domingo, 21 de agosto de 2016

O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO

O título O sonho de um homem ridículo apresenta-se de forma provocativa e enigmática, respectivamente, por considerar a construção de um texto a um homem ridículo, ou seja, que causa, no mínimo, riso, e por ser um sonho que encobre, por si mesmo em nível semântico, um entendimento real e que se possa deduzir algo mais concreto, fora o que se compreende de um sonho ou, ainda, de algo imaginário e, por extensão, distante um tanto, por oposição, da realidade.   

Em nível dos personagens, o texto envolve um considerável solilóquio em torno dos pensamentos imaginários e não imaginários do protagonista-narrador-suicida. Sua relação com alguns outros personagens é de total apatia e de indiferença, ao menos na primeira parte que se pode concluir como a dos dois primeiros capítulos, já que a partir do terceiro, há a descrição do sonho. Neste sonho, a relação do protagonista-narrador é com os homens felizes numa espécie de Idade de Ouro da humanidade. Na primeira parte, no plano da vida concreta do protagonista-narrador, as relações (ainda que mínimas) deste é com um engenheiro e dois conhecidos deste; um capitão reformado; uma senhoria e uma menina.

Dostoiévski escreve O sonho de um homem ridículo no ano de 1877. Está em sua fase de maturidade literária, tendo já escrito Memórias do subsolo (1864), Crime e castigo (1866), O idiota (1868), Os demônios (1871), O adolescente (1875) e Uma criatura dócil (1876). Esta última novela aparece no Diário de um escritor publicado e redigido por Dostoiévski, em plena atividade jornalística do escritor. Da mesma maneira, aparece, em abril, neste Diário de um escritor, O sonho de um homem ridículo, com o subtítulo “Relato fantástico” e divisão em cinco partes. O narrador é o protagonista. A partir do terceiro capítulo, este conta o sonho que sonhou. No fim do relato, há a retomada da descrição e da reflexão fora do sonho, embora com a convicção deste mesmo sonho para se construir algo digno para a humanidade.

A proximidade do estilo técnico da narração de O sonho de um homem ridículo lembra o texto anterior, de 1864, Memórias do subsolo. Eis o início do primeiro capítulo:

Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso). Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo.
(tradução do russo de Boris Schnaiderman; 
Editora 34)

O início, capítulo 1, de O sonho de um homem ridículo, assim apresenta-se:

Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão ridículo quanto antes. Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos para mim, e até quando riem de mim – aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria junto – não de mim mesmo, mas por amá-los, se ao olhar para eles não ficasse tão triste. Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, não vão entender.

  (tradução do russo de Vadim Nikitin; Editora 34. Todas as citações deste trabalho são retiradas desta tradução)

Apesar do tom similar, o texto de Memórias do subsolo, principalmente na Primeira Parte, ataca a Rússia que defende a razão entre os homens como o futuro da humanidade, em que o otimismo triunfaria, pois o mundo e as relações dos homens estariam embasadas na coerência e no racional. Os problemas do homem e da humanidade estariam, desta maneira, solucionados pela ordem racional, científica e matemática dos homens diretos e de ações, como pensavam Bielínski e Tchernichévski, este último em seu romance O que fazer?. Para Dostoiévski, que havia sido preso e levado à Sibéria, o homem é livre e não um autômato e, como desenvolve nas Memórias do subsolo, o homem não é “teclas de piano” e, mesmo se fosse comprovado que o homem fosse “teclas de piano”, ele, o homem, reinventaria a destruição e criaria novos sofrimentos para si mesmo com o objetivo de também reinventar o prazer da ofensa, do sofrimento, etc. A recusa de ser autômato é vista na formação do “homem do subsolo” e de sua resistência a participar de um mundo ordenado pela racionalidade. Ele grita por uma nova dimensão da ordem, a não-ordem, pois as regras e as evidências sustentadas pela razão devem ser combatidas. Na Segunda Parte de Memórias do subsolo, a história se consolida na sucessão de ofensas buscadas pelo “homem do subsolo”: na taverna com o oficial que joga bilhar; no esbarrão dado na Avenida Niévski neste mesmo oficial; nos ex-colegas de colégio; no criado Apolón e, finalmente, culmina com a tragédia do diálogo e da ação perversa e intraduzível com a prostituta Liza. Em O sonho de um homem ridículo, há ataque ao conhecimento científico e da razão, entretanto, com o desenrolar do enredo, o protagonista sai de um estado de indiferença para um estado de transformação dos homens, diferentemente do homem do subsolo.

O sonho de um homem ridículo investe na trajetória oposta ao Memórias do subsolo, se considerada a apologia do final do texto em relação ao niilismo apresentado no princípio, mais especificadamente, nos dois primeiros capítulos. No final deste conto, ou seja, O sonho de um homem ridículo, o  narrador tem a convicção, após ter visto a verdade, de que deve pregar pelo mundo, apesar da descrença dos homens e de suas relações apoiadas pela ciência. O tom profetizado e religioso de Dostoiévski torna possível de o homem ter uma vida harmônica e repleta de amor e consideração pelo outro, removendo o egoísmo, o ciúme, a falta de solidariedade e a patifaria e canalhice implantadas pela ciência do conhecimento. O tema da Idade de Ouro, momento de utopia social e de redenção da humanidade, articula-se a partir de uma vontade do narrador de cometer suicídio até a sua plenitude da vontade de viver. O tema do suicídio não passa batido por Dostoiévski, assim como a noção de “não-ser absoluto” é a intenção primária do narrador.
A segunda parte do texto de O sonho de um homem ridículo, a partir do terceiro capítulo, aposta na descrição fantástica de um sonho protagonizado pelo narrador-suicida que, pela primeira vez em sua vida, adormece sentado frente à mesa de seu cômodo alugado de casa de pensão. Ao sonhar, comete o suicídio, ao apertar o gatilho contra seu próprio coração. Antes deste sonho, o narrador-suicida pensa em dar um tiro contra si mesmo na têmpora direita. A diferença é importante de se revelar, pois da cabeça (da razão) passa-se para o coração (da emoção). Em Memórias do subsolo, há junção do coração com a cabeça na concepção de raciocínio do homem do subsolo.

A trajetória do narrador-suicida (e niilista) começa com o desentendimento que ele tem com os outros, mais diretamente, com a indiferença que sente em relação às coisas do mundo. Considerado ridículo por si mesmo e motivo de risos e chacotas pelos outros, o protagonista tem consciência de que talvez já tenha nascido ridículo, assim como este sentido de ser ridículo cresce conforme ele estuda, desde o colégio até à universidade. Portanto, quanto mais ciência do conhecimento se tem sobre as coisas e mais se tem compreensão do sentido do mundo, pior o mundo se torna pelo conceito irredutível de individualidade. O inexorável vence. Desta individualidade, surgem o ciúme, a desagregação, a segregação e, finalmente, o embate egoístico entre os homens. A tristeza do narrador-suicida é a de olhar para os outros e perceber nestes o desconhecimento da verdade. Ele a tem e a conhece em três de novembro passado, em relação ao relato, em noite tenebrosa, úmida e gélida, quando perambula pelas ruas em direção a sua casa. Pelo caminho, encontra menina de cerca de oito anos a pedir ajuda. Ela está toda encharcada. Dostoiévski mostra, assim como em outras obras, a preocupação que tem com as crianças e as adversidades que elas enfrentam precocemente. Para que ajudá-la, pensa o narrador, se indiferente ao mundo ele é e está prestes a cometer o suicídio? Ele terminando com sua vida, a vida termina para ele. Ignora e grita com a menina, enxotando-a. Depois, reconhecerá que ela o salvou! Segue seu caminho até chegar ao seu cômodo. Neste ambiente, indiferente aos moradores dali, adormece em frente à mesa com o revólver depositado. Há dois meses adquiriu esta arma com o propósito de terminar com tudo em sua vida ridícula. Para isto, precisa de um minuto de não indiferença para se matar, minuto este que vem buscando nestes dois meses. Para quê? Não sabe ao certo, mas está à espera. Neste momento de alguma reflexão contraditória, o narrador-suicida adormece e sonha com algo fantástico. Dostoiévski coloca como subtítulo, de O sonho de um homem ridículo, “Relato fantástico”. Em outros relatos, como Crime e castigo, Os demônios, O adolescente e Os irmãos Karamázov, sonhos são reveladores de consciência e de ruptura e ligação com o real e com o real-imaginário. O sonho começa com a morte do protagonista a partir de seu suicídio. Segue seu enterro e sua condução por um desconhecido (uma criatura) que o faz voar para fora da terra em busca de local desconhecido para ele. Se é algum deus ou o deus, para ele pouco importa, niilista como era na terra em que viveu. De repente, com temor e apreensão, em conversa com o desconhecido viajante que o acompanha e o leva, o narrador-sonhador é levado para uma “nova terra”, local este anterior à queda do homem, ou seja, lugar onde o homem é puro, interage e se comunica com os animais e as plantas, trabalha pouco, tem filhos que são, para todos, filhos em comum, onde a relação sexual não é apoiada na volúpia, ambiente em que a morte é algo natural e aqueles que ficam não choram por aqueles que partem. Esta espécie de paraíso acolhe o suicida e procura deixá-lo à vontade e tirar-lhe, do rosto, a angústia, o tormento, o sofrimento e a preocupação, condições para se viver na terra vivida pelo narrador-suicida. Esta é a verdade que ele encontra e que sabe não conseguir passar através de simples palavras para os homens em sua terra. Esta “nova terra” é o duplo da terra. Enfim, o narrador acorda de seu sonho e, rapidamente, afasta de si o revólver que está em cima da mesa em seu cômodo de pensão. Revela seu sonho aos poucos conhecidos que possui, mas estes riem e o chamam de louco. Não compreendem a verdade que ele somente conheceu. Súbito, o narrador inverte a situação do sonho sonhado por ele: corrompeu, com sua chegada à “nova terra” aqueles homens puros. Estes tornam-se egoístas e, em suas individualidades, fazem conchavos, embates, agregações, sustentam-se pelo ciúme, pela volúpia, etc. Ameaçam a consciência do narrador, pois este reconhece sua culpa. Ameaçam colocá-lo no hospício. De volta à sua terra, resolve pregar a verdade que aprendeu. Falar aos homens sobre o amor e a harmonia é seu objetivo, apesar do desvio que pode sofrer. Não abrirá mão disso. No fim, sai a procurar a menina de cerca de oito anos que enxotou. Não desistirá disso. Encerra, deste modo, o relato fantástico com a dimensão dostoievskiana de metafísica e de religiosidade. Finalmente, encontra a menina.

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