os funcionários da cidade que aparecem;
2. Purgatório – Segunda parte, com algumas almas fugitivas (Tentiêtnikov; Platon; Khlobúiev), auxiliadas por santos como Costangioglio; Vassíli Platónov, Muzárov e o príncipe;
3. Paraíso – hipotética Terceira parte, em que todos haveriam de ser bons

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