sábado, 5 de março de 2016

O ADOLESCENTE, de DOSTOIÉVSKI

O adolescente é romance considerado de formação, nas palavras de Boris Schnaidermann (e de um ou de outro crítico russo), pela trajetória apresentada por Arkadi Makárovitch Dolgorúki. Este personagem, também herói e narrador de seus Escritos, apresenta sua infância, seu abandono por parte dos pais, sua ida ao internato Touchard, sua permanência em casa de Nikolai Semiónovitch e de Mária Ivánovna em Moscou, sua ida para Petersburgo e suas relações mais específicas com Viersílov, Sófia Andrêievna, Lizavieta Makárovna, Anna Andrêievna Viersílova, Tatiana Pávlovna, Nikolai Ivánovitch Sokólski, Catierina Nikoláievna, Serguiêi Pietróvitch Sokólski, Kraft, Lambert, Trichátov, Stebielkóv e, finalmente, Makar Ivánovitch Dolgorúki. É claro que toda grande obra de Fiódor Dostoiévski não se limita ao personagem, uma vez que investe numa vasta intenção de discutir considerações sociais, políticas, literárias, filosóficas e religiosas. Centrando a psicologia de Arkadi Makárovitch Dolgorúki na busca de seu autoconhecimento e na telemaquia (busca de seu pai, no caso, Viersílov) para construir sua identidade social, Dostoiévski investiga a formação de um Estado capitalista pós libertação dos servos na Rússia, assim como a estrutura familiar em desordem. Deste modo, duas formações estão em pauta para análise: a do indivíduo e a do Estado social, na perspectiva de que um complementa o outro (ou pode complementar), pois a denominada “nova geração” na Rússia dos meados dos anos 1860 até 1870 investe na formação do capital e, por extensão, do dinheiro e do poder. Não é coincidência que a ideia de Arkadi Makárovitch Dolgorúki e sua não revelação é a de se tornar, através da obstinação e da continuidade, um Rothschild, ou, ainda, o poder acima do próprio dinheiro e, por consequência, dominar, através deste poder, o próprio capital.

Dos cinco romances gigantes de Dostoiévski (Crime e castigo - 1866, O idiota -1868, Os demônios - 1871, O adolescente – 1875, e Os irmãos Karamázov - 1880), somente O adolescente apresenta narração em primeira pessoa e dá destaque inicial para a formação do protagonista, mostrando ao leitor o passado enquanto criança de Arkadi Makárovitch Dolgorúki. Destes grandes romances dostoievskianos, a dialética também se faz presente em O adolescente, como uma lei que oscila entre a união e a destruição, assim como a autodestruição e a conservação catalizando a desordem social e individual. Exemplo nítido é o duplo de Viersílov, como explicação para a sua variação de atitudes, entretanto, não é somente neste personagem a lei da dialética exercida, pois a obscuridade e a complexa engenhosidade das psicologias humanas intercedem para o desenvolvimento intrigante e policialesco (com a carta escrita por Catierina Nikoláievna) da narrativa.

Com publicação em 1875, O adolescente apresenta já em seu título o paradoxal costumeiro das obras de Dostoiévski. Seu herói Arkadi Makárovitch Dolgorúki tem 20 anos (“agora já caminho para os vinte e um anos”, afirma o narrador no Subcapítulo III, do Capítulo I, da Primeira Parte) e ainda não enfrenta, na Rússia, o estigma da maioridade social e jurídica, como apontam alguns críticos. Mas não é apenas este jovem o caminho traçado pelo autor, porque a “nova geração” também é apresentada em sua desordem, como o jovem príncipe Serioja (que morre), Darzan (que vive com más companhias), Trichátov (cuja família se envergonha dele), Lambert (vigarista e chantagista), Kraft (que pensa na Rússia e comete o suicídio), Vássin (humanista preso), Efím (de aspecto enlouquecido) e Ólia (humilhada e ofendida na melhor expressão dostoievskiana). Na convivência com todos estes jovens, Arkadi Makárovitch Dolgorúki procura formar a sua personalidade, com idas e vindas, com altos e baixos, com usurpação ética e manutenção desta, até consolidar transformações constantes com os diálogos de Viersílov e com a tranquilidade de seus encontros com Makar Ivánovitch.

Dostoiévski, inicialmente, coloca como título deste romance Desordem. Título que não ficaria mal pelas estupendas confusões e desordem tanto em nível da personalidade dos personagens, como de toda desordem em nível familiar e social apresentados no enredo. Mas, claro, O adolescente é título que parece mais propício à intenção da obra por lidar, simultaneamente, com o particular metafórico ampliado de um adolescente  e sua estrutura familiar em desarticulação na Rússia do século XIX.

O adolescente pode não ser visto, por alguns críticos ou leitores atentos, como o romance do mesmo nível daqueles considerados “os grandes” de Dostoiévski, mas isto não significa, necessariamente, que a proposta do autor não exerça, como de costume, a instigação de um problema fremente na sociedade russa de sua época. No romance anterior a’O adolescente, no caso O idiota, Dostoiévski constrói a figura de um príncipe que simboliza Cristo. Este personagem, no caso, Liev Nikoláievitch Míchkin, é protagonista, um dos últimos príncipes Míchkins, tem 26 anos, seus pais e avós eram odnodvórsts, ou seja, camponeses do Estado que têm direito de possuir servos, estuda um pouco de ciência, embora não estudou corretamente, conhece pouca gente na Rússia, órfão desde criança até seu final trágico (“danificação completa dos órgãos mentais”), concluindo, desta forma, sua passagem racional e espiritual pela sociedade. Dialeticamente, um príncipe Cristo, ou seja, com um título que lhe dá condições de ser aceito pela sociedade, sem que esta perceba (nem valorize) que sua condição humana (a de Cristo que na terra viveu, conheceu e se sacrificou pelos homens desventurados) é a possibilidade dele mesmo, o homem, tornar-se um dia melhor. A busca, portanto, por este “homem ideal”, em O idiota, não encontraremos de modo similar em O adolescente, obra esta que aborda a vida de Arkadi Makárovitch Dolgorúki em outra perspectiva. O artista Dostoiévski e sua genialidade cria, para um tema semelhante, opções diferentes. O interessante, porém, são algumas aproximações possíveis da formação entre os dois protagonistas (órfãos; pouco estudo; jovens; familiares camponeses; etc.), embora Arkadi Makárovitch Dolgorúki queira viver sua vida isoladamente e com o objetivo de ter o poder para conquistar o dinheiro e as pessoas. Arkadi Makárovitch Dolgorúki não é exemplo único na sociedade russa dos decênios dos anos 1860 e 1870, tanto em nível da busca de um capital de giro para se firmar na sociedade que se constrói pelas regras capitalistas, como da desestruturação da família russa. Dostoiévski está atento a estas transformações sociais, familiares e dos indivíduos. Sua trama pode iludir o leitor que procura, apenas, o enredo folhetinesco e de estrutura policial, com o suspense, com a intriga e seus desenlaces para a trama evoluir. Mas o autor é Dostoiévski, portanto, aquele tipo de escritor que não se contenta com a superficialidade narrativa, pois cria uma leitura subterrânea para o leitor atento e predisposto a reflexionar sobre a tríade de toda sociedade: indíviduo/família/sociedade. Para isso, procura a narrativa confessional de Arkadi Makárovitch Dolgorúki, protagonista que busca não somente o pai, mas as diferenças entre a sua rebeldia de adolescente e a idealização de outra geração (dos anos de 1840) que não a sua (dos anos 1860/1870). O choque será inevitável, assim como a construção ficcional ganha com seus contornos que ultrapassam a simples dicotomia entre um filho e um pai.

A estrutura familiar é complexa e bastante desordenada em O adolescente. Há, inicialmente, a união entre dois servos (Sófia Andrêievna, então com 18 anos, e Makar Ivánovitch Dolgorúki, então com 50 anos). Não há discussão sobre as condições de casamento entre estes dois, pois a união é estabelecida anteriormente pelo desejo da própria família, característica típica da estrutura sociofamiliar russa. Um ano depois deste casamento, viúvo aos 25 anos, Viersílov, senhor destes servos, negocia com Makar Ivánovitch a esposa deste, esta encantada talvez, segundo o narrador, por algumas características de seu senhor. Tudo dá-se como um negócio qualquer e, então, Sófia Andrêieva parte com Viersílov. Makar Ivánovitch é recompensado por esta entrega da esposa, com dinheiro, liberdade e viagem. Depois disto, peregrina pela Rússia e por mosteiros e não abandona a boa relação com a família agora “construída/desconstruída” por Viersílov (Makar Ivánovitch lembra o trabalho futuro de Dostoiévski em Os irmãos Karamázov, nas figuras do Zossima, o stárietz, e do adolescente Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov, o Aliocha.). Um ano depois, nasce Arkadi Makárovitch Dolgorúki, o narrador, abandonado em seguida pelos pais, assim como Sófia Andrêievna também é deixada, algumas vezes, por Viersílov, quando este viaja ao estrangeiro. Dá suporte a Viersílov, a figura de Tatiana Pávlovna, personagem que, no final da história, sustentará toda a família de Viersílov e Sônia (assim também chamada Sófia Andrêievna). A criança Arkadi Makárovitch Dolgorúki é criada por estranhos e colocada em internato até terminar os seus estudos. Do convívio com seus pais, tira minimamente resquícios em sua lembrança, recordando mais da mãe e de uma certa pomba também recordada por Sônia. Seu sobrenome, Dolgorúki, é motivo de irritação para Arkadi Makárovitch Dolgorúki, pois precisa explicar que nada tem a ver com o príncipe Iúri Dolgorúki, fundador de Moscou no século XII. Arkadi Makárovitch Dolgorúki também explica, para estranhamento e gargalhadas de quem o escuta, ser filho bastardo de Viersílov, afinal, “Meu sobrenome é Dolgorúki, e meu pai legítimo é Makar Ivánovitch Dolgorúki, ex-servo doméstico dos senhores Viersílov. De sorte que sou um filho legítimo, embora seja ilegítimo no mais alto grau e minha origem não deixe a mínima dúvida.” Está, já no início da narrativa de O adolescente, a barafunda criada para Arkadi Makárovitch Dolgorúki: filho do servo Makar Ivánovitch, sobrenome igual a do príncipe Dolgorúki e filho do nobre Viersílov. Deste modo, Arkadi Makárovitch Dolgorúki explica didaticamente sua condição desfavorável, pois é filho legal de um ex-servo e filho ilegítimo de um nobre. Lembremos que Viersílov considera Sófia Andrêievna uma mulher casada, portanto, ele não poderia casar com ela em nível social. Enquanto isto, ou independentemente disto, procura conquistar outras mulheres (Catierina Nikoláievna, Lídia Akhmákova e Olga). A esperança de Arkadi Makárovitch Dolgorúki desta união legal, entre sua mãe e Viersílov, dá-se com a morte de Makar Ivánovitch, já velhinho e um tanto místico. No final do enredo, de fato, Sônia e Liza, irmã de Arkadi Makárovitch Dolgorúki, cuidam de Viersílov, assim como cuidaram de Makar Ivánovitch. A discussão de Dostoiévski flui também neste ponto do enredo, a desordem familiar e a construção de uma “família casual”, mencionada explicitamente na carta de Nikolai Semiónovitch enviada para Arkadi Makárovitch Dolgorúki, constituindo, desta maneira, um “apêndice” no final do romance, no caso, o Capítulo XIII – Conclusão, Subcapítulo III.

Se Arkadi Makárovitch Dolgorúki não é o “homem ideal” protagonizado por Míchkin, isto não o impede de querer sê-lo, através do poder que procura através da obstinação e continuidade do capital. Entretanto, ideal não significa real e, assim, sua “ideia” secreta míngua conforme a sua transformação cresce, graças ao convívio com chantagistas, mentirosos, canalhas, omissos, suspeitos, fanáticos, agiotas, nobres decadentes, jogadores, capitalistas, etc. Interessante é que esta transformação ou evolução do protagonista é sugerida e não objetivamente destacada, aprofundando sua psicologia e a psicologia de suas relações de dentro e de fora da família.

De fora da família, destacam-se as humilhações sofridas por Arkadi Makárovitch Dolgorúki no internato do senhor Touchard, com os castigos físicos e morais. Deste local, surge a figura de Lambert, que faz de Arkadi Makárovitch Dolgorúki seu criado pela condição deste, ou seja, filho de servos, como também esta figura sinistra reaparece em condição bizarra mais tarde no enredo, quando acha Arkadi Makárovitch Dolgorúki quase que congelado em rua de Petersburgo. Daí em diante na narrativa, Lambert ganha força enquanto personagem por não mais se desgrudar de Arkadi Makárovitch Dolgorúki, pois seu objetivo é a carta comprometedora de Catierina Nikoláievna. Destas humilhações do internato, vem a compensação do humilhado, ou seja, garantir, em seu sonho de grandeza, a resposta da condição humana em geral, a busca pelo dinheiro, pois “dinheiro é tudo e iguala as desigualdades”. Conquistada esta condição, o objetivo de Arkadi Makárovitch Dolgorúki é abandonar, definitivamente, a sociedade que o oprime, com a satisfação de ter o dinheiro a partir do poder da conquista, mais do que a própria conquista do dinheiro. Em Crime e castigo, Raskólnikov deseja ser um Napoleão para alavancar sua ideia, mas derrapa na vulgaridade de sua ação ao assassinar duas velhotas. Arkadi Makárovitch Dolgorúki desenvolve ideia não vulgar, pois ser Rothschild é não usar de expediente medíocre, embora, em seu amor-próprio, pense ser duas vezes Rothschild. 

Dostoiévski é observador social. Este costume não se dá somente da leitura de diversos jornais que realiza, mas também da contribuição que faz a revistas e periódicos. Manterá, mais para o final de sua vida, o denominado Diário de um escritor (1873/1878). Desta obra, sairão algumas de suas novelas curtas, como Bobók (1873) e Uma criatura dócil (1876).


Atenção Dostoiévski dá a fenômeno que o interessa, a “família casual” ou, ainda, famílias separadas e construídas desordenadamente pelo resultado das diversas crises sociais que a Rússia passa no século XIX. Em Crime e castigo, a família de Semion Zakháritch Marmieládov assim representa esta “família casual”. Marmieládov tem uma filha, a prostituta Sônia, de seu primeiro casamento; de seu segundo casamento, Semion Zakháritch Marmieládov, com Catierina Ivánovna, esta tem três filhos de seu primeiro casamento (Pólia, Kólia e Lênia). Marmieládov e Catierina Ivánovna formam aquele casal que se une para amenizar as dificuldades iniciais de sua vida e que, por fim, terminam por complicá-la ainda mais. Semion Zakháritch Marmieládov casa com Catierina Ivánovna pelo sofrimento que ela transmite a ele. De um lado, um homem arruinado que se apega à bebida como salvação; de outro, uma mulher que trabalha para poder manter certa dignidade de seu passado, oriunda de família nobre. Catierina Ivánovna, mulher culta, de origem nobre, morre no mesmo dia do enterro do marido e de suas exéquias, consumida pela tísica; fantasia uma realidade que tinha no passado, pois, no presente, a realidade mostra a desestruturação sociofamiliar da Rússia do século XIX. Dostoiévski esmiuça a família Semion Zakháritch Marmieládov também, é claro, com a figura de Catierina Ivánovna: pessoa nobre, tem três crianças (duas meninas de 9 e 6 anos e um menino de 7 anos) do primeiro casamento. É explosiva, fantasiosa e tuberculosa. Acaba por morrer desta doença em casa de Sônia. Termina, na rua, a dançar e cantar e obriga os filhos pequenos a fazer o mesmo. Enlouquecida, tuberculosa e histérica, não escuta mais ninguém.

A “família casual”, em O adolescente, surge do triângulo Makar/Sófia/Viersílov. O desenvolvimento ganha ênfase da seguinte maneira: do primeiro casamento de Viersílov, com moça da família Fanariótov, nascem Anna Andrêievna Viersílova e Andriêi Andriêivitch Viersílov, com sobrenomes Viersílov, portanto, com identidade e sem problemas de aceitação social. A desestruturação entre estes dois irmãos dá-se quando da recusa de Anna Andrêievna em aceitar dinheiro deixado pelo príncipe Nikolai Ivánovitch Sokólski, depois da fracassada tentativa dela em casar-se com o velho príncipe. Andriêi Andriêivitch deixa claro sua intenção econômica para se ligar às pessoas, independente de seu grau de intimidade, seja familiar ou não. Este mesmo Andriêi Andriêivitch não recebe seu irmão bastardo, Arkadi Makárovitch Dolgorúki, em Moscou, exatamente por este ser bastardo e sem dinheiro. Já no segundo encontro com Arkadi Makárovitch Dolgorúki, dá desculpa esfarrapada ao citar equívoco de seu criado, pois neste momento, deseja ajudar Anna Andrêievna para que esta se case com o velho príncipe rico. Neste caso, Arkadi Makárovitch Dolgorúki é figura importante, pois possui a carta que pode destruir a filha do príncipe, Catierina Nikoláievna, rival de Anna Andrêievna. Andrêi Andrêievitch é movido por dinheiro, seja decorrente este das relações familiares ou privadas da sociedade em formação capitalista. Da união (e não do casamento com Sônia), Viersílov tem outros dois filhos: o narrador Arkadi Makárovitch Dolgorúki e Lizavieta Makárovna. Veja que o patronímico é Makárovitch e Makárovna. Liza simpatiza-se com Vássia, mas engravida do principe Serguiêi Pietróvitch Sokólski, o Serioja. A intenção deste é casar com Liza, assim como já havia pedido em casamento Catierina Nikoláievna e engravidado a enfraquecida e suicida Lídia Akhmákova, enteada de Catierina Nikoláievna. O filho de Serioja e Lídia, ainda de peito, é criado por Viersílov em casa deste por uma babá. Interessante é este homem: não cria seus filhos naturais, mas se responsabiliza por criança alheia. A desordem faz-se presente nestas estruturas familiares. Lizavieta Makárovna aborta, ao cair de escada, o filho de Serioja. Arkadi Makárovitch Dolgorúki, fruto também desta segunda união de Viersílov, reclama, em determinado momento, da falta de orientação paterna que sempre precisou. Aliás, ele mesmo faz esta procura por necessidade ao aproximar-se de Viersílov. Aí, nasce um triângulo sentimental, embora este não gere disputa direta, nem tampouco concretização pela mesma mulher: pai e filho amam Catierina Nikoláievna. Em Os irmãos Karamázov, Dostoiévski explora este conflito de maneira mais direta, menos compreensível aos personagens e trágica para Dmitri Karamázov, Fiódor Karamázov e Grúchenka.

Outro aspecto que ganha força na narrativa, é, claramente, o dinheiro. Este é a base da “ideia” de Arkadi Makárovitch Dolgorúki, embora o poder seja mais importante do que o ganho do dinheiro, pois este, apenas, é vulgar. Veja o caso e a intenção de Lambert (ou de Raskólnikov). Mas há ampliação deste tema dinheiro, esta busca do lucro sem mediação do racional do personagem, uma vez que a ambição destrói a ética, a razão e a busca da verdadeira felicidade. O lucro é visto, desta forma, como algo que não faz as pessoas tornarem-se melhores na sociedade em que vivem. Outros personagens estão abduzidos pelo lucro e pela ganância, deixando, assim, de lado, a humanização das relações: (1) Catierina Nikoláievna deseja a fortuna paterna, assim como a garantia de um casamento que lhe dê tranquilidade com o barão Bioring; este, deseja, ardentemente, o dinheiro do futuro sogro e velho príncipe; (2) Anna Andrêievna Makárovna deseja casar com o velho príncipe Nikolái Ivánovitch Sokólski; (3) os príncipes Sokólski entram em disputa por terras com Viersílov ou, este, com aqueles; (4) o príncipe Serioja pretende dar, depois de resolvida a questão judiciária, um terço do valor das terras a Viersílov, mas não tem capacidade de fazer o que deseja; (5) Stebielkóv é agiota que encalacra Serioja e deseja o mesmo com Arkadi Makárovitch Dolgorúki, embora, com este, nada consiga; (6) Ólia vê-se ofendida e humilhada pelo dinheiro, tanto do comerciante Safrónov que enganou seu pai e que a deseja sexualmente, como por Viersílov, um aproveitador da fragilidade feminina; (7) Lambert agarra-se incansavelmente à carta que não possui (até roubá-la de Arkadi Makárovitch Dolgorúki) para chantagiar Catierina Nikoláievna em trezentos mil rublos; (8) jogos de bacará e de roleta são frequentados por Arkadi Makárovitch Dolgorúki, Serioja, Darzan, etc., cada um rebaixando-se ainda mais em um mundo movido pelo roubo, pela sorte e pelo desengano; (9) Lambert suborna o senhorio de Arkadi Makárovitch Dolgorúki, Mária, a empregada de Tatiana Pávlovna, Alfonsina, sustentada também por ele, além de Andrêiev, o grand dadais, entre outras relações entre dinheiro e personalidades alteradas pelos rublos. Dostoiévski reduz seus personagens graças ao dinheiro, colocando seus destinos destroçados exatamente pela incapacidade destes em relacionar o que pensam enquanto ideia elaborada e ideia já concebida por uma transformação capitalista na Rússia do século XIX. É claro que, para Dostoiévski, tanto o rico como o podre perdem-se na companhia do dinheiro, mas o pobre se perde mais, exemplificado nas figuras de Lambert e Ólia. Para o senhorio de Arkadi Makárovitch Dolgorúki, Piotr Hippolítovitch, para a cozinheira de Tatiana Pávlovna, Mária, e para a cúmplice e amante de Lambert, Alfonsina, ficam também a degradação moral. 


Em 1846, Dostoiévski escreve o romance O duplo, com enredo tripartido na construção de seus personagens, se considerarmos a duplicidade do protagonista Yákov Pietróvitch Golyádkin e os demais personagens e como aquele vê e analisa estes em detrimento da sua pessoa. Seus inimigos constituem, pois assim os avalia, um elenco que deseja prejudicar Golyádkin das piores maneiras possíveis, incitando a intriga, a desonestidade e o isolamento social. A partir do ponto de vista de Golyádkin, seus inimigos e seu duplo são, basicamente, o mesmo tipo de perfil nocivo, incrementados na neurose e na identificação de Golyákdin – através de seu duplo – como um homem não distante de toda a hipocrisia e ambição sociais que, apesar de negar veementemente, vive a demonstrar através de Golyádkin segundo. A personalidade de Golyádkin supera a si mesma, investindo numa outra forma de compor seu social que tanto nega, pois, no outro, satisfaz sua conduta que condena.

O conceito de duplo não só é trabalhado como exemplificado na figura de Viersílov em O adolescente. Vejamos o que Arkadi Makárovitch Dolgorúki escreve sobre Viersílov e o seu duplo:

“De resto, bem, rejeito de modo categórico que fosse um louco de verdade, ainda mais porque também agora ele nada tem de louco. Mas o ‘duplo’ eu admito como indubitável. O que é, no fundo, um duplo? Pelo menos segundo um livro de medicina de um especialista, que depois li a propósito, duplo não é senão o primeiro degrau de um distúrbio mental já sério, que pode acarretar um final bastante mau.”

A simbologia precisa do estado de duplicidade psicológica é materializada no ícone milagroso deixado por Makar Ivánovitch para Viersílov. Este, ao se apoderar do objeto legado, tem vontade (e avisa aos presentes) de quebrá-lo. Termina por fazer exatamente isto, jogando o objeto contra a quina do forno. O ícone parte-se em dois, duplicando-se. Assim Viersílov se pronuncia sobre a duplicidade:

“Palavra que não sei o que se passa comigo, amável Tatiana Pávlovna. Não se preocupe, ainda me lembro de que você é Tatiana Pávlovna e que é amável. Entretanto, vim aqui apenas por um minuto; queria dizer algo de bom a Sônia e procuro a palavra adequada, embora meu coração esteja cheio de palavras que não consigo pronunciar; são todas palavras muito estranhas. Sabe, parece-me que é como se eu estivesse todo me duplicando – ele olhou para todos nós com uma expressão de extrema seriedade no rosto e do modo mais sinceramente comunicativo. – Palavra que no pensamento eu me duplico e tenho um medo terrível disso. É como se a nosso lado estivesse um duplo nosso; nós mesmos somos inteligentes e sensatos, mas o outro deseja forçosamente cometer algum absurdo a nosso lado e fazer uma coisa às vezes divertidíssima, e às vezes observamos que somos nós mesmos que queremos fazer essa coisa absurda. E sabe Deus para quê, ou seja, é algo como querendo sem querer, resistindo com todas as forças e querendo. Conheci um médico que durante o enterro de seu pai começou de repente a assobiar na igreja. (…) Sabe, Sônia, vou pegar outra vez a imagem (ele a pegou e a girou nas mãos) e, sabes, estou agora, neste instante, com uma tremenda vontade de batê-la contra o forno, contra esse ângulo ali. Estou certo de que ela vai se partir de vez em duas metades – nem mais, nem menos. (…) Súbito, ao dizer a última palavra, ele se levantou num ímpeto, num piscar de olhos arrancou a imagem das mãos de Tatiana e, levantando furiosamente o braço, bateu com ela com toda a força contra a quina do forno azulejado. A imagem partiu-se exatamente em dois pedaços… Ato contínuo, ele se voltou para nós com o rosto vermelho, quase rublo, e cada traço do rosto pôs-se a tremer e a mexer-se.”

O adolescente é romance com narração em primeira pessoa. O ano da ação é o de 1874. Este narrador-protagonista biografa de modo confessional a sua própria vida, desde sua infância até o tempo presente, ou seja, sua adolescência ou seus 20 anos de idade. Fiódor Dostoiévski divide o romance em Primeira Parte (com dez capítulos em romano), Segunda Parte (com nove capítulos em romano) e Terceira Parte (com treze capítulos em romano, sendo o décimo terceiro também a Conclusão). Através da técnica do romance folhetinesco, o enredo ganha ares de mistério, de tensão emocional, de surpresas, de elementos bizarros e de reviravoltas dentro daquilo que o autor gosta de desenvolver em nível de espaço temporal, ou seja, a redução do tempo: Arkadi Makárovitch Dolgorúki, o narrador, resolve escrever seus Escritos (assim como os chama) depois de um ano dos acontecimentos que viveu. O tempo gira em torno de seis meses, reduzidos em cerca de doze dias intercalados nos meses de setembro, novembro e dezembro. A trama concentra-se na procura de Arkadi Makárovitch Dolgorúki por seu pai Viersílov, no que se refere à identificação ou não com este, ou seja, na telemaquia para poder formar sua personalidade e definir, finalmente, uma identidade social. Deste modo, Arkadi Makárovitch Dolgorúki avalia a si mesmo no momento em que escreve, como, também, avalia sua atuação enquanto personagem do passado que viveu com os demais personagens.
A intenção de Dostoiévski é, também, mostrar como a escrita evolui e é formada. Para isso, Arkadi Makárovitch Dolgorúki discute com o leitor o processo de construção em alguns momentos do enredo, antecipando, alertando, explicando com breves notas entre parênteses, pulando situações para mais tarde explicar, sugerindo, dando sequência à cena que o leitor já conhece o seu resultado, enfim, alterna a possibilidade de construção com a participação ativa do leitor, embora creia que não terá leitor para seus escritos. No Subcapítulo I, garante não escrever para todos, pois não deseja os elogios dos leitores, embora na Conclusão enviou seus Escritos para serem avaliados por Nikolai Semiónovitch, seu ex-educador. Arkadi Makárovitch Dolgorúki afirma que evitará os “floreios literários” e que não se julga literato. Deste modo, a crítica aos seus Escritos por parte de Nikolai Semiónovitch é fundamentada, pois ainda há o que fazer neste trabalho literário do autobiografista.


Outro ponto interessante é uma espécie de moldura no processo narrativo. Um prefácio é construído no Subcapítulo I, do Capítulo I, da Primeira Parte: “Não obstante, eis aqui o prefácio: não haverá mais nada desse gênero. Mãos à obra: se bem que não há nada mais complicado do que empreender alguma coisa, talvez, até, qualquer coisa.” No Subcapítulo II, da Primeira Parte, Capitulo I, assim procede: “Começo, quer dizer, gostaria de começar minhas notas a partir de dezenove de setembro do ano passado, isto é, exatamente do dia em que pela primeira vez encontrei… Mas explicar quem encontrei, assim, de antemão, quando ninguém sabe de nada, seria vulgar…” Explicação da explicação começa a marcar o estilo do narrador Arkadi Makárovitch Dolgorúki. No Subcapítulo III, da Primeira Parte, Capítulo I, inicia, finalmente, pela conclusão de seu curso colegial, ou seja, o ensino fundamental. No Capítulo XIII, denominado Conclusão, no último parágrafo do Subcapítulo II, da Terceira Parte, assim Arkadi Makárovitch Dolgorúki abre a frase: “Terminei. Talvez algum leitor goste de saber: o que foi feito de ‘minha ideia’ e o que significa essa minha vida nova que está começando e que anunciei de forma tão enigmática?” No final deste parágrafo do Subcapítulo II, Capítulo XIII – Conclusão, da Terceira Parte, assim se manifesta o narrador: “Depois de examinar ao meu redor, fiz a opção minuciosa e crítica por uma pessoa: Nikolai Semiónovitch, meu ex-educador em Moscou e marido de Mária Ivánovna. Não que eu necessitasse de fato de algum conselho: mas tive simplesmente o irresistível desejo de ouvir a opinião desse egoísta totalmente alheio e até um ponto frio, mas homem de uma inteligência indiscutível. Enviei-lhe meu manuscrito pedindo segredo, porque ainda não o havia mostrado a ninguém e muito menos a Tatiana Pávlovna. O manuscrito me foi devolvido duas semanas depois de enviado e acompanhado de uma carta bastante longa. Insiro apenas alguns trechos dessa carta, por encontrar neles uma concepção comum e algo como que esclarecedor. Eis os trechos.” Termina aí, então, a moldura narrativa proposta por Arkadi Makárovitch Dolgorúki. Em seguida, ou seja, o Subcapítulo III, Capítulo XIII – Conclusão, da Terceira Parte, surge como um “apêndice” ou “posfácio” dos Escritos de Arkadi Makárovitch Dolgorúki.

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