A história dos Jivagos inicia
o romance Doutor Jivago (1957), de Boris Pasternak, mais
precisamente com uma morte, a de Maria Nikolaievna, mãe do menino Iúri
Andreevitch Jivago, e termina com a morte deste menino, cerca de uma década
antes, da cronologia final do enredo, já como adulto: o doutor Jivago. Anterior
à Revolução de 1917 na Rússia, o pai de Iúri perde toda a sua fortuna por ser
um homem farrista e irresponsável. Empresas da família são liquidadas, pois
“havia a manufatura Jivago, o banco Jivago, as Casas Jivago, o método Jivago de
dar o nó e prender a gravata com o alfinete; até mesmo um pastelão redondo,
parecido com bolo coberto de glacê, se chamava Jivago. E houve um certo tempo
em Moscou em que se podia gritar para o cocheiro ‘para Jivago!’, como se fosse
‘para onde Judas perdeu as botas!’, e ele o levava em seu trenó para os confins
do mundo.”. O pai de Iúri Jivago comete suicídio induzido por seu advogado,
Victor Komarovski (personagem que se sustenta ao longo da narrativa como alguém
sujo e intocável, enquanto que Jivago, Larissa e Pacha Antipov são liquidados),
no mesmo trem que está o menino Gordon, que no final do enredo estará com o
decadente Iúri Jivago e que lerá, junto com Dudorov, o manuscrito do livro de
Jivago. A simbologia está feita por Pasternak para o tipo de família russa
antes da Revolução de 1917 em tempos de czarismo. Estes “bons tempos” da
aristocracia russa – e moscovita – têm seus dias contados, estrangulamento
social não mais sustentado pela elite decorrente de um somatório de abusos
contra as condições de um povo sofrido e que não conseguia mais se articular no
plano social do campesinato e do urbanismo. Se todo o poderio econômico dos
Jivagos está em Moscou, será esta mesma Moscou o cenário final do romance de
Pasternak.
Doutor Jivago é romance
moscovita, embora o painel histórico construído por Boris Pasternak invada o
interior da Rússia e precise mais pontualmente a Sibéria e outras regiões. O
autor também não deixa de lado anos depois da morte do doutor Jivago, para
descrever as atrocidades da Segunda Guerra, os alemães, os campos de concentração
(os Gulag) e os assassinatos sumários dos judeus. Para isso, resgata duas
figuras importantes na vida de Iúri Jivago: Gordon e Dudorov que, se não
tiveram a dualidade ideológica de Jivago, é porque aderiram as sistema da
Revolução Russa e, graças a esta, conseguiram títulos militares. A ambiguidade
ideológica de Iúri Jivago é a autobiografia apontada por uma série de críticos
para Pasternak ou, a de Pasternak para com Iúri Andreevitch Jivago.
O próprio
autor, que anterior à Segunda Guerra Mundial via-se como poeta, pois
considerava sua atividade de prosador como secundária, admite, com a escrita de
Doutor Jivago, sua obra mais
importante. À parte disto, é perceptível o intimismo lírico particular, elo
autobiográfico, também, em nível da realização artística de Pasternak, pois a
poeticidade construída pelo autor nas inúmeras descrições da natureza russa
ganha um colorido singular ao ponto de se aliar com o propósito maior da obra
(segundo seu autor) que é o de registrar os acontecimentos internos da vida espiritual
da Rússia. Se Pasternak não foi um entusiasta dos princípios ideológicos da
Revolução de 1917, também não a negou veementemente como fizeram diversos
outros escritores russos. Escritor russo e soviético, na melhor expressão do
termo literário, Pasternak e Jivago deixam bastante claro suas intenções
durante a narrativa, seja pelo discurso de Iúri Jivago, assim como a condução
narrativa (libertária) de seu narrador em 3a pessoa. Um libelo não
contra alguém específico, mas para contra qualquer sistema que tira do homem a
condição de pensar, de ser liberto, de lidar com a racionalidade e de desfrutar
a vida de modo sensato, lírico e intelectual. Daí, então, surge o dilema da
história da humanidade, pois não somente da Rússia prerrevolucionária e revolucionária.
Qual a medida justa, humana e confortavelmente mais digna dos direitos dos
homens? Qual ideologia, de fato, ao sair do papel garante a igualdade entre os
homens e a diminuição das injustiças sociais? A Rússia do século XIX já não
mais se permite; a Rússia da Revolução Russa de 1917 já não mais se permitiu.
Mas como o homem é o lobo do homem (expressão popular utilizada no enredo), a
corrupção social e particular está com o poder e, com ele, a escolha de
proteção individual. Iúri Jivago sobrou nesta transição dos séculos das Rússias
czarista e do proletariado. Ficou em área de inaceitabilidade social, pois não
aderiu completamente ao sistema soviético, assim como não conseguiu sair do
país. Neste ínterim curto de sua vida (morre com pouco mais de 40 anos), perdeu
e ganhou famílias, ganhou e perdeu a medicina, ganhou e perdeu amigos, ganhou e
perdeu o amor, perdeu e ganhou o social, perdeu e ganhou a consciência de sua
decadência dentro de uma sociedade já sem escrúpulos morais. De intelectual da
medicina, Iúri Jivago se agarra desesperadamente na literatura, possibilidade
única que enxergou para se imortalizar num sistema que mortalizava as pessoas
que se afastavam da intelectualidade do sistema soviético. Estaria aí a vida de
Boris Pasternak? Certamente. Aquele filho Iúri Jivago (de um pai falido e
suicida), depois da Revolução de 1917, perde o que o seu sustento como médico
lhe dá para sustentar a sua família, num ciclo rápido, assim como as
consequências da revolução, até a sua morte em bonde de Moscou, com doença
hereditária da própria mãe, fechando, desta forma, um segundo ciclo, agora, com
as mortes de mãe e filho (em épocas distintas) apresentadas no início e no fim
do enredo. No crescimento da história dos Jivago e, em especial, de Iúri Jivago,
a ênfase mais para o final do romance da figura do meio-irmão de Iúri, Ievgraf
Jivago, homem misterioso, endinheirado e que aderiu ao sistema soviético ao
ponto de se tornar general. Aí outro ponto notável recuperado por Pasternak:
independente da adesão ao sistema dos sovietes, homens como Iúri Jivago vivem
às custas deste mesmo sistema, quando da sorte de algum membro familiar estar
usufruindo das benesses de um governo. O meio-irmão de Iúri dá o sentido,
também, da meia-vida de Iúri Jivago, meio intelectual do passado, meio adepto e
vítima do presente. A simbologia do meio-irmão é a de aderência aos créditos de
uma ideologia que continua (e parece que sempre continuará) a plantar
privilégios e a de proteger a sua própria família.
Iúri Jivago
constrói elementos sólidos em sua vida: a medicina (e pesquisas científicas), a
família, a liberdade e a literatura. Tudo pode ser dito que em vão, pois a
medicina ele abandona, a família ele perde para reconstruir novamente e voltar
a perder (Tônia e seu filho Sacha e sua filha Macha), Larissa (e sua filha
Tatiana com Iúri) e Marina (com suas duas filhas, Kapitolina e Klachka) e a liberdade aparada a cada minuto de sua
existência (inadequação ao emprego, prisão pelos guerrilheiros, andanças
miseráveis por cidades em ruínas, dependência econômica e de pensamento em
Moscou). Somente a literatura de Iúri Jivago sobrevive, com seus poemas (no
final do livro), com seu diário, com seus livrinhos impressos por Vácia, por
seu “Brincando de ser gente”, por seus poemas dentro de seus sonhos e,
finalmente, por seu livro/romance lido pelos amigos Gordon, Dudorov e pelos
leitores de Boris Pasternak.
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