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Fôlego Literário
Blog do Nicotti
domingo, 12 de março de 2017
quarta-feira, 16 de novembro de 2016
LADY MACBETH DO DISTRITO DE MTZENSK, de NIKOLAI LESKOV
A
obra-prima de Leskov é a novela Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, de
1864. O enredo é dividido em 15 capítulos relativamente curtos. Um narrador
distanciado narra a passagem, pelo distrito que mora, de uma mulher de um
comerciante conhecido, uma mulher de “gênio impetuoso” e protagonista de um
“terrível drama”. Catierina Lvovna Izmáilova, mulher de 24 anos, é casada com
Zinóvi Boríssitch Izmáilov. Sua vida é tediosa, porque vive trancada em casa.
Nesta casa, mora também o pai de Zinóvi, Borís Timofiéitch Izmáilov, homem com
pouco mais de 80 anos. Zinóvi tem pouco mais de 50 anos. Catierina é sua
segunda esposa. Com cinco anos de casados, Catierina Lvovna Izmáilova é
estéril, culpa que recai sobre ela. Como afirma o narrador, “o tédio das casas
de comerciante, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar.”
dá o clima do que possa ocorrer no enredo. Entretanto, Catierina não se mata
por este gosto, pois assassina inicialmente o sogro, envenenando-o, depois o
marido, estrangulando-o com a ajuda de seu amante e capataz da fazendola
Serguiêi Filípitch,
rapaz atrevido e conquistador, e, finalmente, dá cabo do herdeiro e sobrinho de
Bóris, o menino Fiódor Liámin, sufocando o garoto com um travesseiro também com
a ajuda de Serguiêi. Sentindo-se culpado por seus crimes, Serguiêi, amedrontado
por sua superstição, crendo que os mortos achincalham com a casa que agora
Catierina vive sozinha, sendo que quem achincalha janelas e portas são alguns
homens que testemunham o assassinato do pequeno Fiódor, termina, o capataz,
confessando os crimes feitos pelo casal amante. Desterrados para a Sibéria a
trabalhos forçados depois das tradicionais chibatadas em praça pública, o
incorrigível conquistador Serguiêi aproxima-se de duas prisioneiras, Fiona e
Sônia. Com a primeira, sua relação é efêmera, não causando danos à Catierina;
entretanto, com Sônia, as provocações do novo relacionamento são insuportáveis
para Catierina, mulher que não amava nem a si mesma, mas que matou por causa do
amante. Desta forma, quando os presos estão a entrar na barca no Volga, depois
de tamanhas provocações de Serguiêi e castigo físico impretado por este em
Catierina, através de chibatadas, ela, enlouquecida e febril, vê, nas ondas do
Volga, seus três mortos, Borís, Zinóvi e Fiódor. Agarrando Sônia pelas pernas,
joga-se. Catierina e Sônia são tragadas pelo violento e imperdoável Volga.
Do
fantástico ao real, do psicologismo das ações às superstições dos
protagonistas, Lady Macbeth do Distrito
de Mtzensk discute o amor levado às últimas consequências guiado pela cega
paixão, pela estupidez humana e pelo egoísmo desenfreado na alma de um homem e
de uma mulher.
Mas
o enredo de Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk não se limita a encenar a
loucura inquebrantável e a psicologia intratável de seus protagonistas. O texto
vai além, pois instiga já com a projeção deste narrativo, graças à epígrafe “Só
coramos ao cantar a primeira canção.”, numa espécie de recado de que “preciso
só um empurrãozinho pra começar a fazer aquilo que não me envergonharei mais”.
Com este provérbio russo, inicia a vida e a trajetória de Lady Macbeth
Catierina Lvovna Izmáilova ou, ainda, sua derradeira gana de matar quem esteja
a atrapalhar o seu caminho. Entretanto, antes de discutir o frenesi e a
sequência dos assassinatos de Catierina Lvovna Izmáilova, é necessário
estruturar a psicossociabilidade deste relato.
Catierina
Lvovna Izmáilova vive em casa de comerciantes que visam, como de praxe, não
somente o trabalho, mas o lucro. Desta relação natural dos abastados,
esconde-se uma mulher, uma mulher enclausurada. Na casa dos Izmáilov, além dos
subordinados empregados, moram o sogro Borís Timofiéitch, o marido Zinóvi
Boríssitch e a submissa Catierina Lvovna Izmáilova. Vítima de ordens e de
acusações destes seus dois déspotas insensíveis, a jovem pobre casa pelo fato
de ser escolhida (e não ter a vontade de escolher) por um homem mais velho e em
seu segundo casamento como, também, é de praxe na sociedade um tanto rural
russa. Por não conseguir dar filhos a Zinóvi, ainda é culpada de ser estéril.
Interessante que, mais tarde, Catierina Lvovna Izmáilova tem filho, embora no
período de ausência do marido, ainda que não tenha fechado nove meses de seu
desaparecimento. Esta ambiguidade se desfaz e faz-se porque Catierina Lvovna
Izmáilova já tem o capataz do marido como amante, além de o primeiro casamento
do marido também Zinóvi não ter tido filho, embora, no final do enredo, a filha
de Catierina Lvovna Izmáilova é considerada herdeira universal por ser filha
legítima (e, portanto, por ter direito) de Zinóvi e a assassina deste. A
sociedade cuida, desta forma, da virilidade de Zinóvi, suspeito real de
esterilidade. Leskov, ainda no Capítulo
Primeiro, mostra, desta forma, a típica sociedade russa do século XIX e as
relações das moças pobres, seus casamentos, suas não escolhas, seus solitários
sonhos e seus algozes maridos, sogros, etc., embora sem muito detalhismo, até
porque o frenético de sua condução narrativa é o motivo de tornar seu texto
ágil e interessante para o ávido leitor. Este, o leitor, percebe o
inconformismo e o tédio de Catierina Lvovna Izmáilova em relação à casa e ao
distrito de Mtzensk.
O
narrador explica ao antecipar, então, boa parte do enredo para o leitor que
também aprecia a obra de William Shakespeare (assim como o título da novela
também esclarece) o que sua protagonista pode fazer já que nobres do distrito a
chamam de Lady Macbeth. Na peça de
Shakespeare, Lady Macbeth arquiteta a trajetória de ascensão de Macbeth, seu
marido, para este se tornar rei da Escócia. Para Lady Macbeth, de Shakespeare,
falta para Macbeth o “instinto do mal”; ela também afirma, em determinado
momento, para Macbeth, que “não gostarias de roubar no jogo, mas não te
importarias em ganhar ilegitimamente” ou, ainda, “para enganar o mundo, é
preciso ser semelhante ao mundo.”. Já para Macbeth, “um rosto falso deve
esconder o que sabe um falso coração.”. Atento à tragédia shakespereana,
Nikolai Leskov contextualiza seus personagens num distrito da Rússia em meio à
natureza e, principalmente, no clímax da história, no fabuloso rio Volga.
Serguiêi pode não ter a exuberância de Macbeth, mas a psicologia de ambos se
assemelha nas ambições e nos assassinatos que executam, pois, homens que são,
desejam o poder. Também possuem similitudes em seus medos, em seus
arrependimentos e em seus delírios fantasmagóricos depois de suas conquistas
efêmeras e assassínias. Macbeth mata Duncan; Serguiêi Filípitch ajuda a matar Zinóvi; Macbeth tortura-se
com os espectros dos mortos; Serguiêi crê na disposição de espectros estarem
batendo nas janelas depois da morte do menino Fiédia; Macbeth manda matar
Banquo; Serguiêi ajuda a matar o menino Fiédia; na peça de Shakespeare, as
feiticeiras profetizam o destino de Macbeth; em Leskov, o Volga profetiza, com
seus mortos, mais mortes; em Shakespeare, Lady Macduff é assassinada com seus filhos;
em Leskov, Sônia é assassinada; Lady Macbeth, de Shakespeare, morre; Lady
Macbeth do distrito de Mtzensk, também. Se Macbeth morre em combate, Serguiêi
tem, em vida, a morte de sua vida, pois tanto Catierina Lvovna Izmáilova quanto
Sônia morrem, além de sua imagem ficar comprometida perante os detentos que
seguem para a Sibéria. O fim de Lady Macbeth, de Shakespeare, é seu suicídio em
seu castelo; a prisão de Lady Macbeth, de Leskov, começa em sua casa, quando
vigiada por dois guardas, após testemunha ver a morte de Fiédia, e termina com
seu suicídio (e também seu último assassinato, pois leva consigo Sônia). Como
diz Hécate, a deusa da feitiçaria e governante das três feiticeiras da peça Macbeth, “A confiança é o maior inimigo
dos mortais.”. Esta sentença clássica serve para os dois textos e, deste modo,
o intertextualismo que Leskov faz com Shakespeare torna-se primoroso, pois Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk
torna-se destacada obra do autor russo, contemporâneo de Dostoiévski e de
Tolstói.
No
caso de Catierina Lvovna Izmáilova, o agravante é, também, o da casa onde mora
ser tipicamente patriarcal, não somente pelos conceitos exigidos pela sociedade
russa daquela época do século XIX, como pela ausência de outra figura feminina
que possa, com Catierina Lvovna Izmáilova, estabelecer contato mais sensível.
Este é um ponto interessante de o leitor notar no mundo fechado da esposa de
Zinóvi: esta vive sozinha em seu mundo feminino. O primeiro problema a atingir
Catierina Lvovna Izmáilova é o tédio e a melancolia, condições que levaram
outras protagonistas da literatura universal a se atirarem de cabeça na
literatura romântica. Leskov faz Catierina Lvovna Izmáilova ser diferente de
tantas moças leitoras de sua época, pois ela não busca na literatura consolo,
uma vez que tem a realidade para servi-la. O segundo problema é a ausência do
amor na vida desta criatura, assim como, o terceiro problema em sua vida ser a
falta de liberdade. Neste ponto da narrativa, a ausência do marido Zinóvi já
não é lamentada, pois, segundo o argumento de Catierina Lvovna Izmáilova, é um
a menos a mandar e a esculachar. No Capítulo
Segundo, com o problema no moinho, Zinóvi vê-se na condição de trabalhar
mais, ausentando-se definitivamente de sua casa. Aí um paralelo para a enclausurada
Catierina Lvovna Izmáilova: como o sogro está trabalhando na cidade, ela fica
sozinha em sua própria casa. Resolve, então, também sair de casa, deslocando-se
para o jardim. No quintal, há trabalhadores, há algazarra, há brincadeira, há
liberdade e outro modo de viver, além, é claro, do conquistador capataz
Serguiêi Filípitch.
Para o leitor, o rumo do enredo parece que ficará, apenas, no velho e
tradicional adultério, mas, não, pois a literatura leskoviana surpreenderá, com
agitação, com psicologia, com psicopatologia e sequência de assassinatos,
ingredientes estes comandados por uma cega paixão e um apelo de inferioridade
que Serguiêi Filípitch não suporta para si e para a sua condição de homem
diferenciado, segundo julga, dos demais homens: afinal, Serguiêi Filípitch sabe amar…
Será
a paixão de um homem sedutor a provocar uma mulher sem paixão em sua casa que
engolirá o enredo com assassinatos e acúmulo de tragédias: há quatro
assassinatos e um suicídio no enredo. O deslumbramento e a submissão de Catierina
Lvovna Izmáilova por Serguiêi Filípitch aprofunda e liberta a psicologia alterada de uma
mulher que se propõe alcançar o poder pela ganância. A submissão inicial no
mundo de Zinóvi não é diferente da submissão que Catierina Lvovna Izmáilova
estabelece com Serguiêi Filípitch, com a diferença que de passiva passa, a heroína, a
ser ativa. Para fazer também seu amante ascender socialmente, insistência por
ele também trabalhada, Catierina Lvovna Izmáilova não mede seus limites e, se
constrói limites, estes são para eliminar qualquer tipo de obstáculo que venha
a interferir em sua nova vida: cria mentiras, realiza matanças e serve à cega
paixão. Sua indiferença à família, à sociedade, à filha e à vida faz de seu
personagem um tipo definido de patologia que descrê das bases de qualquer
estrutura social. As atitudes de Catierina Lvovna Izmáilova é provida pelas
piores atitudes dos homens em sociedade que atrofiam o mundo das mulheres.
Catierina Lvovna Izmáilova herdou para conquistar o poder o pior do gênero
masculino para conquistar o mundo das mulheres no século XIX. Esta metáfora
leskoviana é surpreendente como tema rompedor de uma literatura que anarquiza,
em geral, o mundo das mulheres por retratar a realidade social.
A
religiosidade não é esquecida por Leskov, com suas tradições tipicamente
russas. Fiédia lê, instantes antes de sua morte, o livro do santo que mais
gosta, no caso, São Teodoro de Stratilato; sua bábuchka vai à missa; os trabalhadores, também; assim como há o
místico, o sobrenatural, o sonho e o pesadelo, a premonição, a culpa e a pureza
da infância indefesa com seus medos. Enquanto isso, Catierina Lvovna Izmáilova
e Serguiêi Filípitch
evitam a religião. A cena do assassinato do menino Fiédia é dolorosa de se ler.
O receio da criança e sua desconfiança eternizam, no leitor, a covardia do
mundo dos homens frente ao mundo inocente das crianças. A cena descrita causa
lástima no leitor.
A
inferioridade de Serguiêi Filípitch fomenta o caráter social na novela Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.
Este rapagão sedutor lembra com insistência, à sua amante, de sua inferioridade
e do desrespeito que nutrem por ele. Desta forma, Catierina Lvovna Izmáilova
garante que o transformará em comerciante. O enredo centraliza exatamente este
ponto das seguintes diferenças sociais: há comerciantes, os antigos patrões de
Serguiêi Filípitch,
os trabalhadores, parentes dos Izmáilov, a pobre moça agora nobre pelo
casamento com um comerciante e, finalmente, um homem insatisfeito com sua
condição social. No final da narrativa, o narrador dispara esta: “O mais
desolador dos quadros: um punhado de pessoas, arrancadas do mundo e privadas de
qualquer sombra de esperança em um futuro melhor, afunda na lama negra e fria
de uma estrada de terra batida.”, em relação aos degredados. Serguiêi Filípitch já havia sido demitido de casa servida
anteriormente por ter se envolvido com a patroa. Na nova casa, no caso a de
Zinóvi, envolve-se, também, com a patroa, levando às últimas consequências seu
desejo de mundança de status social.
Sua tentativa de mudar de status
social é premeditada. Serguiêi Filípitch utiliza seu sensualismo e seu poder de sedução (suas
únicas armas) para ascender socialmente (que coisa atual!!!!!). Sua beleza é
sua superioridade, seu uso é a artimanha para conquistar alguém frágil no
amor. Conquistado seu objeto de desejo e punido não só pela rapidez da
conquista como pela perda desta conquista, não se envergonha de traduzir a
maior das cafajestices: seu desdém à mulher que o levou a ascender social e
criminalmente. Ela reconhece, ao menos, que matou por ele.
A
natureza. Lírica e furiosa, é esplendidamente trabalhada por Leskov. Aí o
diálogo criado pelo autor torna sua novela ainda mais próxima do genial da
peça de Shakespeare. Somente um ótimo escritor tem a capacidade de construir
este intertextualismo, adaptando para a cultura e o contexto de sua própria
realidade e de seu tempo e cultivando a tragicidade das intenções dos
personagens num ambiente diverso dos castelos shakespereanos. Leskov explora a
neve, a lama, a chuva, o jardim, as ondas furiosas e violentas do Volga, e até “Os
vidros das janelas começam a degelar e lacrimejar.” antes do assassinato do menino Fiédia. Leskov não se
contenta com as rápidas descrições, pois ambienta a natureza com o desenvolver
das cenas e das ações dos personagens. O lirismo bucólico condiz com a paixão e
o amor do casal amante; a furiosa natureza, com a punição do casal assassino. O
desfecho que Catierina Lvovna Izmáilova dá a sua indignação é apoiada pelo Volga:
este traz ao delírio da jovem os três mortos de Catierina Lvovna Izmáilova –
Borís, Zinóvi e Fiédia. O vagalhão do Volga é como o ressuscitar daqueles
mortos no imaginário da assassina. A impetuosidade do Volga e de Catierina
Lvovna Izmáilova concluem o relato, com a força demoníaca de uma mulher
adulterina que, traída também, perde a mínima capacidade de se integrar à
sociedade que nunca a integrou realmente. De fato, para Catierina Lvovna
Izmáilova, “não existia a luz nem a
escuridão, nem o mal nem o bem, nem o tédio nem a alegria; ela não compreendia
nada, não amava ninguém, não amava nem a si mesma.”.
terça-feira, 25 de outubro de 2016
O ETERNO MARIDO, de Fiódor Dostoiévski
“Os grandes pensamentos originam-se mais de um grande sentimento do que uma grande inteligência.”
(Páviel Pávlovitch Trussótzki
lembrando frase dita
por Alieksiéi Ivânovitch
Vieltchâninov quando amigos em T.)
No
ano de 1869, Dostoiévski passa ainda por percalços econômicos, em Dresden, e
oferece uma novela curta para o editor Strakov. Inicia então o texto e termina
por estendê-lo mais do que inicialmente imagina. O tema, então bastante em voga
na literatura ocidental, em especial a francesa, trata das relações entre um
marido, sua mulher e seu amante. As origens deste romance não são totalmente
claras, embora talvez a relação mais possível seja a reminiscência de
Dostoiévski quando em Semipalatinski, depois dos quatro anos que vive confinado
na prisão de Omsk. Na ocasião, seu amigo, o barão Vrangel, mantém um caso com
uma mulher casada com um general, no caso, a sedutora e voluptuosa senhora E.
I. Guiérngross. Dostoiévski também vive algo próximo a este tipo de enrascada,
pois ao namorar Mária Dmítrievna, esta, em determinado momento, viaja e tem um
relacionamento com um amante antes de casar com Dostoiévski. Em suas memórias,
Anna Grigoriévna Dostoiévskaia, a segunda esposa do escritor, faz comentário do
caráter autobiográfico de O eterno
marido, referindo-se no que consta ao anedótico.
Em
O eterno marido, as complicações se acentuam quando da descoberta do marido de Natália
Vassílievna Trissótzkaia, Páviel Pávlovitch Trussótzki, de cartas que a mulher
trocava com seus amantes, descobrindo desta forma sua infelicidade. Entretanto,
Natália Vassílieva se encontra morta quando desta descoberta. O marido resolve,
então, partir com sua filha Lisa para São Petersburgo. Alugando quarto em
hospedagem de certo hotel, passa a seguir pelas ruas um antigo amigo que permanece,
durante um ano, na província que Natália e Páviel moravam, no caso, a província
de T. Alieksiéi Ivânovitch Vieltchâninov, na ocasião, aproximara-se intimamente
do casal e trai o amigo com a esposa deste. Natália Vassílieva, entretanto, se
apaixona por um oficialzinho, despachando o antigo amante de T. Alega a este
estar grávida e, para não levantar suspeitas do marido, Vieltchâninov deve
deixar o local e retornar meses depois. Em carta endereçada, mais tarde, a
Vieltchâninov, afirma a este a não procurá-la mais, pois se encontra apaixonada
por outro amante. Conclui, na carta endereçada, que a gravidez foi apenas
suspeita não confirmada. No final da história, o leitor sabe que as coisas não
se deram desta forma, pois depois de Páviel Pávlovitch Trussótzki ter tentado esfaquear
Vieltchâninov, deixa a este envelope com uma carta amarelada pelo tempo. Nesta,
que não foi enviada a Vieltchâninov por Natália, esta afirma que nasceu do
relacionamento deles uma criança, no caso Lisa, filha de Vieltchâninov. Esta
menina seria a prova de toda uma amizade entre os ex-amantes. Misteriosamente,
Natália Vassílieva não envia esta carta ao ex-amante, preferindo enviar aquela
que informa seu novo amante e o alarme falso da gravidez.
Embora
com críticas negativas na época, há também elogios a’O eterno marido, fazendo com que diversos críticos, incluindo
contemporâneos, apontem o romance como uma das obras mais bem acabadas de
Dostoiévski, uma vez que a técnica narrativa aprimorada e desenvolvida durante
os capítulos promove o suspense e o psicologismo absurdamente equilibrado, em
especial, no relacionamento entre o “eterno marido” e o “eterno amante”. Alguns
críticos apontam também para a dificuldade de Páviel Pávlovitch ter uma vida
constituída fora do casamento, assim como o final do romance sustenta a
incapacidade inversa de Vieltchâninov de se ausentar de ser um libertino
amante, embora mais razoável com a aprendizagem recebida do episódio de Páviel
e Natália do que sua libertinagem no início do enredo.
Desde
o primeiro capítulo, entretanto, alguns enigmas corroboram para o
entrelaçamento esquisito entre os dois homens (marido e amante), numa caça
entre “rato-e-gato” que assume, também, alguns pontos patéticos e engraçados,
embora dramatizados quando da psicologia do humilhado e ofendido marido. A
intriga ganha força, principalmente, pela capacidade de Dostoiévski apresentar
o lado humano estraçalhado do marido corneado (há cena que ele imita cornos em
sua cabeça!) pela esposa e por aquele que ele algum dia julgou seu melhor
amigo. A pose de Vieltchâninov vai murchando conforme a engenharia de Páviel
Pávlovitch vai engendrando o ex-amante de Natália Vassílieva, usando,
impiedosamente a menina Lisa em suas maquinações. Do ódio ao amor incontido pela
criança, Páviel tortura psicologicamente “sua filha” para se vingar de
Vieltchâninov, o verdadeiro pai, também ao odiá-lo e ao amá-lo, exemplificado
quando pede um beijo do rival e quando cuida este em sua doença. Lisa ocupa
parte significativa do enredo, não somente por ser parcela do enigma proposto
por Dostoiévski, como pelo sofrimento que vive. Termina por morrer e marcar
consideravelmente seu legítimo pai, embora, no final do enredo seja lembrada
por Páviel Pávlovitch. A psicologia dos dois postulantes à dialética,
ultrapassa a discussão em busca da verdade vivida no passado no momento da luta
corporal no quarto de Vieltchâninov, embora, mais tarde, Vieltchâninov, no
capítulo “Análise”, considere a possibilidade de Páviel, “o homem do crepe do
chapéu”, ter o agredido sem querer, sem a intenção primeira do assassinato,
embora querendo matá-lo. Portanto, um assassino sem querer, pensa
Vieltchâninov: “Pessoas desse gênero – pensou -, pessoas exatamente desse tipo,
que, um instante antes, não sabem se vão matar ou não, assim que apanham uma
faca nas mãos trêmulas e mal sentem o primeiro borrifo de sangue cálido sobre
os dedos, não apenas matam, mas cortam completamente a cabeça, ‘fora de uma
vez’, como dizem os forçados. É isso.”. Neste ponto, Dostoiévski discute a
questão do crime e do criminoso, anteriormente trabalhada em Recordações da casa dos mortos (1861) e
Crime e castigo (1866) e,
posteriormente, em Os irmãos Karamázov (1880).
O “homem do subsolo” se vê na dinâmica da contradição, tanto do discurso de
Páviel Pávlovitch como no de Vieltchâninov. Alguns críticos apontam para uma
discussão mais ampla proposta por Dostoiévski em O eterno marido, no caso a dimensão da cultura russa estabelecida
por personalidades mansas e ferozes. Considerados os nomes dos protagonistas,
Vieltchâninov sugere “grandeza e magnificência”, enquanto que Trussótzki,
“covardia”. Os diálogos entre ambos é de uma perfeição inimaginável, se
consideradas as sugestões e o velamento proposto entre o que um espera que se
diga para, o outro, poder dizer o que deve dizer para não entregar o jogo que
estão jogando enquanto, por exemplo, marido, amante e “pais” de Lisa. O “eterno
marido” Páviel Pávlovitch se concretiza pela necessidade de ter esposa e noiva
ao longo da narrativa, nas figuras de Natália Vassiliévna, Nadiejda
Fiedossiéievna (possível noiva) e, finalmente, Olimpiáda. Um acordo tácito se
concretiza no último capítulo, quando da negativa de Vieltchâninov de visitar o
casal Páviel e Olimpiáda/Lípotchka. Vieltchâninov, do início da narrativa, com
sua situação financeira precária por ter torrado heranças recentemente
recebidas, com sua vida libertida e seus gastos excessivos e sua aparência de
conquistador inconsequente, ao fim do enredo, com uma herança recebida,
torna-se mais criterioso para não dilapidar seu patrimônio, embora continue a
viajar para conhecer e conquistar algumas senhoras necessárias.
sábado, 24 de setembro de 2016
DOUTOR JIVAGO, de Boris Pasternak
A história dos Jivagos inicia
o romance Doutor Jivago (1957), de Boris Pasternak, mais
precisamente com uma morte, a de Maria Nikolaievna, mãe do menino Iúri
Andreevitch Jivago, e termina com a morte deste menino, cerca de uma década
antes, da cronologia final do enredo, já como adulto: o doutor Jivago. Anterior
à Revolução de 1917 na Rússia, o pai de Iúri perde toda a sua fortuna por ser
um homem farrista e irresponsável. Empresas da família são liquidadas, pois
“havia a manufatura Jivago, o banco Jivago, as Casas Jivago, o método Jivago de
dar o nó e prender a gravata com o alfinete; até mesmo um pastelão redondo,
parecido com bolo coberto de glacê, se chamava Jivago. E houve um certo tempo
em Moscou em que se podia gritar para o cocheiro ‘para Jivago!’, como se fosse
‘para onde Judas perdeu as botas!’, e ele o levava em seu trenó para os confins
do mundo.”. O pai de Iúri Jivago comete suicídio induzido por seu advogado,
Victor Komarovski (personagem que se sustenta ao longo da narrativa como alguém
sujo e intocável, enquanto que Jivago, Larissa e Pacha Antipov são liquidados),
no mesmo trem que está o menino Gordon, que no final do enredo estará com o
decadente Iúri Jivago e que lerá, junto com Dudorov, o manuscrito do livro de
Jivago. A simbologia está feita por Pasternak para o tipo de família russa
antes da Revolução de 1917 em tempos de czarismo. Estes “bons tempos” da
aristocracia russa – e moscovita – têm seus dias contados, estrangulamento
social não mais sustentado pela elite decorrente de um somatório de abusos
contra as condições de um povo sofrido e que não conseguia mais se articular no
plano social do campesinato e do urbanismo. Se todo o poderio econômico dos
Jivagos está em Moscou, será esta mesma Moscou o cenário final do romance de
Pasternak.
Doutor Jivago é romance
moscovita, embora o painel histórico construído por Boris Pasternak invada o
interior da Rússia e precise mais pontualmente a Sibéria e outras regiões. O
autor também não deixa de lado anos depois da morte do doutor Jivago, para
descrever as atrocidades da Segunda Guerra, os alemães, os campos de concentração
(os Gulag) e os assassinatos sumários dos judeus. Para isso, resgata duas
figuras importantes na vida de Iúri Jivago: Gordon e Dudorov que, se não
tiveram a dualidade ideológica de Jivago, é porque aderiram as sistema da
Revolução Russa e, graças a esta, conseguiram títulos militares. A ambiguidade
ideológica de Iúri Jivago é a autobiografia apontada por uma série de críticos
para Pasternak ou, a de Pasternak para com Iúri Andreevitch Jivago.
O próprio
autor, que anterior à Segunda Guerra Mundial via-se como poeta, pois
considerava sua atividade de prosador como secundária, admite, com a escrita de
Doutor Jivago, sua obra mais
importante. À parte disto, é perceptível o intimismo lírico particular, elo
autobiográfico, também, em nível da realização artística de Pasternak, pois a
poeticidade construída pelo autor nas inúmeras descrições da natureza russa
ganha um colorido singular ao ponto de se aliar com o propósito maior da obra
(segundo seu autor) que é o de registrar os acontecimentos internos da vida espiritual
da Rússia. Se Pasternak não foi um entusiasta dos princípios ideológicos da
Revolução de 1917, também não a negou veementemente como fizeram diversos
outros escritores russos. Escritor russo e soviético, na melhor expressão do
termo literário, Pasternak e Jivago deixam bastante claro suas intenções
durante a narrativa, seja pelo discurso de Iúri Jivago, assim como a condução
narrativa (libertária) de seu narrador em 3a pessoa. Um libelo não
contra alguém específico, mas para contra qualquer sistema que tira do homem a
condição de pensar, de ser liberto, de lidar com a racionalidade e de desfrutar
a vida de modo sensato, lírico e intelectual. Daí, então, surge o dilema da
história da humanidade, pois não somente da Rússia prerrevolucionária e revolucionária.
Qual a medida justa, humana e confortavelmente mais digna dos direitos dos
homens? Qual ideologia, de fato, ao sair do papel garante a igualdade entre os
homens e a diminuição das injustiças sociais? A Rússia do século XIX já não
mais se permite; a Rússia da Revolução Russa de 1917 já não mais se permitiu.
Mas como o homem é o lobo do homem (expressão popular utilizada no enredo), a
corrupção social e particular está com o poder e, com ele, a escolha de
proteção individual. Iúri Jivago sobrou nesta transição dos séculos das Rússias
czarista e do proletariado. Ficou em área de inaceitabilidade social, pois não
aderiu completamente ao sistema soviético, assim como não conseguiu sair do
país. Neste ínterim curto de sua vida (morre com pouco mais de 40 anos), perdeu
e ganhou famílias, ganhou e perdeu a medicina, ganhou e perdeu amigos, ganhou e
perdeu o amor, perdeu e ganhou o social, perdeu e ganhou a consciência de sua
decadência dentro de uma sociedade já sem escrúpulos morais. De intelectual da
medicina, Iúri Jivago se agarra desesperadamente na literatura, possibilidade
única que enxergou para se imortalizar num sistema que mortalizava as pessoas
que se afastavam da intelectualidade do sistema soviético. Estaria aí a vida de
Boris Pasternak? Certamente. Aquele filho Iúri Jivago (de um pai falido e
suicida), depois da Revolução de 1917, perde o que o seu sustento como médico
lhe dá para sustentar a sua família, num ciclo rápido, assim como as
consequências da revolução, até a sua morte em bonde de Moscou, com doença
hereditária da própria mãe, fechando, desta forma, um segundo ciclo, agora, com
as mortes de mãe e filho (em épocas distintas) apresentadas no início e no fim
do enredo. No crescimento da história dos Jivago e, em especial, de Iúri Jivago,
a ênfase mais para o final do romance da figura do meio-irmão de Iúri, Ievgraf
Jivago, homem misterioso, endinheirado e que aderiu ao sistema soviético ao
ponto de se tornar general. Aí outro ponto notável recuperado por Pasternak:
independente da adesão ao sistema dos sovietes, homens como Iúri Jivago vivem
às custas deste mesmo sistema, quando da sorte de algum membro familiar estar
usufruindo das benesses de um governo. O meio-irmão de Iúri dá o sentido,
também, da meia-vida de Iúri Jivago, meio intelectual do passado, meio adepto e
vítima do presente. A simbologia do meio-irmão é a de aderência aos créditos de
uma ideologia que continua (e parece que sempre continuará) a plantar
privilégios e a de proteger a sua própria família.
Iúri Jivago
constrói elementos sólidos em sua vida: a medicina (e pesquisas científicas), a
família, a liberdade e a literatura. Tudo pode ser dito que em vão, pois a
medicina ele abandona, a família ele perde para reconstruir novamente e voltar
a perder (Tônia e seu filho Sacha e sua filha Macha), Larissa (e sua filha
Tatiana com Iúri) e Marina (com suas duas filhas, Kapitolina e Klachka) e a liberdade aparada a cada minuto de sua
existência (inadequação ao emprego, prisão pelos guerrilheiros, andanças
miseráveis por cidades em ruínas, dependência econômica e de pensamento em
Moscou). Somente a literatura de Iúri Jivago sobrevive, com seus poemas (no
final do livro), com seu diário, com seus livrinhos impressos por Vácia, por
seu “Brincando de ser gente”, por seus poemas dentro de seus sonhos e,
finalmente, por seu livro/romance lido pelos amigos Gordon, Dudorov e pelos
leitores de Boris Pasternak.
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