Nikolai
Gavrílovitch Tchernichevski nasce em 1828 e morre em 1889. Considerado um
subversivo, é preso e encerrado na Prisão de Pedro e Paulo. Com a permissão de
escrever um romance, dada pelo comandante da Prisão de Pedro e Paulo, o
Príncipe Golítsin, Tchernichevski escreve aquele que é considerado na Rússia o
mais importante romance do século XIX, por causar efeitos extraordinários na
vida dos jovens dos anos de 1860 e de se consolidar ao fazer história
revolucionária.
Para o leitor ocidental é um tanto difícil admitir O que fazer? e seu autor como mais
importantes do que escritores como Turguêniev, Dostoiévski e Tolstói.
Tchernichevski
foi figura de destaque na vida política da Rússia das décadas de 1860 e 1870,
assim, como seus pares contemporâneos Aleksandr Ivánovitch Herzen (1812-1870),
Nikolai Aleksándrovitch Dobroliúbov (1836-1861) e Dmitri Ivánovitch Píssarev
(1840-1868). Tchernichevski tem
participação na Revista O Contemporâneo com
seus artigos e no ano de 1862 é detido e condenado à prisão perpétua na Sibéria,
local que passará mais de vinte anos. No ano de 1855, escreve tese sobre os
problemas da estética artística (As
relações estéticas entre a arte e a realidade), texto em que desenvolve as
bases para uma estética materialista. Para Tchernichevski, “a beleza é o produto
da realidade”, ou seja, desenvolve a partir de uma lógica evolutiva, opondo-se
contra o conceito e as teses de Hegel, então em voga na Rússia, de que “a
beleza é uma expressão do ideal”. No ano de 1856, escreve Ensaios sobre o período de Gógol na literatura russa.
Nikolai Gógol |
O contraste
apresentado nestes ensaios versam exatamente na oposição inicial entre a arte
puchkiniana e a arte gogoliana. Para os partidários da poesia de Puchkin, na
obra deste residia o conceito de arte pura, enquanto para aqueles partidários
da arte de Gógol, a arte tinha função social, denunciando, desta maneira, os
problemas da Rússia. Tchernichevski parte do pressuposto de que a estética
realista é superior à estética romântica, na dialética conceitual entre o real
e o ideal. Desta maneira, para Tchernichevski, a função do escritor era a de
educar o povo, assim, como a função da crítica literária era a de orientar os
escritores e controlar a arte. O leitor de O
que fazer? percebe o quanto didático, por exemplo, é este romance. Em 1861,
Tchernichevski lança o artigo É o início
da troca, talvez? Neste artigo, Tchernichevski confronta a literatura
moderna e seus escritores a combater a inércia da literatura passadista, agora,
enxergando o povo como sujeito e não mais como objeto do processo histórico. O
escritor tem a missão, segundo o autor de O
que fazer?, de chamar o leitor para a luta e não admirar a paciência dos
desprotegidos, tão encenada por alguns escritores do século XIX como Fiódor
Dostoiévski. Agora, para Tchernichevski, a sociedade e a literatura precisam de
um herói positivo que sirva de modelo para a juventude, e não um Raskólnikov,
de Crime e castigo, de Dostoiévski.
Claro que esta obra dostoievskiana ainda não havia sido escrita, pois sua
publicação vem a ser em 1866.
Antes, Dostoiévski escreveria, em 1864, Memórias do subsolo como resposta à
lógica utilitarista de O que fazer?,
assim como citaria O que fazer? em
seu romance de 1871, Os demônios,
quando o narrador Anton destaca o romance O
que fazer? como uma das leituras de Stiepan Trofímovitch Vierkhoviénski (Segunda Parte, III – Todos na expectativa,
Capítulo II.). Neste artigo de 1861, Tchernichevski mostra a necessidade de
reorganização da vida a partir de princípios mais avançados em nível social e
econômico, elementos que serão vistos pelo leitor em O que fazer? na figura, principalmente, de Vera Pavlovna.
Tchernichevski |
Dobroliúbov
tinha como objetivo o princípio de analisar os tipos sociais do romance a
partir da psicologia dos personagens e das cenas, assim, como discutir a função
do escritor dentro da sociedade. Píssarev, autêntico mestre da polêmica
literária, negava o valor histórico da literatura e ditava a ciência natural
como superior à arte. Negava a poesia, assim como seu niilismo artístico
polemizou com as obras de Puckhin, Turguêniev, Dostoiévski e Tolstói. Já
Herzen, procurava mediar os conceitas da cultura russa com a cultura ocidental,
sendo criticado tanto pelos liberais como pelos jovens revolucionários.
Em
O que fazer?, Tchernichevski centrou
a discussão nos jovens russos Vera Pavlovna, Kirsanov, Lopukhov e Rakhmetov,
sendo este último um revolucionário. A partir destes quatro personagens, os
novos valores passam a ser discutidos no romance. O que fazer? é, também, uma resposta aos niilistas de Pais e filhos (1861) de Ivan
Serguéievitch Turguêniev.
Ivan Turguêniev |
O Que Fazer? tem sua primeira parte editada no ano de 1863, em
abril, no periódico radical O
Contemporâneo, editado por Nekrasov. Este amigo de Tchernichevski é citado
algumas vezes no decorrer do enredo de O
que fazer?. Nekrasov perde os manuscritos do romance de Tchernichevski em
uma condução, precisando de ajuda da própria polícia ao anunciar a perda no
jornal oficial da corporação policial de São Petersburgo.
Embora
apresente uma qualidade literária primária, O que fazer? consegue converter uma geração ao populismo. O objetivo
do romance de Tchernichevski é mostrar a necessidade de uma rápida e necessária
troca de âmbito social. O romance tem lacunas e omissões propositais,
difundindo alguns temas um tanto velados, mas suficientes para serem
nitidamente mostrados para o leitor mais atento. No desenvolver do enredo, o
leitor vai percebendo os modelos que Tchernichevski sugere para uma vida
alternativa para todo aquele que não estava satisfeito com o andar da sociedade
russa do século XIX. Com forte moralismo discursivo e explícito didatismo de
ideias, O que fazer? dá todos os
indicadores para uma transformação social no momento que desenvolve longos
diálogos entre Vera Pavlovna e Lopukhov, assim como Vera Pavlovna e Kirsanov.
Tchernichevski
atrai a expectativa e a atenção do leitor já nos primeiros capítulos, relatando
o suicídio (que se verá como falso) do marido de Vera Pavlovna, Lopukhov. No
final do enredo, para a surpresa do leitor (atento, é claro!), Lopukhov
reaparece na figura de Charles Beaumont, um americano que se considera russo,
abolicionista e noivo de Katya, amiga de sua ex-mulher Vera Pavlovna. Deste
modo, há nova convivência entre os casais Vera Pavlovna/Kirsanov e
Katya/Lopukhov (Beaumont). Desta maneira, Lopukhov, com seu falso suicídio,
permite que sua mulher se case com outro homem quando se dá conta do fracasso
de seu casamento com Verinha. A ideia filosófica de Tchernichevski se
desenvolve a partir da ideia do utilitarismo e do “egoísmo racional”, embora
mais com tendência a analisar o comportamento dos personagens e seus efeitos
positivos na vida dos protagonistas. Inicialmente, o leitor depara-se com as
dificuldades de Vera Pavlovna e o despotismo de sua estrutura familiar (pais
penhoristas). Maria Aleksevna vê em sua família a condição de ter mais dinheiro,
através do casamento de sua filha, por isso se vê roubada por Lopukhov. Este
abre mão da sua medicina para salvar Verinha, com a explicação para si mesmo
que, mesmo abandonando a medicina, possa ganhar mais dinheiro com outras
atividades. Deste modo, não abre mão de algo por causa do prazer. A partir do
casamento com Vera Pavlovna, o autor investe em conceitos sobre a questão
feminina e direitos iguais entre homem e mulher, exemplificados na distribuição
dos quartos (neutros) do casal. Em seguida, Vera Pavlovna funda um ateliê (mais
tarde, mais dois ateliês), com uma lógica econômica socialista, investindo no
trabalho, na vida em comum e na cultura. Mesclam-se aí conceitos da educação
feminina e das cooperativas femininas.
Vera
Pavlovna tem quatro sonhos no decorrer do enredo e, no quarto sonho, a Idade de
Ouro, através do Palácio de Cristal, é mencionada. Em 1862, Dostoiévski faz
referência ao Palácio de Cristal em Notas
de inverno sobre impressões de verão, mencionando a Feira Mundial em
Londres em 1851. Dostoiévski havia visitado o Palácio de Cristal e ficado
horrorizado com sua falta de humanismo. Em 1864, Dostoiévski responderia ao
romance de Tchernichevski O que fazer? com
Memórias do subsolo. Veja o que
escrevi em artigo sobre Notas de inverno
sobre impressões de verão:
Fiódor Dostoiévski |
Algumas considerações do caráter do
narrador e seus conceitos aparecerão em 1864, em Memórias do subsolo, quando das referências de ser o narrador de Notas de inverno sobre impressões de verão
um homem doente, que sofre do fígado, que sabe que mentirá e que vê no espelho
de um hotel sua língua amarela e maligna. Além destas considerações sobre o
narrador em si, este em suas notas de viagem pela Europa tece comentários e
conceitos sobre progresso, socialismo, mulheres, casamento, miséria, mentiras,
etc. Claro que o “homem do subsolo” terá, em Memórias do subsolo, um nível mais apurado de consciência
filosófica e psicológica, desenvolvendo mais perigosamente suas ideias e
conceitos, o que o torna ímpar, comparativamente ao narrador de Notas de inverno sobre impressões de verão.
Vejamos alguns pontos desconcertantes e polêmicos instaurados pelo protagonista
de Memórias do subsolo: é doente, mal e desagradável,
instruído, supersticioso e se prejudica a si mesmo. Não se trata, embora respeite
a medicina e os médicos (até por ser supersticioso). Vive deste modo há 20
anos; na atualidade, tem 40. Afirma que somente os imbecis conseguem ser algo
na vida e, por extensão, ter caráter. Segundo o “homem do subsolo”, viver
depois dos 40 anos é indecente, vulgar e imoral. Só imbecis e canalhas vivem
depois dos 40. Para ele, um homem decente fala com prazer de si mesmo. Ter
consciência muito perspicaz é uma doença. Para o “homem do subsolo”,
Petersburgo é a cidade mais abstrata e meditativa do mundo. Seu prazer, segundo
o que pensa, é ter consciência de sua degradação. A ofensa dá prazer. Tem um
terrível amor-próprio e sabe que vive no lodo, ao contrário do intitulado “belo
e sublime”. Sua culpa é ser mais inteligente do que aqueles que estão a sua volta.
Para o uso cotidiano, basta a consciência humana comum. Para os homens diretos
e de ação é suficiente esta consciência. A consciência hipertrofiada leva à
inércia. Segundo as leis da natureza, somos culpados sem culpa. Um homem direto
é um homem autêntico e estúpido. Diante de um muro, os homens de ação cedem,
diferente dos homens de pensamento. O “homem do subsolo” não se respeita. Uma
dor de dentes é prazer, através dos gemidos maldosos, do sofredor. O “homem do
subsolo” indaga: é possível respeitar quem busca prazer na abjeção? A inércia é
resultado direto da consciência. Já procurou ofender-se intencionalmente. O homem se vinga porque acredita ser
justo. Para o “homem do subsolo”, ele se vinga por maldade. Julga-se um homem
inteligente por não ter iniciado nem acabado coisa alguma. O “homem do subsolo”
se respeitaria se não fizesse nada por preguiça. Ser preguiçoso é algo
positivo, é título, é carreira. Eis o século da negação. O homem é tão
afeiçoado ao sistema que deturpa a verdade para justificar sua lógica. Apesar
da ciência e da razão, o homem continua bárbaro em sua violência. O homem
precisa de uma vontade independente. A vantagem humana é o prejuízo também. É
possível o homem sem desejo e sem vontade?, indaga o “homem do subsolo”.
Vontade e mais razão é mais razão e menos vontade. O “homem do subsolo” lembra
seus 40 anos de subsolo. A razão satisfaz o lado racional do homem, não o
desejo, que é o sentido da vida. O homem é um “bípede ingrato”. O maior defeito
do homem é sua permanente imoralidade e a falta de bom-senso (que provém da
imoralidade). A história do gênero humano não é sensata. Amaldiçoar é o
privilégio e a principal qualidade que diferencia o homem dos outros animais. O
homem abre caminhos e se desvia do caminho, pois está condenado a abri-los.
Destrói caminhos para que não conclua, pois, se não, não haveria mais objetivo
na vida. O homem gosta do processo de atingir o objetivo, e não o próprio
objetivo em si. O homem ama a prosperidade e o sofrimento de modo igual. O
sofrimento é a dúvida e a negação é a causa única da consciência, maior
infelicidade para o homem. O “homem do subsolo” acredita e não acredita no que
está escrevendo, pois sente estar mentindo. Por que se dirige a nós como
“senhores” e “leitores de verdade”? Afirma escrever somente para si. É por
exibição que se dirige aos leitores, pois assim é mais fácil escrever. Por fim:
há coisas que o homem revela aos amigos; outras que revela a si próprio; outras
que tem medo de desvendar a si próprio. O papel que escreve tem algo que
intimida.
O segundo capítulo, de Notas de inverno sobre impressões de verão,
chama-se “No trem”. Aqui, a primeira informação do narrador é que o francês não
tem juízo e que a Europa exerce impressão e atração nos russos. Ironiza
chamando o Ocidente de “país das santas maravilhas”, pois tudo vem de lá:
ciência, arte, humanismo, etc. Indaga como a Rússia ainda não sofreu a completa
transformação?
O terceiro capítulo chama-se “E
inteiramente supérfluo”. Questiona se suas anotações não são reflexões,
devaneios ou “imagem arbitrária”? Apresenta outros assuntos que não
necessariamente da viagem a ser contada, como a relação da aristocracia e o
povo. Argumenta, entretanto, que se trata de recordações de inverno sobre
impressões de verão. Já passou por Eidkunen e está na França. Comenta como a
Europa forçou a porta para civilizar a Russia. Fala do russo, homem crédulo e
com espírito bonachão. Ironiza que a Rússia é, através de Petersburgo,
europeia, e que o povo russo não compreende o progresso europeu na Rússia.
Conceitua a moral julgada entre uma casamenteira e uma dama, com pesos e medidas
diferentes. Sabe que todos os russos intelectuais vão para o Ocidente, mas o
caso dele é diferente. Julga o capítulo que escreveu de supérfluo. Neste
capítulo, o leitor percebe a preocupação de Dostoiévski de fugir do pessoalismo
da contagem de uma simples viagem para a capacidade crítica de avaliar a
cultura europeia refletida na Rússia. Esta capacidade de Dostoiévski é a de,
também, trabalhar como o psiquismo destas relações refletem na sociedade russa.
O primeiro homem supérfluo é Tchátzki, personagem de Griboiédov. O tipo moderno
russo, já é radical e progressista.
O quarto capítulo chama-se “E não
supérfluo para o viajante”. O narrador inicia indagando, novamente, “por que
não terá juízo o francês?”. No trem, troca conversa com um suíço; é observado
por policiais franceses espiões. Neste momento, cruza a fronteira com a França,
passando pela alfândega de Arkelin. Questiona a liberdade europeia. Relata o
casal de velhos do hotel e as perguntas “in-dis-pensáveis” feitas ao narrador.
O quinto capítulo chama-se “Baal”,
referência ao Velho Testamento, do falso deus da carne. Paris é a mais moral
das cidades, segundo o narrador. Todos se esforçam para se convencerem de sua
felicidade. Contrasta Paris com Londres. A capital inglesa é sinônimo de
máquinas, ferros, Palácio de Cristal (imagem da modernidade monstruosa) e
Exposição Universal. Os ingleses até para se divertirem são sombrios, analisa o
narrador. Em Londres, relata a miséria dos operários; Paris esconde suas
misérias… A individualidade ocidental é ressaltada pelo narrador, em contraste
do viver em sociedade. A sociedade inglesa é, por exemplo, uma guerra de todos.
Para Dostoiévski, a Rússia está no começo de uma nova história, de uma história
cheia de esperança a partir do sacrifício cristão de cada russo, em especial, o
camponês.
O sexto capítulo chama-se “Ensaio sobre o
burguês”. Este, o sétimo e o oitavo capítulos são dedicados a Paris. Tudo é
encolhido pelo dinheiro e, daí, surge o conceito de burguês: este tem uma vida
perfeita, acumular bens é sua moralidade, sempre seu aspecto é nobre, aceita o
roubo por virtude e apresenta temor. Qual será a origem deste temor no
burguês?, avalia o narrador: a razão pura? os frasistas? os operários? os
camponeses? os comunistas? O temor tem nome: os socialistas. Em seguida, o
narrador reflexiona sobre o lema “Liberdade, igualdade e fraternidade”.
Liberdade está ligada à lei e ao dinheiro; a igualdade, segundo o francês, é
ofensa pessoal; a fraternidade, ponto curioso, não existe na realidade, pois
esta é constituída pelo egoísmo da individualidade. Quando um cabelinho entra
na máquina, ironiza o narrador, tudo se perde. Reconhece que para haver
fraternidade é preciso amar, portanto, isto é utopia. Os socialistas querem
convencer os homens que há fraternidade. Por isso pensam em “Liberdade,
igualdade, fraternidade ou morte!”. Deste modo, há o triunfo burguês. O temor
do burguês resume-se no fato de ter alcançado tudo e possuir o medo de tudo
perder, pois quem mais teme é quem mais prospera. O homem prefere a ilusão e a
falsa liberdade do que abrir mão de sua individualidade em nome do coletivo.
Somente na Rússia existe esta relação de consciência entre o indivíduo e a
comunidade. Para Dostoiévski, viver para o outro é atingir o mais alto grau de
personalidade e não anular o indivíduo em função do coletivo segundo o que
pensam os ocidentais. Deste modo, só os russos são capazes de fraternidade,
pois o europeu é essencialmente egoísta.
O sétimo capítulo chama-se “Continuação do
anterior”. O narrador desenvolve neste capítulo a virtude do burguês, ou seja,
o seu lacaio de nobre aparência. O burguês prospera e engana a si mesmo. O
canalha, por exemplo, pode ter sentimento de honra, embora seja um depravado; o
honesto, por exemplo, pode ter perdido este sentimento de honra, por isso é
desprezível. Destaque para a eloquência do francês.
O oitavo e último capítulo chama-se
“Bribri e Ma biche”. Bribri são os maridos; Ma biche, as esposas. O burguês
assim pode ser definido: acumula dinheiro, tem eloquência, deseja ver o mar e rolar
na grama. Gustave é o amante; o casamento é o dinheiro na mesma proporção entre
a noiva e o noivo. Ter amantes é manter o casamento estável. Envelhecer é ter a
esposa ao lado do marido ajudando-o a acumular dinheiro. O melodrama no teatro
é a preferência dos burgueses, do Bribri, de Ma biche e de Gustave. “Tudo
continua como deve ser.”
Notas
de inverno sobre impressões de verão é a última obra
importante do Vrêmia e, como oportunamente avalia Joseph Frank, uma “série de
artigos com os quais lança um ataque total contra as principais devoções do
credo radical”. Notas de inverno sobre
impressões de verão não se constitui como apenas apontamentos de viagens,
mas a relação estreita entre a intelectualidade russa e a cultura assimilada da
Europa. Dostoiévski discute o futuro dos homens e o socialismo. Os críticos são
unânimes de que em Notas de inverno
sobre impressões de verão há o esboço de Memórias do subsolo. Através de um narrador em primeira pessoa,
este dialoga com os seus amigos e nas reações destes com o que ele, o narrador,
está escrevendo. O que perpassa toda a obra Notas de inverno sobre impressões de verão é o pensamento que
Dostoiévski está a defender, ou seja, que o russo não abre mão de sua base
moral, por ter noção que a moral pode ser delinquida, enquanto que o europeu
tomou o mal pelo bem.
Para
concluir:
·
Sobre
a Nova Ordem, segundo Maria
Aleksevna: “Nos seus livros está escrito
que, se não se deve viver assim, então é preciso mudar tudo. Mas se não se pode
viver com as instituições atuais, como eles dizem, por que não se apressam em
introduzir uma nova ordem? Verinha, você pensa que não sei que tipo de nova
ordem descrevem nos seus livros? Eu sei: uma boa ordem. Só que eu e você não
vamos viver até lá. Pena que o povo seja tão burro. Como é que vai criar uma
nova ordem boa com este tipo de povo? Por isso vamos continuar a viver como
dantes. E você também! E como é a velha ordem? Os seus livros dizem que a velha
ordem é: enganar e trapacear. É verdade, Verinha. Enquanto não há uma ordem
nova, viva pela antiga. Engane e trapaceie. Estou lhe dizendo isso porque a
amo…” (Cap. Primeiro. I.
A vida de Vera Pavlovna na casa de seus pais.);
· Discurso
de Vera Pavlovna: “Você me chama de
sonhadora. Pergunta o que quero da vida. Eu não quero nem dominar nem ser
dominada, não quero nem enganar nem fingir, não quero seguir a opinião de
outros, ir atrás de coisas que outros me recomendam, mas das quais não preciso.
Eu não me acostumei com riqueza: não preciso dela. Porque eu haveria de
buscá-la apenas porque outros pensam que ela é agradável a todos e, por isso,
deveria também ser agradável a mim? Eu nunca fiz parte da boa sociedade, não
experimentei o que significa brilhar socialmente, e nunca tive atração por
isso. Por que eu deveria sacrificar algo para conseguir uma posição confortável
só porque, na opinião de alguns, ela é agradável? Eu nunca sacrificarei nada
por alguma coisa que não me é necessária: não, não sacrificarei nem a mim nem
meu menor capricho. Quero ser independente e viver minha própria vida. Estou
pronta para fazer sacrifícios pelas coisas que realmente me são necessárias. O
que não me é necessário, eu não quero e não quero. Não sei o que me será
necessário. Você diz que sou jovem, inexperiente e, com o tempo, mudarei. Pois
bem, quando eu mudar, mudarei. Mas agora não quero, não quero, não quero nada
que eu não queira. E você me pergunta o que quero agora. Bem, isso eu não sei.
Quero amar um homem? Não sei. Vê, ontem de manhã quando levantei da cama eu não
sabia que depois quereria amar você. Algumas horas antes de amá-la, eu não
sabia que a amaria e também não sabia como eu me sentiria quando a amasse. Assim,
neste momento eu não sei como me sentirei se amar um homem. Só sei que não
quero me submeter a ninguém. Quero ser livre. Não quero ficar devendo nada a
ninguém de modo que ninguém possa vir a mim e me dizer: você tem obrigação de
fazer algo por mim. Quero fazer apenas o que tenho desejo. E que os outros
também possam fazer apenas o que desejam. Eu não quero exigir nada de ninguém.
Não quero atrapalhar a liberdade de ninguém e quero ser livre também.”;
· Sobre os tipos de honestidade irrepreensível
e seus destinos: “Esse tipo surgiu entre
nós há pouco tempo. Antes havia apenas alguns indivíduos isolados pressagos.
Eles eram exceções e, como exceção, sentiam-se solitários, impotentes e, por
isso, quedaram-se ociosos, desanimados, exaltados, romantizados ou fantasiados.
Ou seja, não podiam ativar uma das principais características de seu tipo:
atividade racional, calculado e firme com implacável praticidade. Apesar de
serem pessoas de natureza semelhante, ainda não tinham desenvolvido um tipo
próprio. Esse tipo é recente. Apesar de um não ser muito velho, ou nada velho,
na minha época ele ainda não existia. Eu mesmo não poderia vir a ser um deles:
nasci na época errada. Exatamente por não ser um deles, não preciso me conter
ao expressar minha admiração por eles. Infelizmente não estou me elogiando
quando digo que são pessoas esplêndidas. Este tipo surgiu há pouco tempo, mas
está se propagando rapidamente. Ele nasceu com sua época, é emblema de sua
época e (será que devo dizer isso?) desaparecerá com sua época passageira. Sua
vida recente está destinada a ser de curta duração. Seis anos atrás nem se via
esse tipo de pessoa. Três anos atrás eram desprezados. Agora... bem, nem
importa o que pensam deles agora, pois daqui a alguns anos, poucos anos, vão
ser chamados: ‘Salvem-nos!’ E o que disserem será obedecido por todos. Mais
alguns anos, talvez meses, e serão amaldiçoados, expulsos de cena, vaiados e
insultados. Mas e daí? Mesmo amaldiçoados, vaiados, insultados e expulsados,
eles terão sido úteis a vocês. Isso é o suficiente para eles e, sob o ruído das
vaias e o trovão das maldições, sairão de cena orgulhosos e humildes, severos e
bondosos como eram. Não ficarão em cena? Não. Mas como será sem eles? Ruim.
Mas, de qualquer jeito, depois deles será melhor que antes deles. E, com o
passar dos anos, as pessoas dirão: ‘A vida ficou melhor depois deles, apesar de
ainda ruim’. E quando disserem isso, será a época de reaparecer esse tipo. E
ele vai reaparecer em maior quantidade, com melhor qualidade e, por isso, tudo
que é bom será mais e melhor. E de novo toda a história se repetirá em nova
forma. E tudo se passará assim até que um dia as pessoas digam: ‘Agora estamos
todos bem’. Então não mais haverá esse tipo em separado, pois todas as pessoas
serão desse tipo. E terão dificuldade em compreender como já houve época em que
ele era considerado um tipo especial e não a natureza geral de todas as
pessoas.”
EXCELENTE ARTIGO. A APROXIMAÇÃO DE NOTAS DE INVERNO COM MEMÓRIAS DO SUBSOLO É UMA APROXIMAÇÃO MUITO PERTINENTE. PARABÉNS. Edson Amâncio
ResponderExcluir