quarta-feira, 16 de novembro de 2016

LADY MACBETH DO DISTRITO DE MTZENSK, de NIKOLAI LESKOV


A obra-prima de Leskov é a novela  Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, de 1864. O enredo é dividido em 15 capítulos relativamente curtos. Um narrador distanciado narra a passagem, pelo distrito que mora, de uma mulher de um comerciante conhecido, uma mulher de “gênio impetuoso” e protagonista de um “terrível drama”. Catierina Lvovna Izmáilova, mulher de 24 anos, é casada com Zinóvi Boríssitch Izmáilov. Sua vida é tediosa, porque vive trancada em casa. Nesta casa, mora também o pai de Zinóvi, Borís Timofiéitch Izmáilov, homem com pouco mais de 80 anos. Zinóvi tem pouco mais de 50 anos. Catierina é sua segunda esposa. Com cinco anos de casados, Catierina Lvovna Izmáilova é estéril, culpa que recai sobre ela. Como afirma o narrador, “o tédio das casas de comerciante, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar.” dá o clima do que possa ocorrer no enredo. Entretanto, Catierina não se mata por este gosto, pois assassina inicialmente o sogro, envenenando-o, depois o marido, estrangulando-o com a ajuda de seu amante e capataz da fazendola Serguiêi Filípitch, rapaz atrevido e conquistador, e, finalmente, dá cabo do herdeiro e sobrinho de Bóris, o menino Fiódor Liámin, sufocando o garoto com um travesseiro também com a ajuda de Serguiêi. Sentindo-se culpado por seus crimes, Serguiêi, amedrontado por sua superstição, crendo que os mortos achincalham com a casa que agora Catierina vive sozinha, sendo que quem achincalha janelas e portas são alguns homens que testemunham o assassinato do pequeno Fiódor, termina, o capataz, confessando os crimes feitos pelo casal amante. Desterrados para a Sibéria a trabalhos forçados depois das tradicionais chibatadas em praça pública, o incorrigível conquistador Serguiêi aproxima-se de duas prisioneiras, Fiona e Sônia. Com a primeira, sua relação é efêmera, não causando danos à Catierina; entretanto, com Sônia, as provocações do novo relacionamento são insuportáveis para Catierina, mulher que não amava nem a si mesma, mas que matou por causa do amante. Desta forma, quando os presos estão a entrar na barca no Volga, depois de tamanhas provocações de Serguiêi e castigo físico impretado por este em Catierina, através de chibatadas, ela, enlouquecida e febril, vê, nas ondas do Volga, seus três mortos, Borís, Zinóvi e Fiódor. Agarrando Sônia pelas pernas, joga-se. Catierina e Sônia são tragadas pelo violento e imperdoável Volga.

Do fantástico ao real, do psicologismo das ações às superstições dos protagonistas, Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk discute o amor levado às últimas consequências guiado pela cega paixão, pela estupidez humana e pelo egoísmo desenfreado na alma de um homem e de uma mulher.

Mas o enredo de  Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk não se limita a encenar a loucura inquebrantável e a psicologia intratável de seus protagonistas. O texto vai além, pois instiga já com a projeção deste narrativo, graças à epígrafe “Só coramos ao cantar a primeira canção.”, numa espécie de recado de que “preciso só um empurrãozinho pra começar a fazer aquilo que não me envergonharei mais”. Com este provérbio russo, inicia a vida e a trajetória de Lady Macbeth Catierina Lvovna Izmáilova ou, ainda, sua derradeira gana de matar quem esteja a atrapalhar o seu caminho. Entretanto, antes de discutir o frenesi e a sequência dos assassinatos de Catierina Lvovna Izmáilova, é necessário estruturar a psicossociabilidade deste relato.


Catierina Lvovna Izmáilova vive em casa de comerciantes que visam, como de praxe, não somente o trabalho, mas o lucro. Desta relação natural dos abastados, esconde-se uma mulher, uma mulher enclausurada. Na casa dos Izmáilov, além dos subordinados empregados, moram o sogro Borís Timofiéitch, o marido Zinóvi Boríssitch e a submissa Catierina Lvovna Izmáilova. Vítima de ordens e de acusações destes seus dois déspotas insensíveis, a jovem pobre casa pelo fato de ser escolhida (e não ter a vontade de escolher) por um homem mais velho e em seu segundo casamento como, também, é de praxe na sociedade um tanto rural russa. Por não conseguir dar filhos a Zinóvi, ainda é culpada de ser estéril. Interessante que, mais tarde, Catierina Lvovna Izmáilova tem filho, embora no período de ausência do marido, ainda que não tenha fechado nove meses de seu desaparecimento. Esta ambiguidade se desfaz e faz-se porque Catierina Lvovna Izmáilova já tem o capataz do marido como amante, além de o primeiro casamento do marido também Zinóvi não ter tido filho, embora, no final do enredo, a filha de Catierina Lvovna Izmáilova é considerada herdeira universal por ser filha legítima (e, portanto, por ter direito) de Zinóvi e a assassina deste. A sociedade cuida, desta forma, da virilidade de Zinóvi, suspeito real de esterilidade. Leskov, ainda no Capítulo Primeiro, mostra, desta forma, a típica sociedade russa do século XIX e as relações das moças pobres, seus casamentos, suas não escolhas, seus solitários sonhos e seus algozes maridos, sogros, etc., embora sem muito detalhismo, até porque o frenético de sua condução narrativa é o motivo de tornar seu texto ágil e interessante para o ávido leitor. Este, o leitor, percebe o inconformismo e o tédio de Catierina Lvovna Izmáilova em relação à casa e ao distrito de Mtzensk.

O narrador explica ao antecipar, então, boa parte do enredo para o leitor que também aprecia a obra de William Shakespeare (assim como o título da novela também esclarece) o que sua protagonista pode fazer já que nobres do distrito a chamam de Lady Macbeth. Na peça de Shakespeare, Lady Macbeth arquiteta a trajetória de ascensão de Macbeth, seu marido, para este se tornar rei da Escócia. Para Lady Macbeth, de Shakespeare, falta para Macbeth o “instinto do mal”; ela também afirma, em determinado momento, para Macbeth, que “não gostarias de roubar no jogo, mas não te importarias em ganhar ilegitimamente” ou, ainda, “para enganar o mundo, é preciso ser semelhante ao mundo.”. Já para Macbeth, “um rosto falso deve esconder o que sabe um falso coração.”. Atento à tragédia shakespereana, Nikolai Leskov contextualiza seus personagens num distrito da Rússia em meio à natureza e, principalmente, no clímax da história, no fabuloso rio Volga. Serguiêi pode não ter a exuberância de Macbeth, mas a psicologia de ambos se assemelha nas ambições e nos assassinatos que executam, pois, homens que são, desejam o poder. Também possuem similitudes em seus medos, em seus arrependimentos e em seus delírios fantasmagóricos depois de suas conquistas efêmeras e assassínias. Macbeth mata Duncan; Serguiêi Filípitch ajuda a matar Zinóvi; Macbeth tortura-se com os espectros dos mortos; Serguiêi crê na disposição de espectros estarem batendo nas janelas depois da morte do menino Fiédia; Macbeth manda matar Banquo; Serguiêi ajuda a matar o menino Fiédia; na peça de Shakespeare, as feiticeiras profetizam o destino de Macbeth; em Leskov, o Volga profetiza, com seus mortos, mais mortes; em Shakespeare, Lady Macduff é assassinada com seus filhos; em Leskov, Sônia é assassinada; Lady Macbeth, de Shakespeare, morre; Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, também. Se Macbeth morre em combate, Serguiêi tem, em vida, a morte de sua vida, pois tanto Catierina Lvovna Izmáilova quanto Sônia morrem, além de sua imagem ficar comprometida perante os detentos que seguem para a Sibéria. O fim de Lady Macbeth, de Shakespeare, é seu suicídio em seu castelo; a prisão de Lady Macbeth, de Leskov, começa em sua casa, quando vigiada por dois guardas, após testemunha ver a morte de Fiédia, e termina com seu suicídio (e também seu último assassinato, pois leva consigo Sônia). Como diz Hécate, a deusa da feitiçaria e governante das três feiticeiras da peça Macbeth, “A confiança é o maior inimigo dos mortais.”. Esta sentença clássica serve para os dois textos e, deste modo, o intertextualismo que Leskov faz com Shakespeare torna-se primoroso, pois Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk torna-se destacada obra do autor russo, contemporâneo de Dostoiévski e de Tolstói.

No caso de Catierina Lvovna Izmáilova, o agravante é, também, o da casa onde mora ser tipicamente patriarcal, não somente pelos conceitos exigidos pela sociedade russa daquela época do século XIX, como pela ausência de outra figura feminina que possa, com Catierina Lvovna Izmáilova, estabelecer contato mais sensível. Este é um ponto interessante de o leitor notar no mundo fechado da esposa de Zinóvi: esta vive sozinha em seu mundo feminino. O primeiro problema a atingir Catierina Lvovna Izmáilova é o tédio e a melancolia, condições que levaram outras protagonistas da literatura universal a se atirarem de cabeça na literatura romântica. Leskov faz Catierina Lvovna Izmáilova ser diferente de tantas moças leitoras de sua época, pois ela não busca na literatura consolo, uma vez que tem a realidade para servi-la. O segundo problema é a ausência do amor na vida desta criatura, assim como, o terceiro problema em sua vida ser a falta de liberdade. Neste ponto da narrativa, a ausência do marido Zinóvi já não é lamentada, pois, segundo o argumento de Catierina Lvovna Izmáilova, é um a menos a mandar e a esculachar. No Capítulo Segundo, com o problema no moinho, Zinóvi vê-se na condição de trabalhar mais, ausentando-se definitivamente de sua casa. Aí um paralelo para a enclausurada Catierina Lvovna Izmáilova: como o sogro está trabalhando na cidade, ela fica sozinha em sua própria casa. Resolve, então, também sair de casa, deslocando-se para o jardim. No quintal, há trabalhadores, há algazarra, há brincadeira, há liberdade e outro modo de viver, além, é claro, do conquistador capataz Serguiêi Filípitch. Para o leitor, o rumo do enredo parece que ficará, apenas, no velho e tradicional adultério, mas, não, pois a literatura leskoviana surpreenderá, com agitação, com psicologia, com psicopatologia e sequência de assassinatos, ingredientes estes comandados por uma cega paixão e um apelo de inferioridade que Serguiêi Filípitch não suporta para si e para a sua condição de homem diferenciado, segundo julga, dos demais homens: afinal, Serguiêi Filípitch sabe amar…

Será a paixão de um homem sedutor a provocar uma mulher sem paixão em sua casa que engolirá o enredo com assassinatos e acúmulo de tragédias: há quatro assassinatos e um suicídio no enredo. O deslumbramento e a submissão de Catierina Lvovna Izmáilova por Serguiêi Filípitch aprofunda e liberta a psicologia alterada de uma mulher que se propõe alcançar o poder pela ganância. A submissão inicial no mundo de Zinóvi não é diferente da submissão que Catierina Lvovna Izmáilova estabelece com Serguiêi Filípitch, com a diferença que de passiva passa, a heroína, a ser ativa. Para fazer também seu amante ascender socialmente, insistência por ele também trabalhada, Catierina Lvovna Izmáilova não mede seus limites e, se constrói limites, estes são para eliminar qualquer tipo de obstáculo que venha a interferir em sua nova vida: cria mentiras, realiza matanças e serve à cega paixão. Sua indiferença à família, à sociedade, à filha e à vida faz de seu personagem um tipo definido de patologia que descrê das bases de qualquer estrutura social. As atitudes de Catierina Lvovna Izmáilova é provida pelas piores atitudes dos homens em sociedade que atrofiam o mundo das mulheres. Catierina Lvovna Izmáilova herdou para conquistar o poder o pior do gênero masculino para conquistar o mundo das mulheres no século XIX. Esta metáfora leskoviana é surpreendente como tema rompedor de uma literatura que anarquiza, em geral, o mundo das mulheres por retratar a realidade social. 

A religiosidade não é esquecida por Leskov, com suas tradições tipicamente russas. Fiédia lê, instantes antes de sua morte, o livro do santo que mais gosta, no caso, São Teodoro de Stratilato; sua bábuchka vai à missa; os trabalhadores, também; assim como há o místico, o sobrenatural, o sonho e o pesadelo, a premonição, a culpa e a pureza da infância indefesa com seus medos. Enquanto isso, Catierina Lvovna Izmáilova e Serguiêi Filípitch evitam a religião. A cena do assassinato do menino Fiédia é dolorosa de se ler. O receio da criança e sua desconfiança eternizam, no leitor, a covardia do mundo dos homens frente ao mundo inocente das crianças. A cena descrita causa lástima no leitor.

A inferioridade de Serguiêi Filípitch fomenta o caráter social na novela Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk. Este rapagão sedutor lembra com insistência, à sua amante, de sua inferioridade e do desrespeito que nutrem por ele. Desta forma, Catierina Lvovna Izmáilova garante que o transformará em comerciante. O enredo centraliza exatamente este ponto das seguintes diferenças sociais: há comerciantes, os antigos patrões de Serguiêi Filípitch, os trabalhadores, parentes dos Izmáilov, a pobre moça agora nobre pelo casamento com um comerciante e, finalmente, um homem insatisfeito com sua condição social. No final da narrativa, o narrador dispara esta: “O mais desolador dos quadros: um punhado de pessoas, arrancadas do mundo e privadas de qualquer sombra de esperança em um futuro melhor, afunda na lama negra e fria de uma estrada de terra batida.”, em relação aos degredados. Serguiêi Filípitch já havia sido demitido de casa servida anteriormente por ter se envolvido com a patroa. Na nova casa, no caso a de Zinóvi, envolve-se, também, com a patroa, levando às últimas consequências seu desejo de mundança de status social. Sua tentativa de mudar de status social é premeditada. Serguiêi Filípitch utiliza seu sensualismo e seu poder de sedução (suas únicas armas) para ascender socialmente (que coisa atual!!!!!). Sua beleza é sua superioridade, seu uso é a artimanha para conquistar alguém frágil no amor. Conquistado seu objeto de desejo e punido não só pela rapidez da conquista como pela perda desta conquista, não se envergonha de traduzir a maior das cafajestices: seu desdém à mulher que o levou a ascender social e criminalmente. Ela reconhece, ao menos, que matou por ele.


A natureza. Lírica e furiosa, é esplendidamente trabalhada por Leskov. Aí o diálogo criado pelo autor torna sua novela ainda mais próxima do genial da peça de Shakespeare. Somente um ótimo escritor tem a capacidade de construir este intertextualismo, adaptando para a cultura e o contexto de sua própria realidade e de seu tempo e cultivando a tragicidade das intenções dos personagens num ambiente diverso dos castelos shakespereanos. Leskov explora a neve, a lama, a chuva, o jardim, as ondas furiosas e violentas do Volga, e até “Os vidros das janelas começam a degelar e lacrimejar.” antes do assassinato do menino Fiédia. Leskov não se contenta com as rápidas descrições, pois ambienta a natureza com o desenvolver das cenas e das ações dos personagens. O lirismo bucólico condiz com a paixão e o amor do casal amante; a furiosa natureza, com a punição do casal assassino. O desfecho que Catierina Lvovna Izmáilova dá a sua indignação é apoiada pelo Volga: este traz ao delírio da jovem os três mortos de Catierina Lvovna Izmáilova – Borís, Zinóvi e Fiédia. O vagalhão do Volga é como o ressuscitar daqueles mortos no imaginário da assassina. A impetuosidade do Volga e de Catierina Lvovna Izmáilova concluem o relato, com a força demoníaca de uma mulher adulterina que, traída também, perde a mínima capacidade de se integrar à sociedade que nunca a integrou realmente. De fato, para Catierina Lvovna Izmáilova, “não existia  a luz nem a escuridão, nem o mal nem o bem, nem o tédio nem a alegria; ela não compreendia nada, não amava ninguém, não amava nem a si mesma.”. 

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O ETERNO MARIDO, de Fiódor Dostoiévski



“Os grandes pensamentos originam-se mais de um grande  sentimento do que uma grande inteligência.” 
(Páviel Pávlovitch Trussótzki 
lembrando frase dita
por Alieksiéi Ivânovitch Vieltchâninov quando amigos em T.)


No ano de 1869, Dostoiévski passa ainda por percalços econômicos, em Dresden, e oferece uma novela curta para o editor Strakov. Inicia então o texto e termina por estendê-lo mais do que inicialmente imagina. O tema, então bastante em voga na literatura ocidental, em especial a francesa, trata das relações entre um marido, sua mulher e seu amante. As origens deste romance não são totalmente claras, embora talvez a relação mais possível seja a reminiscência de Dostoiévski quando em Semipalatinski, depois dos quatro anos que vive confinado na prisão de Omsk. Na ocasião, seu amigo, o barão Vrangel, mantém um caso com uma mulher casada com um general, no caso, a sedutora e voluptuosa senhora E. I. Guiérngross. Dostoiévski também vive algo próximo a este tipo de enrascada, pois ao namorar Mária Dmítrievna, esta, em determinado momento, viaja e tem um relacionamento com um amante antes de casar com Dostoiévski. Em suas memórias, Anna Grigoriévna Dostoiévskaia, a segunda esposa do escritor, faz comentário do caráter autobiográfico de O eterno marido, referindo-se no que consta ao anedótico.


Em O eterno marido, as complicações se acentuam quando da descoberta do marido de Natália Vassílievna Trissótzkaia, Páviel Pávlovitch Trussótzki, de cartas que a mulher trocava com seus amantes, descobrindo desta forma sua infelicidade. Entretanto, Natália Vassílieva se encontra morta quando desta descoberta. O marido resolve, então, partir com sua filha Lisa para São Petersburgo. Alugando quarto em hospedagem de certo hotel, passa a seguir pelas ruas um antigo amigo que permanece, durante um ano, na província que Natália e Páviel moravam, no caso, a província de T. Alieksiéi Ivânovitch Vieltchâninov, na ocasião, aproximara-se intimamente do casal e trai o amigo com a esposa deste. Natália Vassílieva, entretanto, se apaixona por um oficialzinho, despachando o antigo amante de T. Alega a este estar grávida e, para não levantar suspeitas do marido, Vieltchâninov deve deixar o local e retornar meses depois. Em carta endereçada, mais tarde, a Vieltchâninov, afirma a este a não procurá-la mais, pois se encontra apaixonada por outro amante. Conclui, na carta endereçada, que a gravidez foi apenas suspeita não confirmada. No final da história, o leitor sabe que as coisas não se deram desta forma, pois depois de Páviel Pávlovitch Trussótzki ter tentado esfaquear Vieltchâninov, deixa a este envelope com uma carta amarelada pelo tempo. Nesta, que não foi enviada a Vieltchâninov por Natália, esta afirma que nasceu do relacionamento deles uma criança, no caso Lisa, filha de Vieltchâninov. Esta menina seria a prova de toda uma amizade entre os ex-amantes. Misteriosamente, Natália Vassílieva não envia esta carta ao ex-amante, preferindo enviar aquela que informa seu novo amante e o alarme falso da gravidez.


Embora com críticas negativas na época, há também elogios a’O eterno marido, fazendo com que diversos críticos, incluindo contemporâneos, apontem o romance como uma das obras mais bem acabadas de Dostoiévski, uma vez que a técnica narrativa aprimorada e desenvolvida durante os capítulos promove o suspense e o psicologismo absurdamente equilibrado, em especial, no relacionamento entre o “eterno marido” e o “eterno amante”. Alguns críticos apontam também para a dificuldade de Páviel Pávlovitch ter uma vida constituída fora do casamento, assim como o final do romance sustenta a incapacidade inversa de Vieltchâninov de se ausentar de ser um libertino amante, embora mais razoável com a aprendizagem recebida do episódio de Páviel e Natália do que sua libertinagem no início do enredo.


Desde o primeiro capítulo, entretanto, alguns enigmas corroboram para o entrelaçamento esquisito entre os dois homens (marido e amante), numa caça entre “rato-e-gato” que assume, também, alguns pontos patéticos e engraçados, embora dramatizados quando da psicologia do humilhado e ofendido marido. A intriga ganha força, principalmente, pela capacidade de Dostoiévski apresentar o lado humano estraçalhado do marido corneado (há cena que ele imita cornos em sua cabeça!) pela esposa e por aquele que ele algum dia julgou seu melhor amigo. A pose de Vieltchâninov vai murchando conforme a engenharia de Páviel Pávlovitch vai engendrando o ex-amante de Natália Vassílieva, usando, impiedosamente a menina Lisa em suas maquinações. Do ódio ao amor incontido pela criança, Páviel tortura psicologicamente “sua filha” para se vingar de Vieltchâninov, o verdadeiro pai, também ao odiá-lo e ao amá-lo, exemplificado quando pede um beijo do rival e quando cuida este em sua doença. Lisa ocupa parte significativa do enredo, não somente por ser parcela do enigma proposto por Dostoiévski, como pelo sofrimento que vive. Termina por morrer e marcar consideravelmente seu legítimo pai, embora, no final do enredo seja lembrada por Páviel Pávlovitch. A psicologia dos dois postulantes à dialética, ultrapassa a discussão em busca da verdade vivida no passado no momento da luta corporal no quarto de Vieltchâninov, embora, mais tarde, Vieltchâninov, no capítulo “Análise”, considere a possibilidade de Páviel, “o homem do crepe do chapéu”, ter o agredido sem querer, sem a intenção primeira do assassinato, embora querendo matá-lo. Portanto, um assassino sem querer, pensa Vieltchâninov: “Pessoas desse gênero – pensou -, pessoas exatamente desse tipo, que, um instante antes, não sabem se vão matar ou não, assim que apanham uma faca nas mãos trêmulas e mal sentem o primeiro borrifo de sangue cálido sobre os dedos, não apenas matam, mas cortam completamente a cabeça, ‘fora de uma vez’, como dizem os forçados. É isso.”. Neste ponto, Dostoiévski discute a questão do crime e do criminoso, anteriormente trabalhada em Recordações da casa dos mortos (1861) e Crime e castigo (1866) e, posteriormente, em Os irmãos Karamázov (1880). O “homem do subsolo” se vê na dinâmica da contradição, tanto do discurso de Páviel Pávlovitch como no de Vieltchâninov. Alguns críticos apontam para uma discussão mais ampla proposta por Dostoiévski em O eterno marido, no caso a dimensão da cultura russa estabelecida por personalidades mansas e ferozes. Considerados os nomes dos protagonistas, Vieltchâninov sugere “grandeza e magnificência”, enquanto que Trussótzki, “covardia”. Os diálogos entre ambos é de uma perfeição inimaginável, se consideradas as sugestões e o velamento proposto entre o que um espera que se diga para, o outro, poder dizer o que deve dizer para não entregar o jogo que estão jogando enquanto, por exemplo, marido, amante e “pais” de Lisa. O “eterno marido” Páviel Pávlovitch se concretiza pela necessidade de ter esposa e noiva ao longo da narrativa, nas figuras de Natália Vassiliévna, Nadiejda Fiedossiéievna (possível noiva) e, finalmente, Olimpiáda. Um acordo tácito se concretiza no último capítulo, quando da negativa de Vieltchâninov de visitar o casal Páviel e Olimpiáda/Lípotchka. Vieltchâninov, do início da narrativa, com sua situação financeira precária por ter torrado heranças recentemente recebidas, com sua vida libertida e seus gastos excessivos e sua aparência de conquistador inconsequente, ao fim do enredo, com uma herança recebida, torna-se mais criterioso para não dilapidar seu patrimônio, embora continue a viajar para conhecer e conquistar algumas senhoras necessárias.



sábado, 24 de setembro de 2016

DOUTOR JIVAGO, de Boris Pasternak

                  

A história dos Jivagos inicia o romance Doutor Jivago (1957),  de Boris Pasternak, mais precisamente com uma morte, a de Maria Nikolaievna, mãe do menino Iúri Andreevitch Jivago, e termina com a morte deste menino, cerca de uma década antes, da cronologia final do enredo, já como adulto: o doutor Jivago. Anterior à Revolução de 1917 na Rússia, o pai de Iúri perde toda a sua fortuna por ser um homem farrista e irresponsável. Empresas da família são liquidadas, pois “havia a manufatura Jivago, o banco Jivago, as Casas Jivago, o método Jivago de dar o nó e prender a gravata com o alfinete; até mesmo um pastelão redondo, parecido com bolo coberto de glacê, se chamava Jivago. E houve um certo tempo em Moscou em que se podia gritar para o cocheiro ‘para Jivago!’, como se fosse ‘para onde Judas perdeu as botas!’, e ele o levava em seu trenó para os confins do mundo.”. O pai de Iúri Jivago comete suicídio induzido por seu advogado, Victor Komarovski (personagem que se sustenta ao longo da narrativa como alguém sujo e intocável, enquanto que Jivago, Larissa e Pacha Antipov são liquidados), no mesmo trem que está o menino Gordon, que no final do enredo estará com o decadente Iúri Jivago e que lerá, junto com Dudorov, o manuscrito do livro de Jivago. A simbologia está feita por Pasternak para o tipo de família russa antes da Revolução de 1917 em tempos de czarismo. Estes “bons tempos” da aristocracia russa – e moscovita – têm seus dias contados, estrangulamento social não mais sustentado pela elite decorrente de um somatório de abusos contra as condições de um povo sofrido e que não conseguia mais se articular no plano social do campesinato e do urbanismo. Se todo o poderio econômico dos Jivagos está em Moscou, será esta mesma Moscou o cenário final do romance de Pasternak. 
                    
Doutor Jivago é romance moscovita, embora o painel histórico construído por Boris Pasternak invada o interior da Rússia e precise mais pontualmente a Sibéria e outras regiões. O autor também não deixa de lado anos depois da morte do doutor Jivago, para descrever as atrocidades da Segunda Guerra, os alemães, os campos de concentração (os Gulag) e os assassinatos sumários dos judeus. Para isso, resgata duas figuras importantes na vida de Iúri Jivago: Gordon e Dudorov que, se não tiveram a dualidade ideológica de Jivago, é porque aderiram as sistema da Revolução Russa e, graças a esta, conseguiram títulos militares. A ambiguidade ideológica de Iúri Jivago é a autobiografia apontada por uma série de críticos para Pasternak ou, a de Pasternak para com Iúri Andreevitch Jivago. 
                 
O próprio autor, que anterior à Segunda Guerra Mundial via-se como poeta, pois considerava sua atividade de prosador como secundária, admite, com a escrita de Doutor Jivago, sua obra mais importante. À parte disto, é perceptível o intimismo lírico particular, elo autobiográfico, também, em nível da realização artística de Pasternak, pois a poeticidade construída pelo autor nas inúmeras descrições da natureza russa ganha um colorido singular ao ponto de se aliar com o propósito maior da obra (segundo seu autor) que é o de registrar os acontecimentos internos da vida espiritual da Rússia. Se Pasternak não foi um entusiasta dos princípios ideológicos da Revolução de 1917, também não a negou veementemente como fizeram diversos outros escritores russos. Escritor russo e soviético, na melhor expressão do termo literário, Pasternak e Jivago deixam bastante claro suas intenções durante a narrativa, seja pelo discurso de Iúri Jivago, assim como a condução narrativa (libertária) de seu narrador em 3a pessoa. Um libelo não contra alguém específico, mas para contra qualquer sistema que tira do homem a condição de pensar, de ser liberto, de lidar com a racionalidade e de desfrutar a vida de modo sensato, lírico e intelectual. Daí, então, surge o dilema da história da humanidade, pois não somente da Rússia prerrevolucionária e revolucionária. Qual a medida justa, humana e confortavelmente mais digna dos direitos dos homens? Qual ideologia, de fato, ao sair do papel garante a igualdade entre os homens e a diminuição das injustiças sociais? A Rússia do século XIX já não mais se permite; a Rússia da Revolução Russa de 1917 já não mais se permitiu. 
          
         Mas como o homem é o lobo do homem (expressão popular utilizada no enredo), a corrupção social e particular está com o poder e, com ele, a escolha de proteção individual. Iúri Jivago sobrou nesta transição dos séculos das Rússias czarista e do proletariado. Ficou em área de inaceitabilidade social, pois não aderiu completamente ao sistema soviético, assim como não conseguiu sair do país. Neste ínterim curto de sua vida (morre com pouco mais de 40 anos), perdeu e ganhou famílias, ganhou e perdeu a medicina, ganhou e perdeu amigos, ganhou e perdeu o amor, perdeu e ganhou o social, perdeu e ganhou a consciência de sua decadência dentro de uma sociedade já sem escrúpulos morais. De intelectual da medicina, Iúri Jivago se agarra desesperadamente na literatura, possibilidade única que enxergou para se imortalizar num sistema que mortalizava as pessoas que se afastavam da intelectualidade do sistema soviético. Estaria aí a vida de Boris Pasternak? Certamente. Aquele filho Iúri Jivago (de um pai falido e suicida), depois da Revolução de 1917, perde o que o seu sustento como médico lhe dá para sustentar a sua família, num ciclo rápido, assim como as consequências da revolução, até a sua morte em bonde de Moscou, com doença hereditária da própria mãe, fechando, desta forma, um segundo ciclo, agora, com as mortes de mãe e filho (em épocas distintas) apresentadas no início e no fim do enredo. No crescimento da história dos Jivago e, em especial, de Iúri Jivago, a ênfase mais para o final do romance da figura do meio-irmão de Iúri, Ievgraf Jivago, homem misterioso, endinheirado e que aderiu ao sistema soviético ao ponto de se tornar general. Aí outro ponto notável recuperado por Pasternak: independente da adesão ao sistema dos sovietes, homens como Iúri Jivago vivem às custas deste mesmo sistema, quando da sorte de algum membro familiar estar usufruindo das benesses de um governo. O meio-irmão de Iúri dá o sentido, também, da meia-vida de Iúri Jivago, meio intelectual do passado, meio adepto e vítima do presente. A simbologia do meio-irmão é a de aderência aos créditos de uma ideologia que continua (e parece que sempre continuará) a plantar privilégios e a de proteger a sua própria família.

        
Iúri Jivago constrói elementos sólidos em sua vida: a medicina (e pesquisas científicas), a família, a liberdade e a literatura. Tudo pode ser dito que em vão, pois a medicina ele abandona, a família ele perde para reconstruir novamente e voltar a perder (Tônia e seu filho Sacha e sua filha Macha), Larissa (e sua filha Tatiana com Iúri) e Marina (com suas duas filhas, Kapitolina e Klachka) e a liberdade aparada a cada minuto de sua existência (inadequação ao emprego, prisão pelos guerrilheiros, andanças miseráveis por cidades em ruínas, dependência econômica e de pensamento em Moscou). Somente a literatura de Iúri Jivago sobrevive, com seus poemas (no final do livro), com seu diário, com seus livrinhos impressos por Vácia, por seu “Brincando de ser gente”, por seus poemas dentro de seus sonhos e, finalmente, por seu livro/romance lido pelos amigos Gordon, Dudorov e pelos leitores de Boris Pasternak.