segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O jardim das cerejeiras - Antón P. Tchékhov

O jardim das cerejeiras 
Вишнëвый сад
(Vishnioviy sad)

Antón Pávlovitch Tchékhov
А н т о́ н    П а́ в л о в и ч    Ч е́ х о в

  Antón Pávilovitch Tchékhov produz sua última peça de teatro na virada do ano de 1903 para 1904, ano este também de sua morte. O jardim das cerejeiras desconstrói, mais uma vez no teatro tchékhoviano, as relações entre os personagens, sendo que, neste enredo, a dificuldade de comunicação entre os protagonistas é fortalecida a partir de nítidas diferenças, tanto em nível sociocultural, como também do burlesco à dramática situação dos proprietários de um jardim de cerejeiras hipotecado. A pantomima está formada pelo desconforto das situações construídas pelo passado e pelo presente dos protagonistas, assim como pela inadaptação que estes estão a viver no tempo da ação e no espaço de suas dificuldades, em especial no que se refere à família de Liuba Andrêievna Raniévskaia e de seu irmão Leonid Andreiêvitch Gaiév.

  Como deixou em depoimento, o poeta Vladímir Maiakóvski refere-se a Antón Tchékhov como o “mestre da palavra”. Deste modo, e a partir do jogo dos vocábulos, o surgimento de uma possibilidade de nuances transitam entre o farsante, o arrogante, o insistente, o inconsequente, o dramático, o pensante, o oportunista, o vitimado, enfim, nas personalidades que, juntas, se tornam desconexas em seus diálogos, comentários, atritos e intenções.

  Pode-se selecionar três tipos de personagens que ordenam a estrutura social a partir do dinheiro ou da iminente falta deste. Liuba Andrêievna e seu irmão Gaiév sustentam opiniões e ordens por disposição e suposição hierárquica do passado, pois do presente estão liquidados financeiramente. A tiracolo, surgem a filha Ânia, de 17 anos, e a filha adotiva Vária, de 24 anos, ambas de Liuba. Ânia vive na esperança de uma vida melhor ao lado de Trofímov, o “eterno estudante” e postulante a filósofo, enquanto que o trabalho de organização da casa do cerejal fica a cargo da adotiva Vária, mais governanta do que a titulada governanta Carlota Ivanóvna, embora esta mais mágica do que governanta.

  Num segundo grupo social, surgem os empreendedores financistas e um pensador de uma nova vida para a humanidade: representando os primeiros, o negociante Iermolai Alexêievitch Lopakhine e Bóris Borissovitch Simionov, o Pichtchik, proprietário de terras; o segundo é representado pelo estudante Piótr Serguêievitch Trofímov, o Pétia. Entretanto, a diferença entre Lopakhine e Pichtchik está na ordem do dinheiro, pois Iermolai é rico e compra a propriedade de Liuba em leilão, enquanto que Bóris tem a esperança que algo acontecerá para mudar a sua vida, no caso, o ocorrido acontece com a exploração que este permite a ingleses em sua fazenda. Já o “eterno estudante” filosofa para ter uma vida acima dos conceitos mundanos e na expectativa de ficar ao lado de Ânia para viver esta vida teorizada.

  Por fim, os sequazes Carlota, Epikodov, Duniacha, Firs, Iacha, criados, visitantes, chefe da estação e funcionário dos Correios. Ainda, um cão. Para cada um destes, excetuando o cão, a possibilidade de um entendimento da vida prática ou da procura de um preenchimento do sentido de viver, embora sem solução imediata e aparente em suas ações.

  Antón Tchékhov inventa, também, um vocábulo para O jardim das cerejeiras: niedotiópa. Na tradução de Millôr Fernandes (L&PM Editores), aparece como os “vale-nada”: Liuba; Gaiév; Lopakhine; Trofímov; Iacha e o vagabundo alcoolizado do Segundo Ato. Firs, no final da peça, conceitua-se também como um “vale-nada”; no início da peça, chama Duniacha de “vale-nada”. Em outras traduções, este “vale-nada” é chamado de “bando de inúteis” ou “lentos”. De qualquer modo, independente da tradução, os “vale-nada” equivalem à inoperância ou à inocuidade do personagem frente àquilo que desempenha, o desconforto de uma personalidade que pouco ou nada contribui numa sociedade cinzenta e sem sentido, obliterada pela permanência de inaptidões e atrapalhações que se alteram como dispositivos apáticos na engrenagem que gira em torno de uma propriedade falida e desejada por Lopakhine.
  O modo de pensar e a funcionalidade dos personagens que executam suas ideias e ações afinam-se conforme a necessidade daqueles justificarem suas atitudes. Liuba Andrêievna Ramiévskaia explicita suas culpas em vários momentos da peça, variando desde a morte do filho Gricha por afogamento, passando pelos gastos excessivos em Paris, em restaurante na Rússia para quem pouco ou nada soma em nível pecuniário, criando as reminiscências de suas duas uniões sentimentais fracassadas até, finalmente, chegar ao apego doentio ao seu passado que reforça sua irracionalidade ao venerar os objetos da casa (como beijar o armário e chamar uma mesinha de querida). Liuba acredita que a vida “de vocês” é “totalmente cinzenta” e o orgulho algo “místico e importante”. Ao viver e reviver o passado, perde alguns critérios do presente, como a distribuição do pouco que tem de dinheiro para, então, aceitar, de fato, a perda da casa e de seu passado. Ânia, a filha de Liuba, para compensar o dissabor sofrido pela mãe, promete plantar um outro jardim mais bonito do que o que acabam de perder. Mesmo assim, a acusação da vida cinzenta aos outros encaixa-se perfeitamente ao modo de viver de Liuba.

  O irmão de Liuba, Leonid Andreiêvitch Gaiév, segue o prumo da família e da irmã, com sobressaltos sentimentais, irracionalidades com objetos e invencionices neurastênicas para se iludir na solução do problema da hipoteca da propriedade. Gaiév chega a sugerir comemoração aos 100 anos da estante da casa, com a descoberta de uma gravação na gaveta da estante datada de 1803. Abraça e acaricia o objeto, chamando-o de “Querida e honrada estante!”. A comédia destes lances no decorrer da peça é intraduzível psicologicamente, tanto é o absurdo impetrado pelo dramaturgo. O hilário de Gaiév sustenta também seu discurso inconfiável, quando, por exemplo, garante por sua honra que a propriedade não será vendida, assim como idealiza possível empréstimo da tia-avó e de um certo general para a solução do cerejal. Seu pensamento lacônico, entretanto, aparece quando afirma que no final das contas todos morremos. No fim, com emprego em banco, acha-se financista, embora, talvez, pela preguiça, segundo Lopakhine, não se sustente na função por muito tempo.

  Ânia, filha de 17 anos de Liuba, vive na ilusão de manter viva em sua mãe a permanência do passado glorioso, embora, para ela mesma, a possibilidade de união com  Trofímov concretize uma nova vida, acima da banalidade vivida por ela mesma e por aqueles que a rodeiam. A abertura de leitura no final da peça de que uma nova vida virá é a marca rompedora da vida cinzenta e inócua vivida pelos protagonistas, apesar desta nova vida que está nos planos do casal não mostre as evidências concretas de como será enfrentado o cotidiano vindouro. De qualquer modo, a possibilidade de mudança é um alento para quem, como Ânia e Trofímov, deseja acabar com a autoglorificação. Para isso é necessário, defende o “eterno estudante”, muito trabalho e não ficar apenas no discurso, como fazem os intelectuais que terminam por se enganarem e aos outros também. Para o jovem estudante, os intelectuais russos tratam os criados como seres inferiores e o mujiques como animais selvagens. Trofímov mostra para Ânia que o cerejal deles é a Rússia inteira. A descoberta e o entusiasmo de Trofímov não é conclusivo na peça, pois a perspectiva do estudante é continuar estudando em Moscou...

  Vária, a filha adotiva de 24 anos, tem como esperança o casamento com o rico e matuto Iermolai Alexêievitch. Este escamoteia, no entanto, toda e qualquer possibilidade de realização amorosa com a trabalhadora e gerenciadora moça da propriedade do cerejal. No final da peça, a esperança é amordaçada mais uma vez, mesmo com a promessa de Lopakhine e a felicidade interesseira de Liuba. É mais fácil a moça conseguir 100 rublos e terminar seus dias no convento. Segundo Ânia e Trofímov, Vária procura obstruir o relacionamento do estudante com a filha de Liuba. Vária se romantiza como personagem vitimado pelo amor e pela dramaticidade dos suspiros e das abafadas lágrimas.

  Bóris Borissovitch Simionov, o Pichtchik, procura algum dinheiro para pagamento de suas dívidas mesmo sendo proprietário de terras. Tem a crença que as coisas mudarão, bastando paciência e tempo. De fato, consegue dinheiro com ingleses que explorarão as terras de sua fazenda por duas décadas. Carlota tem somente seus truques e mágicas para distrair sua vida patética e arruinada, pois a governanta confessa que não tem ninguém na vida para conversar e demonstra que seu passado não é diferente do que está por vir em sua vida, pois a obscuridade dos extremos de sua existência não se mostrará num passe de mágica, apesar do trocadilho. Afinal, o que ela é e o que faz é, para ela mesma, um mistério! O guarda livros Epikodov é personagem sofrível em suas atribuições, bastando tentar compreendê-lo no que diz respeito aos livros difíceis que já leu: não encontrou nenhuma explicação para viver ou para não viver, atribuindo ao inexorável destino o seu caminho marcado, pois, afinal, o destino para ele é um furacão a brincar com o barco que é a sua vida. Sabedor da incompreensão que o domina, adota e o abate, traz consigo sempre um revólver. O jovem criado oportunista tem nome e endereço: Iacha e a vontade de ser eterno criado de Liuba preferencialmente em Paris. Duniacha, a criada metida à senhora com esquecimento de como vivem os camponeses e possibilidades de desmaios que se encarrega de avisar, é apaixonada por Iacha, assim como pouco sabe sobre o seu próprio passado. No presente, vive assustadiça como uma dama!

  O pobre do Firs merece parágrafo em separado. O velho octogenário e tanto fecha a peça com a tristeza de quem fica para arrumar o teatro depois da saída de todos da peça. Literalmente trancado e esquecido na casa que será demolida, Firs tem a consciência do quanto vale e do quanto a vida passou para ele. O que fazer? Ficar imóvel, como um utensílio centenário que não compreendeu nem tampouco a abolição como a demolição de sua vida em meio aos decadentes patrões.

  Por fim, o triunfador pessoal de sua história de vida estúpida não tão diferente como a vida estúpida dos demais personagens. Para Trofímov, Lopakhine “devora tudo o que encontra pela frente, convertendo tudo em excrementos.”. Como é rico e como será milionário algum dia, Lopakhine é um mal social necessário, pois útil para definir o progresso e os investimentos capitais na Rússia dos séculos XIX e XX. O empreendedorismo de Lopakhine é a medida exata entre o aconselhamento aos proprietários falidos, às novas ideias e, por fim, o abocanhamento oportuno para provar a si mesmo e para os outros que o matuto endinheirado pode colocar com honradez os pés na casa que escravizou seu pai e seu avô naquele cerejal. A vitória pessoal de Lopakhine é a vibração de quem tem a estratégia e o dinheiro para comandar o futuro com olhos no passado socialmente humilhado. A cena de fechamento da casa por ele, para preservar os bens que ficarão em sua partida até Karkov, é metaforicamente a ironia da prisão e morte de Firs, homem que preferia o passado sem abolição para que a vida fosse mais clara em suas definições sociais entre amos e servos. Lopakhine é o ágil negociante e a ele é dado o papel principal de conduzir a dramaticidade das ações da família do jardim das cerejeiras. Estranhamente, sai dele o comentário de que há poucos honestos e decentes no mundo, mas apesar da contradição da parte de quem fala isto, aí talvez esteja mesmo a chave do enigma proposto por Antón Tchékhov: não sendo um intelectual, Lopakhine talvez não engana a si mesmo nem aos outros com seu discurso.


  O jardim das cerejeiras faz o leitor oscilar em sua leitura, ora sugerindo através da comicidade o surgimento de uma interpretação jocosa pela atitude descomprometida com o real drama de seus protagonistas (bengaladas, comentários desconexos, bilhar imaginário, balidos, etc.), ora pelos elementos dramáticos da vida acinzentada e estúpida que algumas personalidades insistem levar até as últimas consequências como se nada ou pouco lhe dissessem respeito. 

  O bufão (Gaiév), assim como a moça com seu drama (Vária), como o jovem esperançoso em mudar de vida e de conceitos (Trofímov), assim como aqueles que não conseguem se modificar por causa da inércia de suas lentidões e de suas obsessivas crenças (Gaiév e Liuba), contribuem para um desfecho sem solução, típico dos textos de Antón Pávilovitch Tchékhov. 

  Se o contista e o dramaturgo não buscaram estéticas definidas para suas obras, o mesmo não pode se dizer plenamente da obscuridade simbolista em O jardim das cerejeiras. Não que a peça se enquadre no Simbolismo, mas a nitidez do indecifrável nas intenções dos personagens – e de como e o porquê atravessam caminhos captados por suas incapacidades de formular um roteiro para suas vidas despedaçadas – sugere que há algo mais notável do que a imprecisão do pensamento humano, pois da comédia à farsa, do drama ao decadente espaço entre a mentira verdadeira e a verdade mentirosa há o atestado do engessamento de um resmungo de Firs, do choromingar e das bengaladas de Vânia, da alegria de Ânia, do estrionismo de Gaiév com seus imaginários lances de bilhar, da escandalosa ingenuidade de Liuba e, finalmente, de um “Méééééé!” repleto de idiotia do empreendedor dos futuros lotes veranistas em terras das cerejeiras.


Alguns Personagens de O jardim das cerejeiras
1. Ânia (Anitchka) – filha de Raniévskaia; tem 17 anos; ama Trofímov;
2. Carlota Ivanóvna – governanta; faz truques com cartas; criada por uma senhora alemã; não conheceu seus pais; no fim da peça, afirma precisar de emprego;
3. Duniacha – criada; sensível demais; ama Iacha; filha de Fiodor Kosoiedov;
4. Epikodov (Sêmion Panteleiêvitch) – apelido: “Vinte e duas desgraças”; rapaz sério; pede Duniacha em casamento; guarda livros; 
5. Firs – criado; tem 87 anos; morre no final da peça; fica dentro da casa, pois esquecem dele;
6. Gaiév (Leonid Andreiêvitch) – irmão de Liuba; 51 anos; preguiçoso; fala demais; consegue, no fim da peça, emprego em banco com vencimentos de seis mil rublos ao ano; julga-se, assim, um financista;
7. Iacha – criado jovem; seu desejo é morar em Paris; menospreza sua mãe; petulante e folgado;
8. Liuba (Madame Andrêievna Raniévskaia) – criatura esplêndida; simples; tem boa-vontade; proprietária do cerejal; esbanja dinheiro sem pensar no dia seguinte; apega-se à casa de seus pais e ama toda sua propriedade; mesmo mal financeiramente, não mede com exatidão suas economias; em Paris, tem relacionamento com homem que lhe passa a perna financeiramente; ela ama este homem, fruto de um segundo relacionamento, já que seu primeiro marido era um advogado e beberrão;
9. Lopakhine (Iermolai Alexêievitch) – seu pai (um mujique) possuiu loja na aldeia; nasceu campônio; negociante; seu pai foi servo do pai e do avô de Liuba; aquele que compra o jardim de cerejeiras; tem como ideia o loteamento a veranistas;
10. Pichtchik (Bóris Borissovitch Simionov) – proprietário de terras; paga seus credores graças à permissão que dá a ingleses para explorarem argila branca em sua fazenda;
11. Trofímov (Piótr Serguêievitch; Pétia) – “estudante eterno”; ama Ânia e, esta, ele; considera-se homem livre, forte e orgulhoso; crê em uma verdade e felicidade maiores;
12. Vária – filha adotiva de Raniévskaia; tem 24 anos; controla a casa e, em especial, possível aproximação entre Ânia e Trofímov;


A gaivota - Antón P. Tchékhov

A gaivota
(Чайка / Tchaika)

Antón Pávilovitch Tchékhov
А н т о́н    П а́в л о в и ч    Ч е́х о в


 


  A gaivota é considerado o primeiro triunfo do Teatro de Arte de Moscou. No dia 29 de dezembro de 1898, sua apresentação é reconhecida como sucesso pelo público. Este aplaude com entusiasmo. Dois anos antes, esta mesma peça fracassa em São Petersburgo. É, então, o dia 20 de outubro, e a incompreensão do que está ocorrendo no palco é significativa, tanto em nível do diretor e dos atores (estes não estão à vontade em seus papéis), quanto do público e da crítica. Na ocasião, os críticos não poupam palavras fortes contra o intuito tchékhoviano.

  Antón Tchékhov fica decepcionado com o ocorrido e com os comentários sobre A gaivota e decide não mais escrever obras de teatro nem tampouco deixar as peças que já escreveu serem representadas. Mas Tchékhov tem um amigo, dos tempos de Ialta, que procura demovê-lo desta ideia. Vladímir Niemiróvitch-Dântchenko, autor dramático e diretor junto com o ator e diretor Konstantin Stanislávski, escreve em duas oportunidades para Tchékhov, mas somente na segunda tentativa é que convence o dramaturgo a deixá-lo representar A gaivota. Deste modo, Niemiróvitch-Dântchenko encarrega seu colaborador, Stanislávski, a montar A gaivota, embora este tema por um novo fracasso de Tchékhov no palco. Neste período, a tuberculose de Antón avança.

  Ocorre, então, o primeiro êxito teatral do autor de Enfermaria nº 6, escritor já conhecido na Rússia por seu contos e por algumas novelas, mesclados pelo humorismo e pelo sentimental. Aos poucos, une-se o grande contista e o grande dramaturgo na literatura russa, pois a análise e a crítica tchékhovianas mostram as condições de vida do homem e o que rodeia estes em suas obrigações, suas aflições e buscas de suas liberdades.

  A gaivota é texto que prioriza a banalidade da vida dos personagens. A dimensão dada por cada um daqueles que convivem com a família de Sórin e de Arkádina não chega a ultrapassar o medíocre que tece todo um colapso de desentendimentos, seja pelas questões que envolvem o profissionalismo do teatro, seja ele ultrapassado ou que busque novas formas de apresentação, seja pelos íntimos envolvimentos entre protagonistas que, entre sussurros e caprichos, vivem toda a sorte de humilhação (Arkádina por Trigórin), de idealização (Nina por Trigórin), de indignação (Trepliov por Macha), de oferta (Polina por Dorn), de sujeição (Trepliov por Nina) ou, até, de desinteresse a este mesmo sentimento (Macha por Miedviediênko).

  A ciranda do amor alterna-se conforme a necessidade do egoísmo de cada envolvido, diagnosticando o vazio de um amor entre pessoas que não se correspondem em perspectivas similares. Afinal, se toda peça de teatro deve ter o sentimento do amor, conforme aponta a personagem Nina, Antón Tchékhov não deixa por menos o tratamento deste tema e de suas consequências. Impactante é o amar sem ser amado, noticiando a engrenagem alimentada pela prostração deste sentimento, assim como a ruína quando, eventualmente, concretiza-se (Nina e Trigórin e Macha e Miedviediênko). A incapacidade de ser amado não só diminui a integridade psicológica do submisso, como desmorona, neste, a capacidade de reflexão sobre o que pensam sobre ele mesmo.

  A discussão sobre as perspectivas do que vem a ser o teatro em sua construção e contemporaneidade invade as opiniões dos protagonistas e de seus ataques ora para a defesa de um teatro passadista, ora para um teatro lírico, simbólico e com pretensões de nova arte dramatúrgica. Os personagens, ao longo dos atos, discutem (ou tentam) seus pontos de vistas de forma agressiva, intransigente ou pacífica. O ardor ou a ausência deste nas discussões torna o humor e as expectativas dos envolvidos como um grande rolo compressor descontrolado passando à revelia por uma rua deserta, pois basicamente ninguém escuta (de verdade) o outro em sua opinião.

  A simbologia da gaivota no decorrer da peça é inevitável, pois surge, inicialmente, de uma caça real realizada por Tchékhov e seu amigo e pintor Levitan. Este, após abater uma ave, ferida na asa, pede para que Tchékhov mate a galinhola. O contista diz não conseguir, mas diante da insistência do amigo, termina por liquidar o animal. Esta olhava Tchékhov espantada, lembra o escritor. Assim, mais tarde, dois imbecis, segundo Tchékhov, jantavam, enquanto no mundo havia uma fascinante criatura a menos.

  A gaivota vem a ser a motivadora metáfora três anos depois na peça A gaivota. Nina Zariêtchnaia, Konstantin Trepliov e Boris Trigórin envolvem-se num triângulo amoroso e dramático costurados, também, pela simbologia da gaivota: inicialmente, Nina diz-se uma gaivota, depois, Trepliov deposita aos pés de Nina uma gaivota morta para, em seguida, afirmar que do mesmo modo se matará. Mais tarde, Nina, mais de uma vez, associa-se e assina cartas como A Gaivota; no final do enredo, Iliá entrega a Trigórin a gaivota morta (por Trepliov) empalhada (segundo Iliá, o escritor solicitara a taxidermia do animal) e, finalmente, Trigórin anota para um futuro conto seu o seguinte:

     Estou fazendo anotações... É que me veio uma ideia... (Guarda o caderninho) Uma ideia para um conto curto: uma jovem vive na beira de um lago, desde a infância, como a senhorita; ama o lago, como uma gaivota, e é feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece um homem, ele a avista e, por pura falta do que fazer, ele a destrói, assim como aconteceu a essa gaivota. (em tradução de Rubens Figueiredo; Editora Cosac & Naify).

  Curiosamente, um possível conto citado em sua origem dentro de uma peça de teatro que se torna realidade entre os personagens Nina e Trigórin, ou seja, a realidade próxima demais da arte literária.

  Aspecto oportuno, também na peça, é a disposição de cada um dos personagens frente à expectativa de viver suas vidas sem esperanças, sem conseguir mudá-las, ou simplesmente, compreendê-las como algo inexorável numa comédia (como Tchékhov denomina a peça) de vidas frustradas.


Antón Tchékhov lendo A gaivota para os atores e
diretores do Teatro de Arte de Moscou, em 1898.


Alguns personagens de A gaivota
1. Boris Trigórin – escritor famoso e inteligente; farto da vida; cerca de 40 anos; escreve contos; envolvimento e rompimento com Nina; íntimo de Arkádina;
2. Ievguêni Dorn – médico; 55 anos; saciado da vida; teve caso com Polina; quem vê o corpo de Trepliov depois do suicídio;
3. Iliá Chamraiev – tenente reformado e administrador a serviço de Sórin; marido de Polina; pai de Macha;
4. Irina Arkádina – atriz; mãe de Trepliov; talento inegável; interpretou A dama das camélias e O enlevo da vida; 43 anos; teme a velhice e a morte; íntima de Trigórin; entra em rota de colisão com o filho por causa do teatro do passado e do presente;
5. Konstantin Trepliov – filho de Irina; 25 anos; a peça apresentada na propriedade de Sórin é de sua autoria; apaixonado por Nina; não tem grande consideração pelo teatro; para ele, o teatro contemporâneo é “rotina e superstição”; fracassa em suas intenções de escritor; tem inveja de Trigórin; não suporta o envolvimento de sua mãe com Trigórin; suicida-se no quarto ato;
6. Macha – filha de Iliá e de Polina; julga-se infeliz; 22 anos; costumes: cheirar rapé, beber vodca e vestir-se de preto; ama Trepliov, mas é ignorada por este; no fim, casa com Miedviediênko, tem filho com este, mas despreza o marido;
7. Nina Zariêtchnaia – moça; filha de rico proprietário de terras; representa na peça de Trepliov; apaixonada por Konstantin; é controlada pelo pai; foge de casa; une-se a Trigórin; tem filho com este; é abandonada por Trigórin, mas continua a amá-lo; torna-se atriz de teatros mundanos; é amada por Trepliov;
8. Piotr Sórin – irmão de Irina; aposentado; segundo ele, as mulheres nunca gostaram dele; quis ser escritor e não conseguiu; quis casar e também não conseguiu; 
9. Polina Andréievna – esposa de Iliá Chamraiev; íntima de Dors;
10. Siemion Miedviediênko – professor; vida economicamente difícil; casa com Macha.


Cena do III ato de A gaivota, no Teatro de Arte de Moscou, dirigida por Stanislavski e Niemiróvitch-Dântchenko. Pintor, Símov.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Minha vida - Antón P. Tchékhov

Minha vida 
Antón Pávlovitch Tchékhov
А н т о́ н    П а́ в л о в и ч    Ч е́ х о в


   Minha vida é texto longo se considerarmos os contos curtos de Antón Tchékhov, assim como Três anos, Duelo, Um drama de caça e A enfermaria nº 6 são também mais extensos. Minha vida não é texto autobiográfico, como dizia o seu próprio autor, embora, certamente, o autor poderia claramente se identificar se assim quisesse ou deixasse o trabalho para a crítica ou para o leitor: Blagovó é médico; a doença de Kleopatra, irmã de Missail, lembra a tuberculose; a esposa de Missail, Maria Víktorovna, constrói uma escola rural; as experiências de Missail com os mujiques e sua aproximação nos bastidores do teatro amador em casa dos  Ajóguin; o despotismo de Aleksandr Pávlovitch, pai de Missail e Kleopatra, e, finalmente, a província criticada lembra Taganrog, cidade natal de Antón Tchékhov. A obra é publicada em 1896.


   Missail pode não saber ao certo o que deseja, mas sabe, desde o início de seu relato o que não deseja. O subtítulo da novela, paradoxalmente chamado de conto (“Conto de um provinciano”), identifica “de saída” a intenção do autor, através de seu narrador em primeira pessoa, de não suportar mais uma cidadezinha russa e sua sociedade diagnosticada de medíocre, hipócrita, tediosa, mentirosa, corrupta, parasitária e vulgar. Embora se reconheça um provinciano, Missail quer sua singularidade, uma vez que recusa seu título de nobre para buscar outra responsabilidade, agora, de cunho metafísico, a partir do trabalho braçal. Para isso, ou seja, para encontrar o sentido que procura sem algum horizonte definido, Missail sabe o que não quer, desde a casa paterna despótica, até o intelectualismo oferecido pela província através de serviços entediantes que fazem com que os de nível fiquem sentados esperando a vida passar. O confronto é, deste modo, inevitável, desde o interno familiar, pois seu pai se recusa a aceitar a diferença do filho em relação à tradição familiar, até as grosserias e poucas simpatias da população. Usando de um último estratagema indecoroso, o pai de Missail, via governador da província, ameaça o próprio filho com a retirada do título de nobreza. Nesta altura do relato, o próprio Missail já abriu mão de sua herança, assim como suas únicas ligações com a nobreza fica em nível do médico Blagovó e da filha do engenheiro, Maria Víktorovna. Apesar das discussões entre estes três personagens sobre progresso, estudo, ciência, trabalho, liberdade, inteligência, etc., o distanciamento se torna concreto no final da narrativa de Minha vida, pois tanto o médico como a esposa se afastam definitivamente de Missail na busca de suas perspectivas pessoais, respectivamente, de estudo e de liberdade. No fim do enredo, o pai se recusa também a reconhecer Kleopatra como filha, acusando Missail de tê-la influenciado para sua concepção absurda de vida.


   Inicialmente, o que chama a atenção do leitor é a importância que Tchékhov faz dos antepassados do protagonista para, no decorrer da novela, desconsiderá-los gradativamente. O pai é, no final do enredo, envelhecido e encurvado a andar pelos arredores da própria casa. A mãe é apenas mencionada em sua morte. A família com seus gloriosos antepassados (poeta, general, pedagogo) não é suficiente para manter a solidez, pois o protagonista Missail e sua irmã Kleopatra anarquizam a estrutura mantida por Aleksandr Pávlovitch. Mas além da família de Missail, surge também uma cidade repleta de corruptos, uma galeria de personagens que abrange políticos, médicos, religiosos, militares, professores e funcionários em geral bem dispostos a qualquer tipo de gratificação. Propina é a mola propulsora da sociedade que Missail procura se afastar. O pai, arquiteto, colabora ao desenhar o mesmo tipo de casa padrão para uma sociedade padrão que, em seus lares, liquida filhas e mães e propaga o horror. A infância estúpida e agressiva vivida por Missail e Kleopatra é sinônimo da solidão vivida na velhice por seu próprio pai. A filha não quer saber do próprio pai que tanto atendeu, servilmente, durante anos. Os casamentos também são nutridos pelo machismo, assim como a pureza das moças vai murchando conforme a vida em família. A irmã de Missail engravida do médico Vladímir Blagovó, homem separado e pai de dois filhos. Por fim, Kleopatra morre e deixa uma menina. O pai viaja para o exterior em busca de especialização na medicina. Algo similar acontece com o casamento de Missail: apesar de amar a esposa, Maria Víktorovna (Macha), esta, decepcionada com a vida no campo, parte para Petersburgo e, de lá, em carta lacônica e autoritária, despacha o marido, fazendo-o crer que o casamento entre eles foi um grande erro. Ao partir para a América, segundo a filha do engenheiro Víktor Iványtch Dóljikov, busca sua liberdade. 

   Tchékhov discute, nesta novela repleta de situações desconcertantes, temas metafísicos de modo natural e impressionantemente claro, ao pulverizar os conceitos de uma província corrompida pelo passado e pelo presente em busca do dinheiro, e um jovem que procura buscar sentido para sua vida a partir do trabalho físico. Deste modo, o trabalho dito intelectual não serve a Missail, pois ficar tediosamente sentado à espera de algo não é, segundo o que pensa, inteligência a ser desenvolvida. Entretanto, Missail não consegue explicitar o que de fato deseja para sua vida e o sentido existencial a que procura se dilui nas expectativas que cria e nos trabalhos que desenvolve, como no do telégrafo da estrada de ferro que assume à na da atividade de pintor de paredes e telhados subordinado a Riedka. Mas Tchékhov surpreende também com a ligação de Missail com Riedka, pois seu equilíbrio espiritual se dá com a união a este homem, assim como Kleopatra, já grávida, mora em casa do pintor de paredes. Riedka, Missail e Kleopatra estão ligados também ao teatro amador da casa dos Ajóguin. 


   Por fim, o casamento com uma teórica da agricultura para que ela, caprichosa e egoisticamente, abra mão do casamento para buscar a liberdade. Junto com sua irmã (também abandonada pelo médico Blagovó – se é que realmente algum dia ele esteve junto por tanto tempo ao seu lado), Missail viverá os últimos momentos de vida desta para, finalmente, ser reconhecido pela província ou, ao menos, não ser mais chamado de “Alguma Utilidade”. Sozinho, Missail já não se encontra tão só, pois a trajetória de vida que desempenhou na província mediocrizada é dialogada, individualmente, por seus habitantes, como, por exemplo, Aniuta Blagovó. 


   Missail e Riedka são personagens marcantes, pois diferenciados da província. Segundo Riedka, “O pulgão come a plantação; a ferrugem, o ferro; e a mentira, a alma. Senhor, salve a nós, pecadores!”.



Alguns Personagens de Minha vida

1. Ajóguin – família rica e beneficente; apreciadores da arte; proprietários de terra;
2. Aleksandr Pávlovitch – pai de Missail; único arquiteto municipal da cidade; mora na Bolchaia Dvóriánkaia; guarda jornais, encaderna-os e não deixa ninguém ler;
3. Andréi Ivanov (Iványtch – corruptela do patronímico Ivánovitch) – pintor de paredes; cerca de 50 anos; alto; muito magro; pálido; peito chupado; “têmporas encovadas e olheiras”; aparência assustadora; tem “doença debilitante”; apelido (mas dizem que é seu sobrenome): Riedka (“rabanete”, em russo); “pernas descarnadas e violáceas”; 
4. Aniuta Blagovó – filha do vice-presidente do tribunal; alta; 
5. Kleopatra Alekséievna – irmã de Missail; 26 anos; teme e confia na inteligência do pai; “olhos escuros maravilhosos”; feia de perfil; nariz e boca avançados para a frente sugerindo um assoprar; 
6. Maria Víktorovna (Macha) – a filha do engenheiro Dóljikov; alma simples; inteligente; bondosa; cerca de 25 anos, mas com aparência de 30; loira; bonita e cheia; estudou canto em conservatório de São Petersburgo;
7. Missail Alekséievitch (Alekséitch – corruptela do patronímico Alekséievitch) – narrador; estatura alta; forte compleição física; apelido: “Alguma Utilidade”; procura um sentido para a sua vida; 
8. Vladímir Blagovó – médico; estudante; serve em regimento militar; olhar vivo e simples; olhos acinzentados; barbicha rala; casado com três filhos; infeliz na vida familiar; dizem que não vive com a esposa; engravida Kleopatra.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Os sete enforcados - Leonid N. Andreiév


Leonid Nikoláievitch Andreiév
Леонид Николаевич Андреев

Os sete enforcados (1908)
(Rasskáz o semí povéshennikh) 


Leonid Nikoláievitch Andreiév. 

Nasce em Orel, na Rússia Central, no dia 21 de setembro de 1871. Sua família, embora de ascendência burguesa, enfrenta a miséria, principalmente quando da morte precoce de seu pai. A mãe é de origem polonesa. Andreiév cursa a faculdade de Direito e, por fim, defendendo apenas uma causa enquanto profissional, desiste da profissão. Investe na pintura e chega a vender algumas de suas telas, mas não passa de amadorismo. Sua vocação é, de fato, a literatura. Então, começa a investir na arte literária. Tenta o suicídio por três vezes. Torna-se repórter policial no jornal Kurier. Recebe apadrinhamento literário de Vladímir Korolenko e de Máximo Górki. Sua primeira novela, datada de 1898, Bargamat e Garaska, faz enorme sucesso por causa de sua comoção. Garaska é personagem que chora ao ser tratado bem durante jantar em casa alheia. No início do século XX, Andreiév surpreende ao vender mais de duzentos mil exemplares de sua coletânea de contos. Seu nome começa a circular, não somente na Rússia, como no exterior. Aproxima-se dos poetas simbolistas russos e dos socialistas de Górki. Entretanto, sua carreira entra em declínio no início do século XX, pelos idos de 1913, quando torna-se um panfletário nacionalista. Em 1917, antes de Revolução, torna-se deputado. Com a Revolução de 1917, deixa a Rússia exilando-se na Finlândia. Neste período, escreve panfletos contra o comunismo. Em 1919 tem um ataque cardíaco e morre, em plena miséria, não muito diferente de quando nasceu. 


Literatura russa e Leonid Nikoláievitch Andreiév. 

Nomes como Máximo Górki, Vladímir Korolenko, Anton Tchékhov, Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói e Mikháil Artsibáshchev, por motivos diversos, associam-se ao nome de Leonid Andreiév. Este reconhece ser discípulo do autor de O músico cego, assim como recebe influências de Tchékhov e Górki, seus mestres. Andreiév admira o conde Tolstói, principalmente as novelas A sonata a Kreutzer e A morte de Ivan Ilitch. Este último trabalho de Tolstói deixa forte impressão em Leonid Andreiév. Os textos andreievianos procuram, segundo a crítica, assustar o público, através de um realismo chocante e intolerável. O próprio Tolstói comenta algo sobre os textos de Andreiév nesta ordem: “Andreiév quer me assustar; mas eu não me assusto.”. Alguns críticos, principalmente no exterior, aproximam alguns textos de Andreiév do estilo nervoso e frenético de Dostoiévski, além da psicopatologia dos personagens do autor de Os irmãos Karamázov. Entretanto, outros críticos alertam que, diferentemente de Dostoiévski, Andreiév não tem fé alguma em coisa alguma, ou seja, seu anarquismo e niilismo o afastam de uma crença possível de ser consolidada em seus trabalhos. 


Leonid Andreiév procura neutralizar, também, os heróis sociais de Górki, pois os personagens andreievianos do submundo cometem atrocidades dignas do mais terrível e indecente tirano criminal. Em seu texto datado de 1912, No nevoeiro, um rapaz com intensos impulsos sexuais incontroláveis assassina uma prostituta e, em seguida, comete o suicídio. Já em Abismo, um bando de vagabundos assalta um casal de namorados. Resultado: espancam atrozmente o rapaz, estupram a moça e, por fim, a matam. Se os textos de Leonid Andreiév não assustaram Liev Tolstói, certamente aterrorizaram boa parte do público leitor do autor de Os sete enforcados. Mikháil Pietróvitch Artsibáshchev (1878-1927) recebe influência de Leonid Andreiév. 



O tema do terrorismo. 

O tema do terrorismo, embora mais conhecido na novela Os sete enforcados, também é trabalhado em Trevas e O governador. No primeiro trabalho, um terrorista termina por se esconder num bordel; no segundo, depois de um governador mandar suas tropas investirem contra trabalhadores, terroristas preparam um atentado contra a autoridade. Esta sabe que seu fim é inevitável. O início de Os sete enforcados explora exatamente este ponto, ou seja, um ministro é informado por sua segurança que, no dia seguinte, terroristas pretendem assassiná-lo na entrada de sua residência. Depois de ficar sabendo, o ministro é transferido para casa alheia e, entre confabulações pessoais do que vem a ser o aviso de antemão da morte premeditada, passa mal e precisa de auxílio médico. Curiosamente, o ministro não retorna no decorrer da narrativa, sendo apenas o motivo do julgamento, da sentença e das reflexões sobre a morte e a vida por parte dos cinco revolucionários. Com a prisão dos cinco terroristas (três homens e duas mulheres), estes são condenados à forca junto com dois outros condenados comuns, somando, então, sete enforcados no final da narrativa. O texto é datado de 1908, período de tempos de revolução e, por extensão, de repressão, como salienta impiedosamente a novela Os sete enforcados. Desta maneira, Leonid Andreiév busca temas originais e explora os problemas psicológicos de seus protagonistas, além do incontestável meio social em que estes estão inseridos, pois a apelação para que os jovens vivam é inócua. Para isso, o autor utiliza da precisão linguística e do vigor dos vocábulos que deixam o leitor sufocado pelas imagens aterrorizantes. As depressões nervosas dos personagens, assim como os tormentos da alma associados às divagações, delírios, sonhos e fantasias aliadas ao metafísico, sufocam cada um dos condenados de maneira diferente, embora a linha mestra de raciocínio de Andreiév seja a transformação e o modo de cada um ver, véspera da morte, o próprio fim e como analisa a vida pela última e derradeira vez. 



Os sete enforcados. 

Em Os sete enforcados, a discussão ultrapassa o ato em si do atentado em sua intenção. Ao unir cinco revolucionários e dois presos comuns, Andreiév ressalta as penas dadas para crimes diferentes: terrorismo (Mússia, Vassíli, Tânia, Werner, Sierguéi), assassinato, roubo e tentativa de estupro (Iânson) e, finalmente, crimes diversos (Tziganók). A individualidade do pensar de cada um dos condenados é algo impressionante, pois a angústia e o terror diversificam-se conforme seus medos e reflexões. Iânson repete insistentemente, em sua incapacidade de compreender seu delito, que não deseja morrer. Sua ladainha é permanente, calcificando sua ideia de injustiça e de responsabilidade que ainda crê ter pela vida. Tziganók (o ciganinho) vangloria-se de suas façanhas um tanto misteriosas e assustadoras, mas, no final, no caminho da condenação, lamenta sua solidão, sendo “salvo” por Mússia que o acompanha. Os mútuos beijos entre Mússia e Tziganók denunciam o humanismo destes corações tão distintos. Tânia Kovalhtchúk, a materna companheira do grupo, embora reclame inicialmente sua solidão para o patíbulo, pois iria com Mússia, compreende a intenção salvacionista desta para com Tziganók. Sua preocupação com seus companheiros ratifica suas atitudes no atentado: em sua casa tudo é planejado (como uma dona da casa), além de, quando cercada, atira com arma contra policial acertando-o na cabeça. Sierguéi Golovin tem encontro constrangedor e emocionado com seus pais, em especial, o velho pai coronel reformado. Sierguéi não pensa na morte, mas nas coisas boas da vida. Faz dezoito exercícios pelo método Müller em sua cela, para manter a forma. Com o tempo, deixa de fazer a ginástica para ajudar seu corpo com a própria morte. Por fim, acrescenta o décimo nono exercício: pescoço esticado, ou seja, enforcamento. Werner, considerado pelos juízes o líder do grupo, procura manter a frieza do acontecimento e o controle sobre os demais companheiros e suas ações. Por fim, vê a vida como bela. Vassíli vê, no momento de seu terror frente à morte, um mundo mecânico e repleto de bonecos autômatos. Do brincar com a morte até o terror frente a esta, Vassíli é homem que não tem fé para suportar seus últimos instantes. 


Cada prisioneiro é analisado por Leonid Andreiév. Em cada cela, a angústia e o terror instalam-se nas paredes que fantasmagorizam a morte iminente e inexorável. Esta é humana, inapelável, cruel e inexorável, apesar da esperança em cada um dos condenados, esperança que morre também, pois conforme a sentença aproxima-se, cada um dos sentenciados, lado a lado, serenamente, percebe o fim absoluto de suas vidas. Ninguém escapa da análise de Andreiév, desde o ministro, com sua montanha de carne intumescida nas molas da cama de um quarto alheio, até as definições de morte que permeia o texto: a morte postada em algum canto não querendo ir embora, como sentinela obediente, o enforcamento contorcendo os rostos com os olhos saindo das órbitas, até a morte definitiva que faz com que os corpos dos sete enforcados serenem eternamente em seus caixões sobre a floresta fria, negra e solitária. A execução de cada um não precisa ser detalhada por Leonid Andreiév, pois o necessário é o caminho para a morte. O impacto, através de um baque na narrativa, dá-se com a rapidez sugerida da execução, pois a narrativa acelera o fim de cada um dos sentenciados ao mostrar, apenas, que são colocados em caixões pelos guardas. 



Sete enforcados e um ministro condenado. 
Crimes diferentes para uma mesma punição. 

Sierguéi Golovin não pensa na morte, mas, quando da sentença, tem medo da morte. Para distrair-se, faz ginástica pelo método do alemão Müller. Completa a série dos dezoito exercícios ao acrescentar o décimo nono: pescoço esticado. Em sua despedida, beija o pai e a mãe. O contraste familiar dá-se com as ausências de família e parentes de Werner e de Mússia, além da desestruturada família de Vassíli Kachírin. Outra comparação viável é o amor da mãe de Sierguéi pelo filho e o desamor dos pais e do próprio Vassíli, pois tanto mãe e filho são incapazes do amor. O amor maternal por seus companheiros é verificado na figura de Tânia Kovalhtchúk. 


Vassíli Kachírin é tomado de terror e angústia quando da véspera da execução. Corre pela cela e procura rezar, mas não tem fé, além de vergonha do guarda. Para ele, o mundo, em seu último pensamento, é composto por fantasmas e bonecos mecânicos. Repete a seguinte frase: “Pegam, agarram, levam, enforcam e puxam pelas pernas. Cortam a corda, depositam no chão, conduzem e enterram.”. Ao ser retirado de sua cela, tem atitude infantil, pois diz “Não faço mais!", retrocedendo até a parede. Por fim, volta-lhe a razão: pede um cigarro ao guarda. 


Tânia Kovalhtchúk sofre maternalmente por seus companheiros. Sua preocupação é como estarão eles recebendo, cada um em sua cela, o chamado da Morte? É em sua casa que tudo é planejado em nível do atentado. Sendo a última a ser presa, em sua casa, recebe a polícia a tiros. Acerta a cabeça de um guarda. Defende, maternalmente, o grupo e sua casa, enquanto a dona desta. 


Mússia está feliz, apesar da prisão e da condenação, pois pessoas devem estar sofrendo por ela. Considera, entretanto, que não é mártir. Lamenta seu fracasso profissional. Solidariamente, resolve seguir e beijar o assassino (não terrorista) Mikhaíl Golubiétz, pois este não deseja ir sozinho para o patíbulo. 


Ivan Iânson é criminoso comum. Não é terrorista, pois esfaqueou o patrão levando-o à morte. Indaga por que irão enfocá-lo? Não quer ser enforcado e repete isso a todo o momento. Emagrece, não dorme e não come. Corre pela cela. A noite, o silêncio e a escuridão têm o significado da Morte para ele. 


Mikháil Golubiétz, o Tziganók, tem muitas mortes no currículo e assume o que fez. Tem sonhos horríveis e pesados. Em sua cela, selvagemente, fica de quatro e uiva como um lobo. Deseja sempre a liberdade através da fuga. É convidado a ser carrasco contratado pelo sistema, mas como demora a responder, contratam outro. Simbolicamente, não se torna um assassino legitimado pelo Estado. 


Ministro sofre as consequências de não ter sido vítima do atentado terrorista, pois não consegue dormir no quarto a ele destinado em casa alheia, sente-se “preso” neste quarto, o ambiente escuro o atormenta, tem medo da morte, enfim, termina condenado pela perspectiva da morte e de seu estado de saúde, pois passa mal. 



segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O músico cego - Vladímir Galaktionovitch Korolenko



Vladímir Galaktionovitch Korolenko

Владимир Галактионович Короленко


O músico cego
Слепой mузыкант / Slepoi musikant 

O músico cego é publicado no ano de 1886. O propósito de Vladímir Korolenko, em nota para a sexta edição de seu romance, é esclarecer ao leitor o tema psicológico de sua obra: a atração que a luz exerce em Pedro, pois ela incide precisamente na crise espiritual do protagonista e é, também, a solução da mesma angústia psicológica de seu personagem. Korolenko adverte, também, que as críticas recebidas em torno da questão de que um cego de nascença (o caso de Pedro) não pode ter noção daquilo de que nunca presenciou não é correto, pois, por exemplo, o homem nunca voou como os pássaros e, sem dúvida, todos os homens sabem e quantas vezes as crianças experimentam em seus sonhos a experiência de voar. Por fim, argumenta que a imaginação é a força de seus episódios. Uma última observação centra-se no episódio das figuras dos cegos no mosteiro, mais precisamente no Capítulo VI, e seus diversos estados emotivos e de ânimos. A origem destes episódios é buscada pelo autor no Monastério de Sarovski, do episcopado de Tambov.


Vladímir Galaktionovitch Korolenko nasce em 27 de julho de 1853 na cidade ucraniana de Zhitómir, província de Volínia. Com a morte de seu pai, um funcionário da Audiência provincial, a família fica na miséria. Korolenko está com 15 anos e, graças aos esforços de sua mãe, consegue terminar o estudo. Korolenko passa sua infância e adolescência na Ucrânia. As histórias populares ucranianas contadas diversas vezes por sua mãe marcam, consideravelmente, o espírito do futuro escritor. Em O músico cego, não somente a história heroica do passado ucraniano é resgatada, assim como a canção e cançoneta populares russas são dimensionadas no decorrer do enredo, estimulada para Pedro, principalmente, por outros dois personagens: sobre a historicidade da Ucrânia, a criação do tipo Máximo Mikháilovitch Iatzenko é capaz de passar ao leitor a carga necessária da ideologia “marginal” em tempos da narrativa, com sua participação em batalhas que o mutilam; por outro lado, Jokhime, o mujique, como personagem tipicamente ucraniano em sua brutalidade, produz (depois de tantas tentativas) com elementos da natureza seu instrumento musical, ou seja, uma flauta daquela terra capaz de transmitir todo o sentimento do povo e do mundo ucranianos. A influência do também ucraniano Nikolai Gógol (Entardecer de Dikanka e Mirgorod), na prosa de Korolenko, é incontestável, além de admirável. Curiosamente, estes dois personagens (Máximo e Jokhime) renascem em suas importâncias para o cego Pedro, pois são seus professores que educam a criança cega nas adversidades do mundo dos homens que enxergam, mas não necessariamente veem (no sentido de apreciar) o que está a seu redor. Jokhime inicia o menino cego Pedro na música através da flauta ucraniana; tio Máximo, um inválido de guerra, afirma que talvez saia algo positivo da união entre aqueles dois inválidos no mundo, no caso, ele mesmo, e o filho de sua irmã Ana Mikháilovna. No fim da narrativa, no concerto que Pedro é aplaudidíssimo pelos presentes no salão em Kiev, o professor e tio Máximo compreende (e tem o coração positivamente apertado) o aprendizado que seu sobrinho tirou ao longo de sua trajetória de deficiente visual ao conviver com outros cegos e seus sofrimentos. A música ucraniana com seus sofrimentos e alentos contagia a todos os presentes. Assim é concluída a obra: 


       “Agora tinha triunfado na sua alma e vencia a alma dessa multidão, dizendo-lhe toda a profundidade e todo o horror da verdade que governa a vida...”. Tio Máximo conclui: “Sim, ele vê. Ele substituiu os seus sofrimentos egoístas, cegos e insaciáveis por uma verdadeira e nobre noção do que é a vida. Já sente a ventura e a desgraça humana. Recuperou, enfim, a vista e saberá doravante lembrar aos felizes que existem desgraçados... E o velho soldado inclinou a cabeça, meditando ainda. Ele próprio tinha executado tudo que as forças lhe consentiram. Então não tinha sido de mais na Terra. Asseguravam-lho os sons cheios de energia e convicção que enchiam e arrebatavam todo o auditório. (...) E assim começou o músico cego.”. (O músico cego. Tradução de Natércia Caramalho. Publicações Europa-América. 1971.)


O amor de Korolenko por sua terra faz com que o escritor ucraniano explore de modo poético e especial os cenários naturais, trabalhando pouco as cenas internas (do castelo, do quarto de Jokhime, do mosteiro, etc.). Pedro, o cego, domina sua casa e as adjacências desta, mas descobrirá suas limitações e, por extensão, seus desafios, quando expande sua geografia pela natureza. Desta natureza, surgem Jokhime e, a partir do Capítulo VI, os cegos do mosteiro. Pedro explora o natural e, desta maneira, Korolenko, conduz a narrativa a partir da duplicidade escuridão/claridade-luz na vida e na transformação humana do músico cego. 


Todo este bucolismo trabalhado por Korolenko, um tanto romantizado, não impede o observador que Korolenko tem dentro de si, pois seu olhar clínico não descarta as dificuldades presentes no cotidiano dos lavradores, dos mujiques, dos miseráveis cegos, assim como também dos abastados sociais. Sua fé e esperança nos homens não é diminuída nem desproporcionalmente ditada no enredo de O músico cego, pois o que o leitor encontra em cada capítulo é o equilíbrio narrativo entre as angústias e necessidades de Pedro e o encantamento que este consegue com a música da flauta e do piano, com a música popular ucraniana, com o aprendizado de seus professores, com o ensinamento da própria natureza, com o sofrimento dos outros cegos e, finalmente, com o amor de sua mãe Ana Mikháilovna e sua esposa Evelina. A recompensa final dá-se com o nascimento de seu filho (não cego, apesar do tormento de Pedro até o exame final clínico feito pelo médico) e a consagração de seu talento musical agora em público. O fim retoma o início da narrativa de O músico cego, pois, no impactante Capítulo I, o diagnóstico do médico à mãe do menino cego é sem esperanças de que este vá, algum dia, enxergar. No fim, ele “enxerga-se” a si mesmo como um ser capaz de superar suas próprias expectativas e a dos outros. A luz que o conduz através de seus anos de vida sobressai, não somente, mas principalmente, na concepção que passa a ter em relação a som, cor e movimento.


A libertação dos servos na Rússia, em 1861, é o contexto de Korolenko em seus oito anos de idade. Em sua obra como um todo, o autor preocupa-se com a condição de vida dos servos. Em O músico cego, Korolenko aborda a influência do mujique Jokhime (e seus ensinamentos) sobre o filho do abastado Popelsky, o músico Pedro. Em nível social, o autor fica atento para esta troca entre os ensinamentos da cultura popular e a assimilação da classe rica desta cultura do povo. Ana Mikháilovna, num comentário adverso, estranha a sensibilidade do mujique frente à música, estranhamento que se desfaz pela própria colocação que serve como reflexão para algo que, no decorrer do enredo, confirma-se como algo natural, humano e possível. Em 1871, Korolenko ingressa no Instituto Tecnológico em São Petersburgo, abandonando-o tempo depois. Aprende o ofício de sapateiro. Em 1879, depois do enterro do poeta Nekrássov (transformado em agitação política), é deportado pela primeira vez para Glázov, província de Viatka. Aproveita e conhece ainda mais o povo, acentuando em seu espírito a solidariedade e o engajamento populista. Em 1880, é enviado para a Sibéria. Desta experiência, sai o relato A tentação. Em 1881, deixa a prisão de Tobolsk, sendo conduzido à província remota de Yakutsk. Em 1885, recebe autorização para regressar à Rússia. Mora em Nizhni-Nóvgorod. Korolenko conhece, então, a fama. Jornais, revistas e a Academia abrem as portas ao escritor de O sonho de Makar. Vladímir Korolenko morre em 25 de dezembro de 1921.


O processo narrativo de O músico cego é conduzido por um narrador em 3a pessoa e assim dividido: Capítulo I (10 partes); Capítulo II (13 partes); Capítulo III (9 partes); Capítulo IV (6 partes); Capítulo V (12 partes); Capítulo VI (10 partes); Capítulo VII (2 partes) e Epílogo.


sexta-feira, 27 de junho de 2014

quarta-feira, 2 de abril de 2014

INICIA NOVO CURSO DOSTOIÉVSKI MINISTRADO POR NICOTTI


O novo Curso Dostoiévski (II) iniciou ontem, dia primeiro, no Absolutto, em Porto Alegre. A obra discutida na ocasião foi Gente pobre, primeiro romance de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski em 1846. A obra torna o seu autor conhecido nos meios literários russos antes mesmo de ser publicada. Dostoiévski está com 24 anos. A partir da troca de cartas entre Makar Diévuchkin e Varvara Dobrosiólova, o jovem Dostoiévski sugere diversas intenções a partir daquilo que se encontra nas entrelinhas e nas cartas não apresentadas no período entre abril e setembro de um mesmo ano do século XIX em Petersburgo. Da exteriorização fisiológica dos romances russos adotados pela "Escola Natural" de Bielínski, o grande crítico da época, Dostoiévski surpreende pela hábil psicologia de seus personagens através do que é dito e do não dito.
O Curso Dostoiévski (II) prossegue, no dia 08 de abril, com o segundo romance do autor: O duplo (1846). Entretanto, dia 03 de abril há grupo em Caxias do Sul, no Cursão, e, em Porto Alegre, na Palavraria, no dia 05. A obra analisada será, nestes dois grupos, Gente pobre, para aqueles que também ainda não se inscreveram e desejam compartilhar suas discussões dostoievskianas.

terça-feira, 4 de março de 2014

A morte de Ivan Ilitch - Liev N. Tolstói


Смерть Ивана Ильича (Лев Николаевич Толстой

 A morte de Ivan Ilitch (Liev Nikoláievitch Tolstói)



1. A morte para Tolstói. A morte de Ivan Ilitch (em russo, Smiert Ivana Ilhitchá) é novela datada entre 1884 e 1886, portanto, no contexto de outras obras-primas de Tolstói (1828-1910) como Guerra e paz (1869), Anna Kariênina (1877), Sonata a Kreutzer (1889) e Ressurreição (1899). Liev Tolstói tem, assim como em Anna Kariênina, a ideia de, na vida, o personagem viver sua morte sem a perspectiva crítica daquilo que realmente vive até seu final derradeiro. Se Anna Kariênina experimenta toda sorte de tormentos por se desviar do rumo a que está submetida e por se aventurar com o príncipe Vronski, Ivan Ilitch só encontra o sentido daquilo que viveu a partir da vida que vê naqueles que estacionam na vida medíocre. Segundo Tolstói, “A morte é a passagem de uma consciência a outra, de uma imagem de mundo a outra. É como se você passasse de uma cena e seu cenário a outros. No instante da passagem, fica evidente, ou pelo menos se sente, a realidade mais presente.”. Esta obsessão pela morte se verifica ao menos em enredos como Três mortes, Polikuchka, Guerra e paz, Anna Kariênina e, de forma concisa e magistral, A morte de Ivan Ilitch.

2. O título. O título da novela é perspicaz, se desmembrado da seguinte maneira: a morte enquanto dicotomia com a vida, portanto, a aparência e a essência. Esta reflexão se torna crescente no enredo, a partir das perspectivas materiais e burocráticas de Ivan Ilitch e de seus pares, seja a família ou seus colegas de repartição judiciária. Ivan é a russificação de João, aquele que “tem a graça de Deus”. Ill, do inglês, significa “enfermo” e, finalmente, itch, “desgosto” e patronímico “filho de Iliá”, portanto, Elias, ou, ainda, “Jeová é Deus”. Simplificando: Ivan Ilitch é o escolhido por Deus para compreender a má vida que viveu a partir do egocentrismo, da hipocrisia, do parasitismo e da falsidade. Uma vida enferma e repleta de desgosto afinal entendida no momento inexorável da morte. Uma vida vazia e sem identidade, a de um homem a mais na estrutura familiar e na vida burocrática. A morte da alma de Ivan Ilitch é a marca de que viveu, em vida, a morte. Em dualismo, em sua vida mortal, quando vê a luz, não vê a morte, mas a piedade que tem daqueles que ficam com a vida mesquinha.

3. Os temas. Três temas estão interligados. A vida requisitada pela sociedade, dita decente, a vida repleta de equívocos que se desfaz com a morte (a luz) de Ivan Ilitch e, finalmente, a vida boa e natural do criado Guerássim, aquele personagem que ajuda Ivan Ilitch e responde a este quando indagado do porquê ajudar o enfermo sem reclamações e de modo humano. Resposta de Guerássim: “Todos nós vamos morrer. Por que então não me esforçar um pouco?”. Esta resposta em sua simplicidade lembra a dada por um mujique a Liêvin (“alter-ego” de Tolstói em Anna Kariênina) quando perguntado por este sobre a existência de Deus: “Existe porque existe.”.

4. Uma reflexão inoportuna. As etapas da morte são trabalhadas pelo autor, mas o que se destaca é a banalidade de comportamento da ordem das coisas no mundo da doença: o diagnóstico médico variado, a doença em seu crescente mortal e, finalmente, a ansiedade dos saudáveis para que o moribundo, de vez, desocupe o lugar que ocupa, pois o término é inevitável.

5. A exclusão social. Como não se delega aos outros o dom de morrer, a morte de Ivan, para os demais personagens, incluindo os médicos, é algo realmente seu, de Ivan Ilitch. Desta maneira, a exclusão social se dá tanto fora de casa (no consultório médico e na repartição) como em sua própria família, isolado num quarto. O empecilho que passa a ser tem nome e função: Ivan Ilitch e sua doença que atrapalha a vida social da esposa e da filha e que também abre perspectivas novas com a iminente morte. Não há mais sentido, não há mais significado social para ninguém a morte que aparece estampada na face daquele que, algum dia, também foi pedante e frio em suas atitudes de magistrado do Foro Criminal. A ansiedade daqueles que nada têm com a doença alheia é notória no decorrer do enredo. Os médicos estão, por exemplo, preocupados com o rim e o ceco e não com o indivíduo em si, assim como, outrora, o magistrado Ivan Ilitch se interessava apenas pelo caso jurídico e não com a pessoa envolvida nele.

6. Uma trajetória inesperada? A trajetória de Ivan Ilitch é a vida tipificada de cada um que se aventura a ter segurança e decência sociais. O equilíbrio de uma vida acertada com atitudes e gestos calculados para que se possa atingir a ascensão de seus propósitos é similar à decadência meteórica graças à doença que inicia com a queda sofrida ao cair de uma escadinha ao mostrar algo para o forrador de paredes. A metáfora da queda de Ivan Ilitch é, ao se preocupar com a aparência de seu apartamento para a família, o princípio da queda de uma vida concreta e bem alicerçada. O surgimento da equimose, o gosto amargo na boca, o mau humor, a dor no lado esquerdo do estômago, o diagnóstico, o rim, o ceco e, impreterivelmente, os médicos com seus diversos diagnósticos e as tentativas de Ivan Ilitch com especialistas, com homeopatas, com misticismos são a brevidade racional imposta pelo fim próximo. Tolstói dá, no início da novela, a notícia da morte de Ivan Ilitch em matéria de jornal. Os colegas comentam a partida do magistrado, pensam clandestinamente na vaga aberta ocasionada pelo óbito e na real possibilidade de promoção. Em seguida, Piotr Ivânovitch, o mais chegado a Ivan Ilitch, se vê na obrigatoriedade do velório e da conversa com a viúva Prascóvia, enquanto os demais colegas partem para o jogo de cartas, sinônimo de vida. A viúva encena conversa com Piotr Ivânovitch para saber se tem direito a algo (a mais) dado pelo Governo. Longe do cadáver e dos cheiros desagradáveis do momento, Piotr Ivânovitch retorna à vida decente.

7. Uma história de vida e não de morte. A morte de Ivan Ilitch é uma novela da vida de Ivan Ilitch, com seus mascaramentos, friezas, burocracia e falta de ambição para sair da trivialidade. O mecanicismo social e familiar engessam o magistrado, e, sua alma, frente a sua morte, deixa o ódio por aqueles que o julgam um fardo e passa a compreender aqueles que ficam em uma vida padronizada. O morto com pena dos vivos e não com inveja dos vivos. Tolstói inverte a compaixão e a conceitua diferentemente dos que estão vivos e presos num sistema: a compaixão de Ivan Ilitch é lamentar, na ocasião de sua partida, o seu filho adolescente Vassíli num mundo que sustenta o homem material. A espiritualidade tolstoiana fica com Ivan Ilitch, quando este nasce para uma nova vida, e para o leitor, quando este necessitar da (re)leitura desta que é considerada uma das mais fabulosas novelas da literatura universal.

8. O mais viável é, logo, desocupar o lugar. “Não se poderia dizer como foi que isto aconteceu no terceiro mês da doença de Ivan Ilitch, porque isto acontecia passa a passo, imperceptivelmente, mas aconteceu que a mulher, a filha, o filho, os criados, os conhecidos, os médicos, e sobretudo ele mesmo, souberam que todo o interesse que ele apresentava para os demais consistia unicamente em indagar se não demoraria muito a desocupar finalmente o seu lugar, a livrar os vivos da opressão causada pela sua presença, e a livrar-se ele mesmo dos seus sofrimentos.” (em tradução de Boris Schnaiderman, Boa Leitura Editora S.A. / S.P.).