quarta-feira, 29 de junho de 2016

A LITERATURA DE NIKOLAI SEMIÓNOVITCH LESKOV

Do denominado Realismo do século XIX, advindo da criação da “Escola Natural” de Biélinski, muita coisa se desenvolveu na literária russa. O percurso iniciado pela linguagem literária de Púchkin, assim como a dádiva implantada pelo realismo-fantástico de Gógol que, simultaneamente, não abandonou o Romantismo de Púchkin e de Liermóntov, até chegar na busca da realidade psicológica dos “humilhados e ofendidos” de Dostoiévski e no moralismo doutrinário de Tolstói, a literatura russa parecia ter se esgotado, ao menos no olhar do mundo Ocidental. Mas não. Se Dostoiévski já havia mesclado as atitudes românticas ao realismo psicopatológico, se Tolstói havia criado o épico com Guerra e paz, o psicologismo adulterino com Anna Kariênina e a profunda reflexão sobre a morte e a mesquinharia da vida com A morte de Ivan Ilitch, ainda faltava reconhecer o talento de Nikolai Semiónovitch Leskov. Nascido em 1831 e com morte em 1895, Leskov contribui com não somente uma variação de gêneros e de temáticas, como traz para a literatura russa do século XIX um realismo considerado marginal, que corre à margem dos grandes nomes de Dostoiévski e de Tolstói, mas que não deixa de apresentar tanto um trabalho impressionante com a linguagem literária, como pela variação de tipos dos mais intrigantes, persuasivos e conhecidos em sua literatura. Do campônio ao nobre, do militar ao desagregado social, do místico e religioso ao doente permissivo, do lírico ao personagem com ar de herói, do perfil ficcional ao personagem histórico, do vigarista ao honesto, do homem à mulher, do jid, do romeno, do tcheco, do alemão, entre outras etnias, Leskov retira o invólucro que protege personagens em nível social para resgatar em enredos, muitas vezes, insólitos ou demasiadamente triviais, o frugal e o excessivo das psicologias individuais e das ações desmontadas em nível social. Dos reinados de Nicolai I ao de Nicolau II, o contexto contribui positivamente ao desempenho conteudístico na literatura de Leskov, obra esta em 36 volumes, com os mais diferentes gêneros de composições artística e histórica.

A obra prima de Leskov é o romance  Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, de 1864. O enredo é dividido em 15 capítulos relativamente curtos. Um narrador distanciado narra a passagem pelo distrito que mora de uma mulher de um comerciante conhecido, uma mulher de “gênio impetuoso” e protagonista de um terrível drama. Catierina Lvovna Izmáilova, mulher de 24 anos, é casada com Zinóvi Boríssitch Izmáilov. Sua vida é tediosa, porque vive trancada em casa. Nesta casa, mora também o pai de Zinóvi, Borís Timofiéitch Izmáilov, homem com pouco mais de 80 anos. Zinóvi tem pouco mais de 50 anos. Catierina é sua segunda esposa. Com cinco anos de casados, Zinóvi é homem estéril, embora a culpa recaia sobre sua esposa. Como afirma o narrador, “o tédio das casas de comerciante, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar.” dá o clima do que possa ocorrer no enredo. Entretanto, Catierina não se mata, pois assassina inicialmente o sogro, envenenando-o, depois o marido, estrangulando-o com a ajuda de seu amante e capataz da fazendola Serguiêi, rapaz atrevido e conquistador, e, finalmente, dá cabo do herdeiro e sobrinho de Bóris, o menino Fiódor Liámin, sufocando o garoto com um travesseiro também com a ajuda de Serguiêi. Sentindo-se culpado por seus crimes, Serguiêi, amedrontado por sua superstição, crendo que os mortos achincalham com a casa que agora Catierina vive sozinha, sendo que quem achincalha janelas e portas são alguns homens que testemunham o assassinato do pequeno Fiódor, termina, o capataz, confessando os crimes feitos pelo casal amante. Desterrados para a Sibéria a trabalhos forçados depois das tradicionais chibatadas em praça pública, o incorrigível conquistador Serguiêi aproxima-se de duas prisioneiras, Fiona e Sônia. Com a primeira, sua relação é efêmera, não causando danos à Catierina; entretanto, com Sônia, as provocações do novo relacionamento são insuportáveis para Catierina, mulher que não amava nem a si mesma, mas que matou por causa do amante. Desta forma, quando os presos estão em barca no Volga, depois de tamanhas provocações de Serguiêi e castigo físico impretado por este em Catierina, através de chibatadas, ela, enlouquecida e febril, vê, nas ondas do Volga, seus três mortos, Borís, Zinóvi e Fiódor. Agarrando-se em Sônia pelas pernas, Catierina e Sônia são tragadas pelo violento e imperdoável Volga. Do fantástico ao real, do psicologismo das ações às superstições dos protagonistas, Lady Macbeth do distrito de Mtzensk discute o amor levado às últimas consequências guiado pela paixão cega, pela estupidez humana e pelo egoísmo desenfreado na alma de homens e mulheres.

Nikolai Leskov
No ano de 1857, Leskov, ao abandonar o funcionarismo público, viaja durante três anos como representante comercial da firma Scott & Wilkins, empresa que seu tio era sócio. A diversidade temática de seus contos passa, obrigatoriamente, por aquilo que viu com seus próprios olhos e como diagnosticou o que aprendeu na prática. Os personagens leskovianos em seus retratos são resultados destas argutas observações e que resultam nas mais diversas psicologias de homens e de mulheres humanos e surpreendentes em suas atitudes (regimentos, lapidadores, vigaristas, canalhas, espíritas, corruptos, místicos, machistas, xenófobos, religiosos, adulterinos, etc.).

ANÁLISE DE DOIS CONTOS DE LESKOV.

Kótin, o provedor, e Platonida.
Esta novela é publicada pela primeira vez no ano de 1867 na revista Otiétchestvennie Zapíski, em Os que esperam o borbulhar das águas: crônica romanesca. O título já identifica os dois protagonistas do enredo, e suas histórias paralelas, em determinado ponto, unificam-se para, no final, tocarem-se novamente. Konstantin Iónitch Pizónski, o “Kótin” do título, é, também, “o provedor”, também do título, ou seja, aquele que dá assistência às garotinhas Glafira e Nila, filhas de uma prima de Konstantin Pizónski casada com um tal de Nabokov. Esta beneficência de Kótin para com as duas menininhas, tirando-as de uma mendiga cega, é para que Kótin, segundo o narrador, proteja “aquilo que deve ser protegido: a infância.” A partir desta intervenção, a vida de Pizónski passa a ter objetivo preciso. Sua simplicidade e diferença em relação aos outros da Cidade Velha dá-se por sua humildade, benevolência e, sobretudo, por sua humanidade, habilidade esta promovida pela dualidade desde criança enquanto menina no convento e menino no seminário. Destas formações, sua religiosidade aparece na novela, com algumas citações bíblicas e a referência, por exemplo, ao profeta Elias. Reconhece através da religião seus dois atos impuros, no caso o rapto das meninas e o roubo de um balaio que servirá para conduzi-las. Pede, então, perdão a Deus por estes atos indignos. Nenhum outro personagem da narrativa, neste sentido religioso, faz elaboração de seus atos, nem, tampouco, redime-se perante Deus. Aqui, ponto de ligação importante com a obra de Fiódor Dostoiévski, uma das referências de Nikolai Leskov. Estas dicotomias diferem Kótin dos outros personagens, tanto pela questão do gênero (masculino/feminino), como pela sensibilidade criativa de sustentar as pobres órfãs e de ser aceito pela cidade e, finalmente, acusado, de forma infame, por esta mesma cidade, de mentir e proteger Platonida Andrêievna e Avenir Markélitch. Estes três personagens assemelham-se em alguns aspectos, considerada, por exemplo, suas generosidades. O outro protagonista mencionado no título, “Platonida”, cresce no enredo ao lado de Kótin, sendo uma mulher, assim como o início da novela é uma mulher, no caso, a mãe de Kótin, Aksínia Matviêievna (curiosamente órfã como Glafira e Nila), que será, com seus 18 anos, expulsa de casa dos Déiev por ter seu amor descoberto, uma vez que tem relação com o sacristão Iona Pizónski. Curiosamente, também, no final do enredo, Platonida Andrêievna vê-se expulsa da mesma casa pela situação que enfrenta com o sogro agressor Markel Semiónovitch. Platonida Andrêievna, a “alma de criança”, identifica-se e une-se a Kótin para ajudá-lo na proteção às garotinhas órfãs por determinado instante. Entretanto, conforme a trama começa a envolver a vida íntima de Platonida Andrêievna, Pizónski e as menininhas são subtraídos temporariamente da história para, no final, apenas aparecer Pizónski a ser acusado por algo que não tem participação. Numa primeira parte da novela, deste modo, a biografia recai sobre a figura de Pizónski para, em seguida, deslocar-se para a vida atrofiada e impedida de liberdade de Platonida Andrêievna. Quando esta se vê viúva, pensa na paz e na liberdade (metaforizada quando, após o enterro do marido, ela se deita em sua agora cama de viúva e joga ambos travesseiros no chão. Este rompimento simbólico é, entretanto, interrompido pela culpa e pela superstição da viúva, logo, reintegrada ao moralismo familiar), mas, em breve, perde este sonho, novamente, agora com a agressão do sogro que procura substituir o filho morto e déspota Marko Markélitch. Platonida Andrêievna assume, depois de fugir da casa malfadada, a postura simbólica de uma profetisa, a Ioil (stáritsa), ou seja, a de uma mulher espiritualizada e religiosa que dá conselhos, como sustenta o rápido diálogo final entre ela e Avenir Markélitch. O conselho dado por ela é a busca de um “refúgio sereno”, espiritualizado e equilibrado de vida.
Dos vinte capítulos em números romanos da novela de Leskov, a partir do sétimo capítulo é que a figura e a história de Platonida Andrêievna ganham destaques e se cruzam com a ascensão, na Cidade Velha, da figura de Kótin. Avenir Markélitch é, inicialmente, apresentado como jovem irresponsável, malandro e pouco trabalhador, mas, em seguida, o belo jovem auxilia Platonida Andrêievna na contribuição que esta dá, com roupas e comida, às garotinhas cuidadas por Kótin. Avenir Markélitch compreende, também, com sua sensibilidade, a vida que Platonida Andrêievna precisa viver, pois é diferente dos demais homens da casa. Por fim, Avenir salva a cunhada do sogro (e de seu pai, no caso, o pai de Avenir) de seu ataque para, finalmente, ir para a guerra no Cáucaso e lá casar, como afirmam na cidade, com a filha de um general.
Mas o que resta da história de vida de Platonida Andrêievna e de Kótin? Os sacrifícios que a estes o destino inexorável apresenta, pois se suas vidas são impetuosamente mal compreendidas pelos demais personagens (excetuando Avenir Markélitch), pelo juízo do leitor, é notável a capacidade de diferenciação que ambos apresentam em relação àquele tipo de sociedade brutalizada, grosseira, manipuladora, pouco solidária e interesseira que caracteriza a Cidade Velha e a casa dos Déiev. Afinal, aqueles dois protagonistas buscam e defendem a liberdade de uma vida com humanismo e autenticidade para revelarem o que cada homem e mulher possuem de bom, de possível enquanto correto e de digno enquanto cidadão. No capítulo XIII, Kótin torna-se proprietário e cidadão, assim como não quer apadrinhamento em cargos, pois deseja terras julgadas inúteis pela maioria da cidade para, dali, tirar o seu sustento. Pizónski pensa deste modo neste instante de sua vida: “A sua consciência, que não lhe permitia avançar nenhum passo à frente de quem quer que fosse, apurava sua atenção para bens descartados, deixados à toa, que não eram necessários a ninguém nem despertavam a atenção de ninguém. O fracasso da carreira nos correios convencera Pizónski ainda mais de que ele não podia seguir pelos caminhos do apadrinhamento. Sentia que para si eram proveitosos os caminhos diretos, seria mais cômodo tomar nas mãos o que os outros desprezavam e o que não levaria a uma luta indigna nem traria inimigos ou invejosos.” Assim, nestas terras da ilha despovoada, passa “nosso Robinson” quatro anos. Neste momento, uma explicação: a novela em discussão é escrita pós libertação dos servos na Rússia ocorrida em 1861, já que Kótin, o provedor, e Platonida, é datada de 1867. Poderia, desta forma, haver a sugestão de os despossuídos de terra, até então na história russa, adquirirem suas próprias terras, como acontece com Kótin, embora ele não fosse nem servo nem descendente destes, assim como poucos libertos conseguiram terras para seu próprio sustento. A predisposição de atribuir ao personagem a capacidade de valorizar as coisas simples desprezadas pelos outros homens soma-se à habilidade de preservação de Kótin a manter sua dignidade de cidadão para conquistar a partir de suas características humanas uma “luta” justa e honesta dentro da sobrevivência imposta por uma sociedade viciada em luta pela sobrevivência a qualquer custo.
Figura importante é a do narrador, com suas colocações, indagações e interesse no jogo de palavras e de jocosas imagens que o tornam também um protagonista de talento. Já no início do relato, sai com esta “inclusive na nossa época desrespeitosa”, proferindo o contexto que o leitor irá encontrar. Alerta, também, que “a história não é longa”. Aliás, conforme o andamento desta história contada evolui, alguns personagens são propositadamente “esquecidos”, como a mendiga cega e as próprias garotinhas órfãs no final do enredo, embora bastando encontrar Kótin para, por extensão, lembrá-las pelo passado vivido e pela perspectiva do leitor em reencontrá-las (o que não ocorre com a miserável cega). A ironia para tratar da condição miserável de Kótin é, por exemplo, assim apresentada: “entoava de fome as mais alegres canções”. A minúcia de algum objeto não passa despercebida pelo narrador, como a parte da roupa de Kótin onde o “botão que brilhava tolamente”. Objeto e sujeito misturam-se para traduzir a condição psicológica de Konstantin Iónitch Pizónski. Aliás, a aparência constrangedora de Pizónski assim é revelada pelo narrador às garotinhas resgatando um mundo próximo ao delas: “como um gênio horroroso de algum conto de fada”. Entretanto, as órfãs aceitam esta figura horrenda de Pizónski, embora o narrador não possa garantir que “não se sabe bem se foi o chamado oculto do sangue ou o sabor sedutor da cebola doce cozida que predispôs as órfãs a Pizónski.” Nota-se que, nesta desconcertante frase, a situação de miséria das crianças é denunciada. O narrador faz o papel que cabe ao leitor, indagando por este, por exemplo, “E agora, que é que ele vai fazer? Onde ele e as crianças vão se meter?”, em referência à adoção feita pelo miserável Pizónski das garotinhas Glafira e Nila.
O inusitado da história de Kótin, o provedor, e Platonida ganha contorno diversificado, como a religiosidade em Kótin, a questão de gênero quando o protagonista circula no convento e no seminário, sua rejeição, aceitação e condenação na Cidade Velha, a proteção à infância de Glafira e Nila, sua identificação com Platonida, a vida de casada e de infelicidade desta com o marido Marko Markélitch, sua relação afetivo-infantil com o cunhado Avenir Markélitch, a agressividade sexual do sogro Markel Semiónovitch, as punições sofridas pelos cunhados Platonida e Avenir, a despótica e malfadada casa de Semión Dmítrievitch Déiev (no início do enredo) e de Markel Semiónovitch (no meio e no final do enredo), a burocracia e a mesquinharia da Cidade Velha, as misérias apresentadas, a boa vida dos funcionários públicos, a tentativa épica da ida de Avenir Markélitch à guerra do Cáucaso, o misticismo religioso, etc., dando a sensação ao leitor de incompletude das histórias contadas, mas que formam um todo principal, acusado não somente pelo título da novela como pela epígrafe apresentada “Ferramentas de casa já quebrada.”, de Shakespeare. A casa em questão pode ser tanto metaforizada pela Cidade Velha, como pela casa dos Déiev (que expulsa Aksínia, Kótia e Platonida), assim como a de Pizónski. Ao certo, é que a casa de Kótin pouco se assemelha com as outras duas.

Nikolai Gógol
Alguns críticos comparam o trabalho de Leskov, no caso Kótin, o provedor, e Platonida, com A terrível vingança, texto de 1832, de Nikolai Gógol. A partir de suas peculiaridades literárias, Leskov conta duas histórias que se comunicam, embora a partir de um mesmo narrador, algo similar com o texto de 1832, de Gógol, que oferece esta disposição com um narrador em terceira pessoa e um cantor popular cego que encerra o texto gogoliano. Claro que há diferenças, mas Leskov, ao seu modo, recupera alguns conceitos trabalhados por Gógol. Vejamos o que escrevi em texto de palestra sobre A terrível vingança do autor ucraniano:

“Gógol universaliza o folclore a partir de conceitos que elegem a punição para uma galeria de personagens presos ao seu destino ineroxável, seja ele vítima ou opressor, seja ele herói ou anti-herói. No caso de A terrível vingança, a dicotomia entre o que vem a ser a maldade e a bondade articulam-se de modo que a antítese é também percebida como oposição própria, pois envolve o passado dos protagonistas e causa o efeito em suas vidas presente e futura. Independentemente desta ginástica conceitual, um parâmetro que não se modifica é o moralismo gogoliano, inaugural no Realismo russo e com continuísmo em Dostoiévski espiritual e em Tolstói peregrinador.”

Podemos acrescentar, sem dúvida, que o bem e o mal também articulam-se no texto de Kótin, o provedor, e Platonida, assim como o misticismo, o religioso, o moralismo e o destino inexorável movimentam o enredo de modo que as antíteses vão se alternando durante a história contada.

Ao longo do enredo, são citados Lord Byron (poeta dramático romântico autor de “Manfred”), Ivan Ivánovitch Kozlov (poeta romântico russo, autor de “O anacoreta”) e Jukovski (poeta romântico russo que traduz Schiller – poeta romântico alemão).

A PROPÓSITO DE A SONATA A KREUTZER

Este conto é publicado pela primeira vez no ano de 1899, na revista Niva, após a morte de Nikolai Leskov. Inicialmente, o título era Dama do enterro de Dostoiévski. O título do conto parece ser de artigo crítico e teórico sobre a novela de Liev Tolstói. De certa forma, há crítica ao moralismo tolstoiano se compreendido que o enredo investiga possibilidades de entendimento para a conduta da senhora N., mulher adulterina, e como a sociedade vê as diferenças entre as culpas sociais do homem e da mulher. Se a senhora N. cometeu, de fato, o suicídio, temos um diálogo com a personagem Anna Kariênina de Tolstói e, por extensão, o moralismo para uma mulher adulterina. Já a execração pública, caso ocorresse como assim inicialmente deseja a senhora N. para purificar-se de seu crime, através do castigo moral, mas com apelo de renascimento enquanto pessoa humilhada e ofendida por sua culpa, o diálogo encontraria respaldo em Dostoiévski.

Fiódor Dostoiévski
Tanto Dostoiévski como Tolstói são os motivadores para o intertextualismo do conto de Leskov, sugerido fortemente enquanto o escritor que recebe a confissão da senhora N. Esta, inclusive, confessa-se duas vezes com Dostoiévski e, o escritor de Memórias do subsolo, mostra sua dualidade de comportamento. Já Tolstói, é citado em sua concepção da igualdade entre homem e mulher em determinado momento do enredo. O pensar do escritor do conto é que a adulterina continue a viver sem a confissão ao marido (para que este não sofra), dedicando-se à família, uma vez que, a cada instante, a antipatia pelo amante aumenta. E se Tolstói e Dostoiévski tivessem que aconselhar a senhora N. em relação ao seu caso? Tolstói, certamente, daria fim à senhora N. (assim como ocorrem em sua A sonata a Kreutzer e Anna Kariênina); Dostoiévski, certamente, faria a senhora N., depois de seguir ritual de humilhação pública, tornar-se apta para uma nova vida. Mas como o conto é de Leskov, a resposta para o destino da senhora N. pode ser construído com a ambiguidade, ou seja, o suicídio possível ou o desaparecimento da senhora N. para uma nova vida longe do frio e calculado senhor N., homem que lembra por suas características o Aleksiei Karênin, marido de Anna Kariênina. Cabe lembrar que este casal tem um filho (o Serioja) com idade similar do falecido Anatoli.

Liev Tolstói

O diálogo proposto por Leskov com a literatura de Tolstói concretiza-se tanto no título de seu conto como na epígrafe, assim como na explanação, na parte III, da ideia tolstoiana sobre os direitos do homem e da mulher. Já a figura de Dostoiévski surge um tanto diferente, pois este age diretamente sobre a senhora N. Num primeiro momento, quando ela procura por duas vezes o escritor de Crime e castigo, num segundo momento, quando ela acompanha o sepultamento de Dostoiévski que a impulsiona, pela imagem de seu caixão e das correntes, para a possibilidade de confissão ao marido, o senhor N. Neste ínterim, procura, evitando mostrar-se em sua identidade, para o escritor Leskov em casa deste. A influência da figura de Dostoiévski (personagem do conto de Leskov) é expressa, em parte, no pensamento da senhora N. quando ela afirma que “Pior do que tudo no mundo é a mentira, eu sinto isso, acho que é melhor confessar a própria infâmia e suportar o castigo, ser humilhada, destruída, jogada na rua; eu não sei o que pode acontecer comigo…” Revelação típica dos personagens dostoievskianos, mas que se encontram com a possibilidade de ressurreição e da purificação da alma, distante da purificação moralista tolstoiana que dá pouca margem para a continuidade de uma vida nova em sociedade. Simbologia interessante é o caixão e as correntes do sepultamento de Dostoiévski alucinarem e confundirem a senhora N., assim como o caixote com a solução de cala orienta a pobre mãe em sua decisão, seja a de suicídio, seja a de desaparecimento da estrutura de frialdade ao lado do marido, o senhor N. se há suposta morte (ou não a sua confirmação), há similitude com Águia Branca, também na suposta (ou não) morte de Ivan Petróvitch Aquilalbov. O moralismo tolstoiano e dostoievskiano são, de certo modo, relativizados por Leskov, pois, afinal, para o escritor do conto, “a mim nunca importou como a sociedade nobre reage à vida particular de quem quer que seja. Não o mundo, mas a pessoa em si: eis o que me é caro, e, se for possível não provocar sofrimento, para que provocá-lo?”
O conto A propósito de A Sonata a Kreutzer é dividido em cinco partes. O escritor é personagem e também o narrador da história, com a sugestão de ser o próprio autor Leskov. A epígrafe de Tolstói “Toda moça é moralmente superior ao homem por ser incomparavelmente mais pura do que ele. Ao casar-se, ela é sempre superior ao marido. A moça continua superior ao marido também ao tornar-se mulher no nosso cotidiano.”, ganha nova interpretação se buscada no final do conto de Leskov, pois, afinal, se a senhora N. desapareceu do seio familiar não cometando assim o suicídio, manteve sua superioridade e sua pureza para a visão do marido, mas não abriu mão de sua igualdade com o homem para cometer seus pecadinhos. A sua rebeldia, fora as questões econômicas, lembra a novela Uma criatura dócil, de Dostoiévski, se considerada a sua autonomia em relação ao marido.

Mas recordaremos A sonata a Kreutzer, de Tolstói: é um dos textos mais polêmicos de Liev Nikoláievitch Tolstói, não somente na época em que foi publicado como parte de suas Obras Completas como atualmente espanta o leitor que, minimamente, costuma esclarecer-se sobre a desigualdade sofrida pelas mulheres em qualquer sociedade, considerando os despropósitos sobre as relações entre homem e mulher por parte de Pózdnichev, o protagonista. Entretanto, a arte desenvolvida por Tolstói nesta novela publicada em 1891 é de um aprofundamento psicológico (no que se refere à angústia e ao temor das colocações de seu protagonista vividas no tempo passado e sua emocionalidade brutal no tempo presente) que faz com que o leitor reflita sobre conceitos dissertados sobre o matrimônio, a castidade, a bestialidade carnal e o ciúme pelo ponto de vista monologal do assassino de sua própria esposa. Tolstói inicia a escrita de A sonata a Kreutzer em 1887, embora a maior parte do texto produzido dá-se em 1889. O tema do adultério e da brutalidade da morte tem seu ápice em Anna Kariênina, publicado em 1877, se visto a partir do Realismo psicológico do escritor. Desta forma, o texto de A sonata a Kreutzer é sucessor da trama adulterina entre Anna Kariênina e Vronski. A radicalização conceitual, entretanto, sobre a castidade e o matrimônio, destaca-se no texto de 1891. Depois da escrita de A morte de Ivan Ilitch, Tolstói escreve dois títulos de expressão no final da década de 80, O poder das trevas, com assassinato e adultério, e A sonata a Kreutzer, também com estes temas. A primeira é censurada para a representação teatral, embora consentida para publicação. As origens da escrita de A sonata a Kreutzer são diversas, como aponta Rosamund Bartlett: carta de certa mulher anônima que reclama do tratamento dado às mulheres pela sociedade; relato de um amigo de Tolstói que, ao estar em algum vagão de trem, escuta a confissão de um homem adulterino em relação à esposa; o conhecimento de Tolstói da peça “Sonata a Kreutzer” de Beethoven (“Sonata para violino no 9) e o desempenho de Serguiéi, filho de Tolstói, na música, além de eventos diretamente ligados a fatos familiares (casamento precoce de Ilia, segundo filho de Tolstói; desavenças com alguns filhos; o desejo sexual de Tolstói que não consegue evitar, embora a pregação moral de se abster da bebida e da carne), enfim, a instituição casamento desgastada em sua vida e condenada enquanto instituição no enredo de sua obra. Nota-se que temas como a tentativa de suicídio da esposa de Pózdnichev, as desavenças conjugais do casal, a tentativa de conquista deste ou daquele filho para si em oposição ao cônjuge, etc., são reveladores do domínio que o Conde Tolstói tem e que presencia em sua vida direta ou indiretamente, habilidade que não se vê na concepção de Pózdnichev ao tratar da ciência e dos médicos. Mas é bom destacar que Tolstói não é seu personagem Pózdnichev. Tolstói faz nove versões de A sonata a Kreutzer até sua publicação, embora, clandestinamente, o texto aparece em toda a Rússia a preço exorbitante, cerca de 10 rublos o exemplar. Alexandre III aprecia a obra, e sua esposa escandaliza-se. O procurador-chefe do Santo Sínodo, Konstantín Pobedónostsev gosta do teor apresentado sobre a castidade, mas ataca a visão de Tolstói sobre o futuro dos homens, creditando ser a publicação do livro inaceitável. Anton Tchékhov acusa, inicialmente, o interesse de estimular o pensamento até seu limite ao se ler o texto de Tolstói, mesclando exclamações tanto de verdade como de estupidez às colocações de Pózdnichev. Ao retornar de sua viagem à Ilha de Sacalina, Tchékhov revê seu conceito sobre A sonata a Kreutzer e afirma ser esta obra ridícula e absurda. Para o leitor atual, o desafio do texto de Tolstói está na capacidade enlouquecida de Pózdnichev criar um discurso absurdamente incomodativo em temas tão modernizados e arcaicos como o de casamento e de moral, seguidos de castidade e adultério, além da capacidade (ou não) de se ter filhos e saber conviver com eles (ou não). Pózdnichev e seu discurso alucinado lembra o discurso contraditório e destrutivo do “homem do subsolo” de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, em Memórias do subsolo (1864), considerando-se a capacidade de ambos de anarquizar, de ironizar, de debochar e, ainda, de se preocupar com ninharias nos momentos mais trágicos da existência entre os homens.

Um comentário:

  1. Parte dos livros que foram do meu avô veio para minhas estantes. Entre as obras, "Die Kreuzersonate", de Leo Tolstoi, publicada na Alemanha em 1967. Depois desta sua postagem, estou mais que motivada para ler...Obrigada!

    ResponderExcluir