O título O sonho de um homem ridículo apresenta-se de forma provocativa e
enigmática, respectivamente, por considerar a construção de um texto a um homem
ridículo, ou seja, que causa, no mínimo, riso, e por ser um sonho que encobre,
por si mesmo em nível semântico, um entendimento real e que se possa deduzir
algo mais concreto, fora o que se compreende de um sonho ou, ainda, de algo
imaginário e, por extensão, distante um tanto, por oposição, da realidade.
Em nível dos
personagens, o texto envolve um considerável solilóquio em torno dos
pensamentos imaginários e não imaginários do protagonista-narrador-suicida. Sua
relação com alguns outros personagens é de total apatia e de indiferença, ao
menos na primeira parte que se pode concluir como a dos dois primeiros
capítulos, já que a partir do terceiro, há a descrição do sonho. Neste sonho, a
relação do protagonista-narrador é com os homens felizes numa espécie de Idade
de Ouro da humanidade. Na primeira parte, no plano da vida concreta do
protagonista-narrador, as relações (ainda que mínimas) deste é com um
engenheiro e dois conhecidos deste; um capitão reformado; uma senhoria e uma
menina.
Dostoiévski escreve O sonho de um homem ridículo no ano de 1877. Está em sua fase de
maturidade literária, tendo já escrito Memórias
do subsolo (1864), Crime e castigo (1866),
O idiota (1868), Os demônios (1871), O adolescente (1875) e Uma criatura dócil (1876). Esta última
novela aparece no Diário de um escritor
publicado e redigido por Dostoiévski, em plena atividade jornalística do
escritor. Da mesma maneira, aparece, em abril, neste Diário de um escritor, O
sonho de um homem ridículo, com o subtítulo “Relato fantástico” e divisão
em cinco partes. O narrador é o protagonista. A partir do terceiro capítulo, este
conta o sonho que sonhou. No fim do relato, há a retomada da descrição e da
reflexão fora do sonho, embora com a convicção deste mesmo sonho para se
construir algo digno para a humanidade.
A proximidade do
estilo técnico da narração de O sonho de
um homem ridículo lembra o texto anterior, de 1864, Memórias do subsolo. Eis o início do primeiro capítulo:
Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem
desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha
doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me
tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao
extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou
suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou
supersticioso). Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não
compreendeis isto. Ora, eu compreendo.
(tradução do russo de Boris Schnaiderman;
Editora 34)
O início, capítulo 1,
de O sonho de um homem ridículo,
assim apresenta-se:
Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de
louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão
ridículo quanto antes. Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos
para mim, e até quando riem de mim – aí é que são ainda mais queridos. Eu
também riria junto – não de mim mesmo, mas por amá-los, se ao olhar para eles
não ficasse tão triste. Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço
a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão
entender. Não, não vão entender.
(tradução do russo de Vadim Nikitin; Editora
34. Todas as citações deste trabalho são retiradas desta tradução)
Apesar do tom
similar, o texto de Memórias do subsolo,
principalmente na Primeira Parte, ataca a Rússia que defende a razão
entre os homens como o futuro da humanidade, em que o otimismo triunfaria, pois
o mundo e as relações dos homens estariam embasadas na coerência e no racional.
Os problemas do homem e da humanidade estariam, desta maneira, solucionados
pela ordem racional, científica e matemática dos homens diretos e de ações,
como pensavam Bielínski e Tchernichévski, este último em seu romance O que fazer?. Para Dostoiévski, que havia sido preso e levado à Sibéria, o homem
é livre e não um autômato e, como desenvolve nas Memórias do subsolo, o homem não é “teclas de piano” e, mesmo se
fosse comprovado que o homem fosse “teclas de piano”, ele, o homem,
reinventaria a destruição e criaria novos sofrimentos para si mesmo com o
objetivo de também reinventar o prazer da ofensa, do sofrimento, etc. A recusa
de ser autômato é vista na formação do “homem do subsolo” e de
sua resistência a participar de um mundo ordenado pela racionalidade. Ele grita
por uma nova dimensão da ordem, a não-ordem, pois as regras e as evidências
sustentadas pela razão devem ser combatidas. Na Segunda Parte de Memórias do
subsolo, a história se consolida na sucessão de ofensas buscadas pelo
“homem do subsolo”: na taverna com o oficial que joga bilhar; no esbarrão dado
na Avenida Niévski neste mesmo oficial; nos ex-colegas de colégio; no criado
Apolón e, finalmente, culmina com a tragédia do diálogo e da ação perversa e
intraduzível com a prostituta Liza. Em O
sonho de um homem ridículo, há ataque ao conhecimento científico e da
razão, entretanto, com o desenrolar do enredo, o protagonista sai de um estado
de indiferença para um estado de transformação dos homens, diferentemente do
homem do subsolo.
O
sonho de um homem ridículo investe na trajetória oposta ao Memórias do subsolo, se considerada a
apologia do final do texto em relação ao niilismo apresentado no princípio,
mais especificadamente, nos dois primeiros capítulos. No final deste conto, ou
seja, O sonho de um homem ridículo, o narrador tem a convicção, após ter visto a verdade,
de que deve pregar pelo mundo, apesar da descrença dos homens e de suas
relações apoiadas pela ciência. O tom profetizado e religioso de Dostoiévski
torna possível de o homem ter uma vida harmônica e repleta de amor e
consideração pelo outro, removendo o egoísmo, o ciúme, a falta de solidariedade
e a patifaria e canalhice implantadas pela ciência do conhecimento. O tema da
Idade de Ouro, momento de utopia social e de redenção da humanidade,
articula-se a partir de uma vontade do narrador de cometer suicídio até a sua
plenitude da vontade de viver. O tema do suicídio não passa batido por
Dostoiévski, assim como a noção de “não-ser absoluto” é a intenção primária do
narrador.
A segunda parte do texto de O sonho de um homem ridículo, a partir
do terceiro capítulo, aposta na descrição fantástica de um sonho protagonizado
pelo narrador-suicida que, pela primeira vez em sua vida, adormece sentado
frente à mesa de seu cômodo alugado de casa de pensão. Ao sonhar, comete o
suicídio, ao apertar o gatilho contra seu próprio coração. Antes deste sonho, o
narrador-suicida pensa em dar um tiro contra si mesmo na têmpora direita. A
diferença é importante de se revelar, pois da cabeça (da razão) passa-se para o
coração (da emoção). Em Memórias do
subsolo, há junção do coração com a cabeça na concepção de raciocínio do
homem do subsolo.
A trajetória do narrador-suicida (e niilista)
começa com o desentendimento que ele tem com os outros, mais diretamente, com a
indiferença que sente em relação às coisas do mundo. Considerado ridículo por
si mesmo e motivo de risos e chacotas pelos outros, o protagonista tem
consciência de que talvez já tenha nascido ridículo, assim como este sentido de
ser ridículo cresce conforme ele estuda, desde o colégio até à universidade.
Portanto, quanto mais ciência do conhecimento se tem sobre as coisas e mais se
tem compreensão do sentido do mundo, pior o mundo se torna pelo conceito
irredutível de individualidade. O inexorável vence. Desta individualidade,
surgem o ciúme, a desagregação, a segregação e, finalmente, o embate egoístico
entre os homens. A tristeza do narrador-suicida é a de olhar para os outros e
perceber nestes o desconhecimento da verdade. Ele a tem e a conhece em três de
novembro passado, em relação ao relato, em noite tenebrosa, úmida e gélida,
quando perambula pelas ruas em direção a sua casa. Pelo caminho, encontra
menina de cerca de oito anos a pedir ajuda. Ela está toda encharcada.
Dostoiévski mostra, assim como em outras obras, a preocupação que tem com as
crianças e as adversidades que elas enfrentam precocemente. Para que ajudá-la, pensa
o narrador, se indiferente ao mundo ele é e está prestes a cometer o suicídio?
Ele terminando com sua vida, a vida termina para ele. Ignora e grita com a
menina, enxotando-a. Depois, reconhecerá que ela o salvou! Segue seu caminho
até chegar ao seu cômodo. Neste ambiente, indiferente aos moradores dali, adormece
em frente à mesa com o revólver depositado. Há dois meses adquiriu esta arma
com o propósito de terminar com tudo em sua vida ridícula. Para isto, precisa
de um minuto de não indiferença para se matar, minuto este que vem buscando
nestes dois meses. Para quê? Não sabe ao certo, mas está à espera. Neste
momento de alguma reflexão contraditória, o narrador-suicida adormece e sonha
com algo fantástico. Dostoiévski coloca como subtítulo, de O sonho de um homem ridículo, “Relato fantástico”. Em outros relatos,
como Crime e castigo, Os demônios, O adolescente e Os irmãos
Karamázov, sonhos são reveladores de consciência e de ruptura e ligação com
o real e com o real-imaginário. O sonho começa com a morte do protagonista a
partir de seu suicídio. Segue seu enterro e sua condução por um desconhecido
(uma criatura) que o faz voar para fora da terra em busca de local desconhecido
para ele. Se é algum deus ou o deus, para ele pouco importa, niilista como era
na terra em que viveu. De repente, com temor e apreensão, em conversa com o
desconhecido viajante que o acompanha e o leva, o narrador-sonhador é levado
para uma “nova terra”, local este anterior à queda do homem, ou seja, lugar
onde o homem é puro, interage e se comunica com os animais e as plantas,
trabalha pouco, tem filhos que são, para todos, filhos em comum, onde a relação
sexual não é apoiada na volúpia, ambiente em que a morte é algo natural e
aqueles que ficam não choram por aqueles que partem. Esta espécie de paraíso
acolhe o suicida e procura deixá-lo à vontade e tirar-lhe, do rosto, a angústia,
o tormento, o sofrimento e a preocupação, condições para se viver na terra
vivida pelo narrador-suicida. Esta é a verdade que ele encontra e que sabe não
conseguir passar através de simples palavras para os homens em sua terra. Esta
“nova terra” é o duplo da terra. Enfim, o narrador acorda de seu sonho e,
rapidamente, afasta de si o revólver que está em cima da mesa em seu cômodo de
pensão. Revela seu sonho aos poucos conhecidos que possui, mas estes riem e o chamam
de louco. Não compreendem a verdade que ele somente conheceu. Súbito, o
narrador inverte a situação do sonho sonhado por ele: corrompeu, com sua
chegada à “nova terra” aqueles homens puros. Estes tornam-se egoístas e, em
suas individualidades, fazem conchavos, embates, agregações, sustentam-se pelo
ciúme, pela volúpia, etc. Ameaçam a consciência do narrador, pois este
reconhece sua culpa. Ameaçam colocá-lo no hospício. De volta à sua terra,
resolve pregar a verdade que aprendeu. Falar aos homens sobre o amor e a
harmonia é seu objetivo, apesar do desvio que pode sofrer. Não abrirá mão
disso. No fim, sai a procurar a menina de cerca de oito anos que enxotou. Não
desistirá disso. Encerra, deste modo, o relato fantástico com a dimensão dostoievskiana
de metafísica e de religiosidade. Finalmente, encontra a menina.
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