terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

BOBÓK - DOSTOIÉVSKI


O título Bobók, considerado o vocábulo em russo, significa “fava”, podendo também ser admitido como "falha", de favar. Em nível dos personagens, o conto é estruturado em um narrador, sua relação rápida com um retratista, com eventuais editores, um parente morto distante e a família deste e, enfim, a um grupo de mortos que o fazem escutar quando ele, o narrador, Ivan Ivánitch, distraído, dormita em cima de uma sepultura. Em nível do grupo de mortos, há diferentes classes sociais da Rússia do século XIX, predominando, entretanto, a classe abastada. Desta conversa, o narrador Ivan Ivánitch faz o leitor tirar algumas conclusões, assim como o conto servirá como crítica à classe rica que se deteriora moralmente, em situação similar porque o morto quando fede, no conto, é porque fede em sua moral construída em vida, e resto de vida que há nos mortos reside na consciência destes.


Dostoiévski escreve Bobók, no ano de 1873, também em resposta aos ataques que sofre com a publicação de Os demônios em 1871. Dostoiévski acompanha intensamente, em Genebra, a atividade política de Mikhail Aleksandróvitch Bakunin (1814-1876) a partir da integração entre imigrantes revolucionários russos. Nietcháiev teria sido o escolhido para representar, na Rússia, o pensamento de Bakunin, com direito à documentação em seu nome assinado por Bakunin para representá-lo em seus interesses políticos num Comitê Geral. Usando deste poder, Nietcháiev abusa de suas atribuições, terminando por assassinar o estudante da Academia de Agricultura Ivanov, por este discordar e não querer mais fazer parte dos quintetos e da organização revolucionária clandestina. Spítkin, irmão de Anna Grigórievna Dostoiévskaia, segunda esposa de Dostoiévski e que fora sua estenógrafa, também fazia parte da organização revolucionária. Está instalada, então, a Justiça Sumária do Povo. A partir destes pressupostos e do assassinato de Ivanov em 21 de novembro de 1869, Dostoiévski deseja dar uma resposta aos revolucionários russos. Em carta a Máikov, datada de 24 de fevereiro de 1870, Dostoiévski afirma, impressionado pela morte do estudante Ivanov, estar elaborando uma história mais próxima da realidade do que a construída em Crime e castigo, que muito promete, pois causará um grande efeito no público leitor.


A resposta de Dostoiévski é rápida aos niilistas, aos revolucionários e aos socialistas: “o ateísmo e o socialismo são estranhos ao povo russo e até incompatíveis com sua natureza”. Segundo Dostoiévski, uma sociedade sem Deus apoiada unicamente na ciência e na razão não estabelece relações sólidas, pois é inútil. A dicotomia torna-se presente e cresce em sua ideia central: os conceitos políticos, ideológicos e religiosos de Piotr Vierkhoviénski são rechaçados pela ideia russa de Chátov, enriquecida pela universalidade de Tíkhon. Se Piotr “vence” Chátov, o mesmo não acontece com Stavróguin, o ocidentalista e niilista rico e inteligente, “derrotado” por Tíkhon, o ex-bispo profético: Stavróguin enforca-se, destruindo as suas manifestações extremas da paixão e do prazer que o tornaram vazio interiormente. Ao perder seu equilíbrio interior desempenhado ao longo do enredo de Os demônios, Stavróguin sai de cena para não se denunciar através de sua confissão da “vida de um grande pecador”. Está morto o ocidentalismo em relação à ortodoxia russa. O diálogo entre Tíkhon e Stavróguin antecipa as discussões religiosas e filosóficas entre Ivan e Aliocha em Os irmãos Karamázov, assim como o enforcamento de Stavróguin corresponde ao tiro dado por Svidrigáilov em si mesmo, pois não há perdão para quem causa sofrimento nas crianças.

Outro motivo da escrita de Bobók pode ser entendido pelo comentário de um colunista de “A voz”, usando a pseudonímia Nil Admirari, ao atacar um retrato de Dostoiévski exposto no Museu de Belas Artes: “o retrato é de um homem alquebrado por uma doença grave.”. Nesta época, Dostoiévski era acusado de fazer literatura tratando somente da anormalidade, da psicopatia e do desequilíbrio. Neste ponto, Bobók dá resposta a “Uma certa pessoa”.

Finalmente, Dostoiévski também parodia o romance de Boboríkin, Sacrifício noturno. Este escritor tinha como apelido Pierre Bobó.

Mas o principal objetivo de Dostoiévski é, através deste conto fantástico, descrever de modo conciso a desarticulação moral das camadas elitizadas da sociedade russa do século XIX. O narrador, no caso Ivan Ivánitch, também autor, não vê necessidade de prefácio para seu conto, embora faça um micro-prefácio. Em seguida caracteriza-se pelas opiniões de um conhecido seu, assim como define-se tímido. Lembra que já o consideraram louco. Comenta de um retrato que se deixou pintar e o comentário do pintor com o realismo das rugas vivinhas do retratado na tela. Comenta, também, de obras suas recusadas por editores e afirma que o tempo é de palermas e não de Voltaire! Discorre sobre conceitos de loucura, inteligência e não loucura, além de seu estilo lembrado por alguém como truncado. Até acha que deve ser mesmo truncado, pois não passa muito bem neste momento de criação literária, pois a cabeça dói, seu caráter muda e está a escutar, ao que parece, vozes. Escuta, por exemplo, a palavra Bobók. Deste modo, procura diversão, mas termina por ir em enterro de parente. Lá, distraído, dormita sob uma sepultura e, entre sonho e semiconsciência de estar acordado, escuta conversas entre diversos mortos. Antes, ao passear pelas sepulturas, percebe a divisão das classes sociais. A partir deste ponto da narrativa, o estranhamento do fantástico predomina até o espirro do narrador que faz os mortos se calarem. Da galeria dos mortos, há General-major, funcionário bajulador deste General, uma senhora que aprecia jovens rapazes, um barão petulante, uma leviana mocinha de 15 anos, uma ilustre grã-senhora, um engenheiro, um conselheiro efetivo secreto, um filósofo, uma grã-fina e somente um representante da classe ordinária, no caso, um vendeiro. Após escutar todos os barbarismos de imoralidade e de amoralidade, Ivan Ivánitch não aceita nem se acostuma com aquilo que ouviu. Entretanto, tem a esperança de ver a história que escreveu publicada na revista Grajdanin.

Algumas pérolas do narrador Ivan Ivánitch:

·  “Hoje o humor e o bom estilo estão desaparecendo e se aceitam insultos em vez de gracejos.”;
·  “Não me ofendo: não sou desses literatos que levam o leitor ao desatino.”;
·  “Ideias mesmo andam escassas, porque hoje só há lugar para fenômenos.”;
·  “Teu estilo, diz ele, está mudando, está truncado. Truncas, truncas, e sai uma oração intercalada, após a intercalada vem outra intercalada, depois mais alguma coisa entre parênteses, e depois tornas a truncar, a truncar…”.

 
Dostoiévski quando mais jovem.

Bobók é conto pequeno e dividido por blocos ou fragmentos narrativos separados por estrelinhas, ou seja, graficamente assim apresentado: * * *. Seu narrador é Ivan Ivánitch e, sua confusão, com Fiódor Dostoiévski pode ser notada. O estilo truncado, anunciado pelo próprio narrador segundo o comentário de um conhecido seu, é a marca da narrativa, assim como o fantástico registra, metaforicamente, a realidade a ser mostrada e analisada. Alguns conceitos são trabalhados pelo narrador e, também, pelo mundo dos mortos que comunicam seus pensamentos ao distraído narrador que termina por dormitar em cima de um túmulo em recepção de um parente distante que morre. As mudanças de ideias discorridas ao longo do conto faz este se apresentar fragmentado ou, ainda, atrapalhado propositadamente pelos atropelos da forma de raciocinar do narrador. Por fim, este narrador sugere a possibilidade de seu texto ser publicado no Grajdanin, revista que Dostoiévski assume como redator-chefe e que lhe traz dissabores internos e externos. Internos por seus atritos com o príncipe conservador Mechtchérski, dono da revista; externos, por seus pares da literatura estranharem e atacarem Dostoiévski por trabalhar em revista reacionária. De fato, a revista e o príncipe iam de encontro às reformas discutidas e conquistadas na Rússia. Dostoiévski, por seu lado, era defensor das reformas sociais iniciadas por Alexandre II com a libertação dos servos em 1861. A ambição de Dostoiévski nesta revista era poder ampliar suas discussões sociais com o publico leitor. No ano de 1874, Dostoiévski não trabalha mais na revista Grajdanin, rompendo com o príncipe Mechtchérski.

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