O MESTRE E MARGARIDA (1929-40)
“… como o homem pode governar se
ele é incapaz de elaborar um plano
mesmo para um prazo pelo menos
razoável. (…) … como o homem pode governar
se ele é incapaz de elaborar um
plano mesmo para um prazo ridiculamente curto,
mil anos, digamos, e nem sequer
pode dar uma garantia sobre o seu dia de amanhã?”
(Woland)
“Nenhum destino, exceto o seu próprio, o
interessa mais.”
(Woland)
“Os
manuscritos não se queimam.”
(Woland)
“o dinheirinho gosta de ser
contado” e “o olho do
dono é o melhor fiscal”
(Fagot-Koroviev)
A Literatura de
Mikhail Afanassiévitch Bulgákov.
Entre
os críticos da obra de Mikhail Bulgákov é comum encontrar-se alusões positivas àquele
que é considerado o destaque da Literatura russa do século XX. A arte literária
de Bulgákov reiteradamente é lembrada pelos críticos por ser o autor de O Mestre e Margarida um especialista da
palavra e um prodigioso articulador estilista. Preocupado com as formas de
criação narrativa e imagística, o autor de Coração
de Cachorro cria espetaculares recursos expressivos com domínio das imagens
audaciosas de sua literatura. O fantástico, assim elaborado por Bulgákov,
extrapola a visão banal da realidade, pois sua visão transcendental e
filosófica denuncia a estrutura social absurda vivida pelo homem. De modo
profundo e amplo, sua obra investe no relato curto, na novela e no teatro. Bulgákov
exerce a sua medicina de 1916 até 1920, quando chega a Moscou em 1921 no mês de
setembro. Dedica-se, então, exclusivamente à literatura a partir de 1919,
abandonando a medicina em definitivo, embora em diversos de seus textos a
medicina seja referência quando não fundamento do enredo. O início literário
dá-se no periódico Nakanunie (A véspera), quando Bulgákov trabalha em
relatos curtos e em folhetins. Do ano de 1922 até 1926, o autor de Malefícios tem intensa produção em
Moscou e em Leningrado, também enquanto correspondente. Colabora no semanário Viestnik (O Mensageiro). Os seus primeiros relatos aparecem em Semana da Ilustração, em 1921, no
periódico Kommunist em Vladikavkaz,
cidade em que Bulgákov é médico e próximo do Exército Branco. Quando a cidade é
ocupada pelo Exército Vermelho, Bulgákov precisa esconder sua relação com o
periódico. Em nível da política, Bulgákov é, segundo seus analistas, um
democrata, não vinculado a nenhuma filiação ideológica. Sua crença reside na
liberdade do homem. Entretanto, o poder tomado pelos bolcheviques é aceito por
Bulgákov, embora mais por resignação do que por convicção, embora o autor de A Ilha Vermelha não abra mão da
individualidade do homem e de sua cultura frente ao poder. Em 1923, Bulgákov
trabalha no periódico Gudok, então
órgão do sindicato dos ferroviários, como corretor dos textos dos operários.
Esta realidade retratada nos textos dos trabalhadores será de extrema
importância para os futuros relatos de Bulgákov ao mencionar este tipo de
realidade. O ano de 1928 coloca fim na NEP. Surge então o Primeiro Plano
Quinquenal. Deste modo, há incentivos para a industrialização do país. Termina
a tolerância comedida de antes para as artes e a literatura, assim como há o
embrutecimento das medidas contra aqueles que não apoiam o sistema. Com este
nefasto crescimento de intolerância, Bulgákov passa a ser um dos perseguidos
pelo Estado. A Associação Russa dos
Escritores Proletários (RAPP) faz uma “caça às bruxas” nos companheiros de
viagem, levando, por exemplo, Máximo Górki (1868-1936) a reagir. Em 1932, a
RAPP termina, reforçando, deste modo, a União
de Escritores Soviéticos em 1934. Não que isto tenha efeito melhor, porque
a literatura passa a depender essencialmente do controle do Estado. Há a
proclamação do “realismo socialista”, termo cunhado por Máximo Górki. Este
“realismo socialista” é definido como “representação verdadeira e
historicamente concreta da realidade durante o desenvolvimento revolucionário”,
que busca “a educação ideológica das massas dentro do espírito socialista.”.
Isto significa que o escritor deve criar de determinado modo e o conteúdo de
sua obra deve expressar a ideologia comunista ou, ao menos, simpatizar com os
princípios comunistas. Desta maneira, a variação estilística e de tendências
deve ser anulada. Escritores e intelectuais tornam-se vítimas de Stálin e de
seu terror. O resultado é o de uma literatura simplificada com seus heróis
comunistas. Górki produz, inicialmente, o gosto pela natureza selvagem e a
busca das paixões primárias, assim como a liberdade do homem. Em uma segunda
etapa de sua literatura, Górki, autor de A
Ralé, A Mãe (1907, primeira obra
do “realismo socialista”), Infância,
Albergue Noturno e Pequenos Burgueses, procura a
consciência social, desviando-se dos vagabundos e voltando-se, principalmente,
para o proletariado. No ano de 1929, Mikhail Bulgákov já é consagrado escritor
na União Soviética.
Alguns Títulos de Mikhail Bulgákov.
Malefícios. Publicação em 1924, portanto, sete anos depois da
revolução bolchevique na Rússia. Eis um dos primeiros escritos de Bulgákov,
dividido em onze capítulos. O fantástico e o satírico, marcas peculiares de sua
produção literária, encontram-se no texto de Malefícios. A crítica direciona-se ao sistema burocrático do
processo por detrás da revolução. O protagonista é vítima de um singular
equívoco, o que faz com que ele venha a se perder na complicada e intrínseca
engrenagem de qualquer burocracia totalitária, fazendo com que o leitor lembre
dos textos de Franz Kafka.
A Guarda Branca. Neste relato de 1925, Bulgákov coloca parte do que foi
testemunha numa série de acontecimentos. Em Kíev, o autor conhece a ocupação
alemã, a ascensão e queda de Skoropadski, a efêmera vitória de Petliura e a
chegada definitiva do Exército Vermelho. Kíev passa, deste modo, de mão em mão
e sofre diversos e sangrentos combates. Bulgákov disse, em certa oportunidade,
que “Según las cuentas de los habitantes de Kiev, se produjeron dieciocho
golpes. Algunos autores de Memorias los fijan en doce. Puedo decir que fueron
exactamente catorce y que diez de ellos los presencié com mis propios ojos.”.
Assim Bulgákov compõe um quadro de horrores: o medo que assola os personagens
(como o engenheiro Lisóvitch), o capitão Talberg e o sol que esquenta, outros
tantos que procuram a paz e a tranquilidade (como Lariósik), outros homens
fiéis por suas causas apesar de lutarem por causas perdidas (como o coronel
Nai-Turs), e os Turbin, presos às suas recordações de infância e adolescência
na casa de número 13 de Alexéievski. Aliás, casa esta em que nasceu Bulgákov e
que, ali mesmo, morreu sua mãe, assim como a de A Guarda Branca.
Coração de Cachorro. Texto de 1925, mas somente publicado em sua versão
original no ano de 1987. Novamente o fantástico ganha força no texto de
Bulgákov. Agora, em Coração de Cachorro,
um famigerado cirurgião, especialista em operações de rejuvenescimento,
transplanta em um cachorro vira-lata a hipófise e as glândulas sexuais de um
homem que acaba de falecer. Entretanto, o resultado é surpreendente, porque o
cachorro transforma-se num homem delinquente ao qual pertenciam os órgãos
transplantados. Frente a este novo problema, o médico especialista se vê
obrigado a realizar nova operação para reparar o erro inicial e eliminar o
perigo social que este ser representa.
Os Ovos Fatais. Este texto de Bulgákov, datado de 1925 e dividido em
doze capítulos, é uma alegoria satírica e científica, tragicômica e
surrealista, como apontam alguns críticos. A crítica do texto reside na
formalização da burocracia e contra a ignorância endêmica do poder. Críticos aliados
ao poder stalinista consideravam diversas obras de Bulgákov “contrarrevolucionárias”
e, na prática, conseguem neutralizar, através da censura, a obra do autor de O Mestre e Margarida. Em Os Ovos Fatais, o Instituto Zoológico
de Moscou faz experimentos científicos, através do professor Pérsikov, para
resolver os problemas de desnutrição nos anfíbios. Assim, Pérsikov descobre um
raio capaz de multiplicar a atividade vital e reprodutora dos animais
estudados. O governo, desta forma, tem o objetivo de utilizar este experimento
do professor para aumentar a produção avícola do país. Resultado: uma geração
de répteis e aves monstruosas invade a União Soviética e ameaça o país com uma
destruição cabal.
O Apartamento de Zóika. Esta obra de Bulgákov é apresentada pela primeira vez
em 1927. Em seguida, é retirada da programação do teatro pela censura. O enredo
apresenta a Rússia depois da revolução com sua sociedade em transição. Nos três
atos apresentados nesta peça, o autor mostra a imposição inacreditável que se
enfrenta diante das autoridades capazes de assumir diversas posturas e os burladores
sociais, cínicos, que procuram, a todo custo, escapar do sistema. O exílio é
também um tema trabalhado por Bulgákov, tema importante na vida soviética dos
anos 20.
Romance Teatral. Da melhor tradição satírica da Literatura russa, de Nikolai
Gógol a Saltikov-Schedrin, Romance Teatral
é divertido texto e crítico argumento tanto ao recuperar o ambiente literário e
teatral de Moscou, como da vida sociocultural soviético. A trama gira em torno
das peripécias e desventuras de um jovem autor em busca de um editor para sua
novela e de um empresário disposto a bancar uma peça teatral. Publicada pela
primeira vez em 1965, embora escrita em 1937, esta novela de Bulgákov faz
crítica mordaz ao Teatro de Arte e ao Teatro Mali, ou seja, ao Teatro Pequeno em
relação ao Teatro Grande (o Bolchói). Estes dois teatros eram os pilares do
denominado teatro “acadêmico” russo e soviético, sendo o primeiro protagonizado
por Constantin Stanislavski (1863-1938), o renovador da encenação do teatro, e,
o segundo, por Aleksandr Ostróvski (1823-1886), grande autor de comédias, em
particular da vida dos comerciantes de Moscou. O enredo de Romance Teatral situa-se entre os anos de 1920 e 1925, período de
crise do teatro soviético. Obra inacabada com a prematura morte de Bulgákov. Na
advertência desta obra, “Umas prévias palavras”, Bulgákov afirma que “Quero
advertir ao leitor que não tenho nada que ver com a redação destes apontamentos
e que estes chegaram até mim em circunstâncias muito estranhas e penosas. (…)
No estilo de Serguei Leontievitch, não quis interferir, embora seja este estilo
um tanto descuidado. Mas como exigir de um homem que ‘dois dias depois de
colocar ponto final em seus apontamentos se atira de cabeça para baixo na ponte
Tsepnói?’”.
O Mestre e Margarida pode ser considerado um romance
autobiográfico e simbólico com diversas interpretações, graças às histórias que
se interlaçam: na primeira – das três histórias, com a presença do diabo e de
seus seguidores em Moscou (Bieguemot – um gato asqueroso, negro e de tamanho
desproporcional para um gato; Azazello e Koroviev-Fagot – um homem vestido de
paletó xadrez, boné de jóquei, comprido e magro, e pincenê), encontramos a subversão
da cultura e da vida social moscovita metaforizada no ridículo que oprime
graças à administração e à burocracia comunistas. Estes personagens têm o ápice
de suas estranhezas num grande espetáculo de magia negra no Teatro de Variedades; na segunda
história, encontramos o amor entre o Mestre (com sua obra censurada) e
Margarida, uma mulher casada; enfim, na terceira história, ou seja, na de
Pôncio Pilatos, encontramos com o momento da prisão e da morte de Jesus Cristo.
O
romance apresenta-se em duas partes, com 32 capítulos, sendo a primeira com 18
capítulos (1. Nunca fale com pessoas
desconhecidas; 2. Pôncio Pilatos;
3. A sétima prova; 4. A perseguição; 5. Aconteceu na casa Griboiedov; 6. Esquizofrenia, como, aliás, já foi dito…; 7. O apartamento sinistro; 8. Duelo
entre o professor e o poeta; 9. As
artimanhas do senhor Koroviev; 10. Notícias
de Ialta; 11. Ivan se divide em dois;
12. Magia negra e sua revelação; 13. Aparece o herói; 14. Glória ao galo!; 15. O sonho de Nicanor Ivanovitch; 16. A execução; 17. Um dia inquieto; 18. Visitantes
azarados) e, a segunda, com 14 capítulos – a partir do capítulo 19 (19. Margarida; 20. O creme de Azazello; 21. O
voo; 22. À luz de velas; 23. O grande baile de Satanás; 24. O resgate do Mestre; 25. Como o procurador tentou salvar Judas de
Cariote; 26. O enterro; 27. O fim do apartamento no 50; 28.
As últimas aventuras de Koroviev e
Bieguemot; 29. O destino do Mestre e
de Margarida é determinado; 30. É
hora! É hora!; 31. Nos Montes
Vorobiov; 32. Perdão e refúgio eterno)
e, finalmente, o Epílogo.
Estas
duas partes assim são apresentadas:
1a
– relato predominante dos personagens dominados pelo diabo, com inclusão
de dois capítulos da narração de Pôncio Pilatos (o Capítulo 2 e o Capítulo 16,
por exemplo);
e
2a
– a história do Mestre e
Margarida. Neste momento do enredo, o leitor já tem conhecimento que a narração
de Pilatos é a novela escrita pelo Mestre. No final do romance, as duas
histórias se entrelaçam, ou seja, a história do Mestre e de Margarida e a do
romance que envolve Pôncio Pilatos e Jesus Cristo ou, ainda, Mateus Levi
aparece conversando com Woland e afirmando que Jesus Cristo leu a obra do
Mestre e que deseja a paz para o escritor.
O
diabo Woland pratica o bem para o Mestre e para Margarida, desmascara a
sociedade e seus vícios e também pratica o mal, como tudo aquilo que pode se
apresentar como um Estado ditatorial e burocrático como o apresentado por Stálin.
Segundo a crítica Irina Astrau, Woland é um Satanás excepcionalmente benévolo,
eleito provavelmente por Bulgákov para introduzir em sua novela a personagem
proibida na União Soviética, no caso, Jesus Cristo. Os responsáveis e
representantes, por exemplo, do Teatro de
Variedade e da Casa de Griboiedov
terminam seus dias internados num sanatório. O Mestre aparece, já com o avanço do romance, no manicômio, uma vez
que ele mesmo se recolhe ao recinto, mostrando que sua internação é ato de
lucidez. Como seu romance é boicotado, afasta-se de Margarida para que o mal
não a atinja. A tríade Mestre/Margarida/Jesus Cristo é o simbólico conflito com
uma sociedade que procura regular as atitudes e os pensamentos de tudo e de
todos. Margarida é o amor e a beleza
assombrosa, enquanto que Ivan
Nikoláievitch é um jovem poeta que escuta de Woland a história de Pôncio
Pilatos. Conforme a história contada por Woland avança, o poeta percebe a
verdade e chega à conclusão de que seu poema antirreligioso não tem sentido
algum. Assim, Ivan Nikoláievitch decide não mais voltar a escrever. O final do
romance reserva a ascensão ao infinito de o Mestre e ao de Margarida, como um
recomeço para uma nova vida com a morte do casal.
A
ideia de O Mestre e Margarida data
de 1928, sendo que no ano de 1930 o texto é destruído pelo autor. Entre os anos
de 1931 e 1936, há uma segunda versão realizada por Bulgákov; de 1937 até 1940,
a definitiva e terceira versão do romance. Elena Serguéievna Chilóvskaia,
a terceira esposa de Mikhail Bulgákov, publica em 1966 O
Mestre e Margarida
com 12% de cortes do texto original. Em 1967, na França, a publicação de O Mestre e Margarida sai na íntegra. Na
Alemanha, a publicação acontece em 1969. Em Moscou, em edição padrão, em 1973.
Em 1989, em Kíev, Lidia Ianovskaia coteja todos os textos disponíveis de O Mestre e Margarida.
Durante
cerca de doze anos, Mikhail Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, uma obra impressionante e estranha ao leitor,
escrita na época sangrenta do sistema implantado por Stálin.
Mikhail Bulgákov apresenta alguns personagens capazes de
levar o leitor ao formidável apelo da construção nada convencional, como é o
exemplo do diabo – de nome Woland, praticante tanto do bem como do mal, ou,
ainda, causador de prazeres e de malícias desconcertantes num contexto
ditatorial e burocrático stalinista. Para o Mestre e para Margarida, Woland é
benevolente.
Enfim,
O Mestre e Margarida nos oferece a
possibilidade de iconoclastia da prosa do século XX, como a condição crítica de
uma leitura contra o autoritarismo que dissimula, que inquieta e que aniquila
sonhos, assim como conscientiza ainda mais o artista e seu leitor da
importância de sua criação e de seu amor pela vida. Dicotomicamente, a
esperança surge, permanece para, de modo fabuloso, findar, pois a efemeridade
do princípio está em sua própria construção e objetivo: o fim, como recomeço de
uma história, ou, nas palavras de Woland, “seu romance ainda vai lhe
proporcionar surpresas.” 5.
Assim dizia Margarida, ao caminhar com o mestre em
direção à casa eterna dos dois, e parecia ao mestre que as palavras de
Margarida corriam como corria e murmurava o córrego que havia ficado para trás,
e sua memória aflita, uma memória perfurada de agulhas, começou a se apagar.
Alguém estava libertando o mestre, assim como ele acabara de libertar o herói
inventado por ele. Esse herói sumiu no abismo, foi embora sem volta, perdoado
na véspera de domingo, o filho do rei astrólogo, o cruel quinto procurador da
Judeia, o cavaleiro Pôncio Pilatos. 6
A sequência do
romance O Mestre e Margarida ganha
um contorno singular, pois a história inicial surge exatamente com a discussão
metafísico-religiosa da não existência de Jesus Cristo em conversa entre Mikhail
Aleksandrovitch Berlioz, presidente da MASSOLIT e redator-chefe de uma revista
literária, e o poeta Ivan Nicolaievitch Poniriev (com pseudônimo Biezdomni, ou
seja, em russo o “sem casa”). Este faz um poema antirreligioso para o
redator-chefe, mas, segundo este, há falha na elaboração do poema, uma vez que
Jesus Cristo deve ser mostrado como alguém que não existiu sendo, portanto, um
mito ordinário ou pura invenção. Entretanto, o poema não atinge este objetivo.
Os dois cidadãos são ateus e estão na Rússia soviética. É final de tarde, é
primavera e os dois estão na Praça do Patriarca em Moscou. Dois fatos
singulares, então, ocorrem: não há, basicamente ninguém na praça, exceto
aqueles dois que discutem e uma vendedora. O segundo fato é a aparição de um
homem transparente, um sujeito vestido de xadrez. Em seguida, ao
desaparecimento deste sujeito e o restabelecimento emocional de Berlioz ao
“ver” a cena inusitada, aparece um estrangeiro que se intromete na conversa de
Berlioz e Ivan. Será, como o leitor saberá depois, Woland, o Satanás. Este
anuncia o destino dos dois cidadãos (morte por decapitação de Berlioz e
esquizofrenia com direito à clínica psiquiátrica para o poeta Ivan).
Nova sequência no
romance O Mestre e Margarida ganha
destaque, agora, em Jerusalém e na prisão de Jesus Cristo e sua execução, mostrada
mais para adiante no enredo. Figuras como Pôncio Pilatos, Judas de Cariote,
Caifás, Dismas, Gestas, Barrabás e o próprio Jesus Cristo compõe a história que
o leitor, mais tarde saberá, ser o enredo do romance do Mestre. Este romance
torna-se, no tempo presente de um regime totalitário, no caso o soviético
pós-1917, execrado pelos “diletos censores” do Sistema opressor, liquidando,
desta maneira, a carreira literária do Mestre, graças ao crítico Latunski que terá, mais para o final do
enredo, sua casa destruída por Margarida. Este é um ponto essencial no romance
de Mikhail Bulgákov, O Mestre e
Margarida, ou seja, a remoção daqueles que direta ou indiretamente fazem
parte do Sistema comunista e totalitário de Stálin. Para isso, o recurso
bulgakoviano surge com a figura do diabo (o Satanás Woland) que, embora
pratique o mal, vem para fazer o bem para o Mestre e sua amada. No final do
enredo, Mateus Levi afirma que Jesus Cristo, que leu o romance do Mestre, deseja
a paz ao escritor e à amada deste. Finalmente, a justiça faz-se para aquele que
um dia se recolheu ao manicômio por livre e espontânea vontade (no caso, o
Mestre) e que precisou morrer com Margarida para, juntos, renascerem para uma
vida nova sem a oposição de um regime que lesava e fazia escritores e a
intelectualidade russas calarem em sua arte.
Algumas representações do Sistema sofrem negativas ao
longo da história, assim como seus representantes. O exemplo mais notório é a
queima da Casa Griboiedov, local de
parasitas literários de um regime que os regia artisticamente, assim como o
apartamento de no 50, antiga moradia de Berlioz, e os
desaparecimentos que nele acontecem ou, ainda, o show de magia negra de Woland
no Teatro de Variedades. Como dizia
Jesus Cristo no romance escrito pelo Mestre, “qualquer poder é uma violência em
relação às pessoas e que virá um dia em que não haverá o poder dos césares, nem
qualquer outro poder. O homem entrará no reino da verdade e da justiça, em que
qualquer poder será desnecessário.”.
A corrupção e as falcatruas do Sistema comunista são
apresentadas de modo fantástico por Bulgákov. Para isso, o diabo Woland e seus
discípulos agem de diversas formas: surgem e desaparecem contratos assinados
por aqueles que não lembram de terem assinado, há cobrança superfaturada para
eventos públicos, há rublos transformados em proibitivas moedas estrangeiras e
dinheiros pulam automaticamente para pastas alheias ou são escondidos em
tubulações de ventilação…
O narrador do romance de Bulgákov é em terceira pessoa
com intromissões sucessivas ao longo do enredo, assim como induz e conduz, em
alguns momentos, o leitor para os acontecimentos: “Sim, convém apontar aí o
primeiro acontecimento singular…”; “…peço que observem isso…”; “Cumpre assinalar
que o redator…”; “Talvez fosse conveniente perguntar…”; “O fato é que não
podemos afirmar…”; “Por outro lado, quem é que sabe? Talvez tivesse lido, mas
não é isso que importa!”; “…e sobre isto pode-se falar de uma forma
absolutamente livre.”; “Mas, como o leitor certamente já esperava…”; etc.
De resto, há um romance dentro de outro romance ou,
ainda, o romance do Mestre no romance de Mikhail Bulgákov ou, ainda, uma
metaliteratura e um intertextualismo se considerados os dois romances em
criação pelo mesmo autor, Bulgákov. Vejamos este diálogo entre Ivan Biezdomni e
o Mestre na clínica psiquiátrica:
-
E o senhor, por que veio parar aqui?
-
Por causa de Pôncio Pilatos – respondeu
Ivan, olhando taciturnamente para o chão.
-
Como?! – gritou o visitante, esquecendo-se
evidentemente da cautela e tapando a própria boca com a mão. – Mas que
coincidência impressionante! Imploro, conte-me!
Ivan, sem que ele
próprio soubesse por que, sentiu confiança no desconhecido, e começou a falar.
Inicialmente, mostrou-se um tanto acanhado e gaguejava, mas depois criou
coragem e pôs-se a relatar o que tinha acontecido na véspera, no lago do
Patriarca. Com efeito, o misterioso ladrão de chaves era um grato ouvinte! O
visitante não considerava Ivan um louco, pelo contrário, manifestou estar muito
interessado em sua narrativa, e à medida que esta se desenvolvia, ficava cada
vez mais extasiado. Volta e meia interrompia Ivan, exclamando:
-
Que coisa! Continue, continue, imploro!
Mas, pelo amor de Deus, não deixe escapar nada!
Porém Ivan nunca
deixava escapar nada, pois era-lhe mais fácil contar precisamente assim; aos
poucos chegou o momento em que Pôncio Pilatos, de manto branco com forro cor de
sangue, entrou na varanda.
Então o visitante
uniu as mãos como quem pretende rezar, e murmurou:
-
Mas como adivinhei tudo! Como adivinhei!
O ouvinte respondeu
com uma observação intrigante à descrição da horrível morte de Berlioz, e nos
seus olhos cintilou o ódio:
-
Lamento apenas que no lugar deste Berlioz,
não tivesse o crítico Latunski ou o literato Matislav Lavrovitch – e exclamou
frenética e silenciosamente ao mesmo tempo: - Continue!
O gato que tentava pagar a passagem divertiu muito o
visitante que sufocava o riso e olhava Ivan, emocionado por sua vez com o êxito
da sua narrativa. O poeta pulava de cócoras, representando o gato com uma moeda
junto do bigode.
-
Foi assim que vim parar aqui – conclui
Ivan, taciturno, a narrativa sobre os acontecimentos na casa Griboiedov.
O visitante
compadecido pôs a mão no ombro do desventurado e disse:
-
Poeta infeliz! Mas a culpa é toda sua, meu
caro. Não podia portar-se com ele de uma forma tão ousada, descarada até. E
agora você pagou por isso. E ainda deve dar graças que tudo isso tenha lhe
custado relativamente pouco.
-
Mas quem é ele, afinal? – perguntou Ivan
excitado, girando os punhos cerrados.
O visitante olhou
atentamente para Ivan e respondeu com uma pergunta:
-
O senhor não ficará nervoso? Todos nós
aqui somos pessoas em quem não se pode confiar… Não será necessário chamar o
médico, fazer injeções e todo o resto?
-
Não, não! – exclamou Ivan – diga quem ele
é!
-
Está bem – respondeu o visitante, e
pronunciou de uma forma bem clara e grave – Ontem, no lago do Patriarca, o
senhor encontrou-se com Satanás.
Ivan, como tinha
prometido, não ficou nervoso, mas mesmo assim a sua surpresa foi imensa.
-
Mas isso é impossível! Ele não existe.
-
Pelo amor de Deus! Logo o senhor, dizer
isso! Parece-me que foi uma de suas primeiras vítimas. Compreende perfeitamente
que se encontra em um manicômio e ainda assim afirma que ele não existe.
Palavra de honra, isto é esquisito!
Ivan, totalmente desorientado, calou-se.
-
Logo no início da sua descrição –
prosseguiu o visitante – adivinhei com quem teve o prazer de conversar ontem.
Dou-lhe minha palavra. Bem, o senhor é certamente leigo no assunto – o
visitante pediu desculpas mais uma vez – mas Berlioz, que eu saiba, tinha lido
alguma coisa! As primeiras palavras desse professor bastaram para dissipar
todas as minhas dúvidas. Era impossível deixar de reconhecê-lo, meu amigo!
Aliás, o senhor… o senhor vai me desculpar mas, se não me engano, é ignorante
no assunto.
-
Certamente – concordou Ivan, que se
tornara irreconhecível.
-
Pois é… Mesmo a fisionomia que o senhor
descreveu… Olhos diferentes, sobrancelhas! Desculpe-me, mas talvez o senhor nem
sequer ouviu a ópera Fausto?
Uma das chaves para a leitura de O Mestre e Margarida, apontam os críticos, é a obra de Johann
Wolfgang Goethe (1749-1832), Fausto,
poema dramático iniciado em 1775 e concluído pelo poeta alemão em 1831. Nesta
obra, aparecem Deus e Mefistófeles e, ambos, refletem sobre a alma de Fausto.
Mefistófeles acredita que pode seduzir Fausto. Na primeira parte desta
tragédia, em ato único em várias cenas, Fausto procura resolver seu dilema
existencial ou ainda o dualismo de suas “duas almas”: uma dinâmica e a outra
reflexiva. Neste momento, aparece Wagner, um humanista e, simbolicamente, a
oposição a Fausto. De um cão surge Mefistófeles; este se oferece a Fausto com o
objetivo de servir-lhe em troca de sua alma. Fausto torna-se pactário ao
concordar com a proposta de Mefistófeles. Veja este diálogo entre Fausto e
Mefístófeles, em tradução de Agostinho D’Ornellas, 1958, Coimbra, por Ordem de
Universidade, Acta Universitatis
Conimbrigensis, de Fausto, de
J.W. Goethe:
Fausto
Que me hás-de tu dar,
pobre diabo?
A mente humana e seu
imenso anelo
Acaso compr’ender
podem teus pares?
Manjares tens que não
saciam, ouro
Que nos corre das
mãos, qual vivo azougue,
Jogo a que se não
ganha? Tens mulheres
Que sobre o peito
meu, com meigos olhos,
A outrem se prometem?
Tens a glória
O divino prazer, vão
meteoro
Que rápido se esvai?
Mostra-me frutos
Que antes de colhidos
se corrompam,
Plantas qeu nova
folha sempre vistam!
Mefistófeles
Nao me aterra a
incumbência, posso dar-te
Também desses
tesouros. Mas, amigo,
O tempo alfim lá
chega em que somente
Algum prazer gozar em
paz queremos.
Fausto
Se jamais repousar eu
sossegado
Em leito de
indolência, morra logo!
Se com lisonjas tanto
me iludires
Que chegue a estar
comigo satisfeito,
Se com deleites
logras seduzir-me,
Seja esse o meu dia
derradeiro!
A aposta of’reço!
Mefistófeles
Topo!
Surgem, então, para Fausto, o prazer, novamente a
juventude, encontra-se com Margarida e dela se enamora com a ajuda de Marta,
etc. Mas o problema em Fausto continua, ou seja, seu conflito interior ou suas
duas almas em embate. Mefistófeles é, agora, metaforicamente, uma das almas de
Fausto, a do prazer. Margarida é acusada de ter matado o próprio filho que
teria tido com Fausto. Este pede a Mefistófeles que salve sua amada Margarida,
mas aquele afirma que ela está condenada. Na segunda parte, já passado bom
tempo da morte de Margarida, Fausto morre.
Se Fausto,
de Goethe, discute uma diversidade de temas existenciais e filosóficos, como os
problemas do homem frente aos limites de seu poder, da sociedade, do choque
entre o passado e o moderno, da ética, da criação poética, etc., O Mestre e Margarida, segundo Mikhail
Bulgákov o seu anti-Fausto, atualiza
estas discussões num contexto da Rússia soviética. A habilidade bulgakoviana é
extraordinária na construção fantástica do enredo que mescla o real de uma
sociedade oprimida e a opressão existencial que qualquer alma de um grande
escritor tem a capacidade de externalizar na mais profunda investigação
filosófica, estrutural narrativa e de criatividade artística. Fausto está
relacionado ao Mestre; Margarida, à Margarida; Mefistófeles e Wagner, Woland.
No final de o enredo de O Mestre e
Margarida, o Mestre e Margarida viverão a paz e a felicidade, graças à
complacência do Satanás Woland para com o casal, o mesmo diabo que puniu o mal
com o próprio mal, ou seja, os demais personagens associados ao poder do Estado
totalitário.
Outro recurso que o autor usa é o de abri um capítulo
com a frase já usada no final do capítulo anterior, como, por exemplo, a última
frase do Capítulo 1 e o início do Capítulo 2 ou a última frase do Capítulo 2 e o início do Capítulo 3.
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