O título O sonho do Titio (1859) sugere relações familiares imediatas, ou
seja, a de uma estrutura familiar sendo a ampliação do enredo com suas
complicações e consequências em âmbito de um microcosmos, além de possível
idealização do Titio mencionado. Nada impede, entretanto, um alargamento temático
no contexto de uma província ou de uma cidade metaforizada, principalmente o
título criado por Dostoiévski. Assim, algumas surpresas aparecem se comparadas
com o título. Primeiro: o sonho que não é sonho, pois é colocado na cabeça do Titio
(o príncipe K ou, ainda, Gavrila) como sonho para substituir a realidade como
tal se apresentou (o pedido de casamento do príncipe à Zinaída Afanássievna);
segundo: o Titio que não é tio legítimo de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, o
sobrinho impostor. O verdadeiro parente só aparece no capítulo XV, quando da
morte do príncipe K em hotel em Mordássov, meio que acidentalmente, pois
desloca-se a caminho de Petersburgo, passa na fazenda do príncipe
em Dukhánovo, há sessenta verstas de Mordássov, para, finalmente (por não
encontrar o tio nesta fazenda), chegar até Mordássov e se deparar com a morte
do mesmo. Providencia, então, o enterro do velho príncipe. Este parente
legítimo é príncipe também, no caso, de nome Schepetílov. Sorrateiramente,
Pável Alieksándrovitch Mozglyákov desaparece da cidade, reaparencendo, três
anos mais tarde, em local longínquo da Rússia. Terceiro: a esperada estrutura
familiar apoiada na figura do Titio não é o centro da discussão, mas, sim, na
de dois personagens que ganham força na construção do enredo: Mária
Alieksándrovna Moskaliova e Pável
Alieksándrovitch Mozglyákov, deixando a figura do próprio Titio em segundo
plano na narrativa, embora com o poder de comicidade que sua figura empresta à
trama. Os parentes do Titio estão em Moscou e pretendem, inicialmente,
colocá-lo em manicômio. Por isso sua fuga para a fazenda de Dukhánovo.
A discussão proposta por
Fiódor Dostoiévski é a própria figura da tediosa província de Mordássov e seus
habitantes, título que poderia assim ser parafraseada de outro título do
próprio autor: A aldeia de Stepántchikovo
e seus habitantes. Neste texto, porém, a ideia central passa a ser, de
fato, a família e não a aldeia em si. Veja o que escrevi sobre este romance
quando de sua análise:
“O título A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes e seu subtítulo (Das memórias de um desconhecido) soam
abrangentes e banais, num primeiro instante, ao leitor. Esta armadilha
dostoievskiana é retificada pelo desenvolvimento do enredo, pois, sutilmente,
cada habitante vai surgindo de dentro da casa de Iegor Ilítch Rostániev como
que saindo sem muita pretensão, meio que sem querer, até começar a se desvendar
através de suas falas e comportamentos um tanto estranhos e associados a
conchavos para lutar por seus espaços na aldeia metaforizada pela própria casa
herdada por Iegor Ilítch Rostániev. O parasitismo e a hipocrisia, aliadas ao
humor, enraizam-se para não mais saírem do enredo. O que o leitor espera
basicamente não ocorre, ou seja, conhecer os habitantes da aldeia em suas
casas, fora de casa alheia. O social esperado pelos diversos personagens
“próximos” de Stepántchikovo também não acontece, pois o emblemático conflito
ficará, em regra, em quatro paredes. O movimento de atração é a casa, assim
como Iegor Ilítch Rostániev; este movimento é de “fora para dentro” a partir do
segundo capítulo da Primeira parte.”
Em O sonho do
Titio, embora a urdidura do texto parta de duas pessoas da família de Mária
Alieksándrovna Moskaliova, no caso ela mesma e de sua filha Zinaída
Afanássievna, a percepção que o leitor tem é a da busca da ascensão social
desta estrutura familiar através da metáfora da ascensão real de uma burguesia
que se forma depois da abolição dos servos em 1861 com a imposição do
surgimento do capitalismo na Rússia. Mas o texto de Dostoiévski é de 1859, e a
ideia inicial de 1856, para ser justo com a observação aguçada do autor sobre
os acontecimentos sociais. A velha aristocracia, que se une com a burguesia
(tempos depois no plano real e social russos), é representada, não somente pelo
príncipe K (e seu legítimo herdeiro Schepetílov), como com o casamento de Zinaída
Afanássievna com um velho general no final do enredo. Ela, representando esta
burguesia em formação na Rússia; ele, simbolizando a velha estrutura de uma
nobreza. Da família de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, assim como as demais
famílias de Mordássov, pouco ou nada se sabe, além dos escândalos e mexericos
que cada um dos personagens bem resolve fazer para ou livrar sua cara (ou fuça)
de alguma complicação ou para conseguir uma vantagem social (ou seja, a de
participar da sociedade e não ser excluído dela!) na tediosa província. Desta
maneira, Dostoiévski desfila personagens que mostram muito bem como é a própria
província de Mordássov: um local em que a intelectualidade não é apresentada
como virtude, um ambiente em que as atividades culturais não são mencionadas
(exceção de uma possibilidade de um teatro filantrópico a se realizar e que
termina por não ser apresentado como efetivo no enredo) e, por fim, uma
província que tem como mérito o interesse de um cronista-narrador-testemunha em
desvendar as relações de mesquinharias de seus moradores com o subtítulo Das crônicas de Mordássov, quando da
polvorosa passagem e permanência de três dias de um príncipe por algumas de
suas ruas e por algumas de suas casas. Dostoiévski escolhe, propositadamente, o
nome de Mordássov, pois a onomástica é recurso que o autor de O sonho do Titio torna fundamental para
explicar atitudes, ações, psicologismos, intenções predeterminadas, etc. para
seus personagens ou localidades na maioria de suas obras. Mordássov vem de
“fuça”, “focinho”, simbolizando aquilo que é desmascarado ou, popularmente,
jogado na cara de alguém. No decorrer do enredo, os personagens vão desmascarando
a si mesmos, acidental ou incidentalmente, e, por extensão, aos outros e à
própria província. Interessante notar que a expressão em russo bróssit v mórdu significa “lançar na
fuça” ou “falar/dizer na cara”, ratificando uma das personalidades dos típicos
mexeriqueiros de uma província mexeriqueira que, no descontrole de uma
discussão, desempenham muito bem o seu papel social de desmascarar seu rival
mexeriqueiro.
O sonho do Titio centraliza a discussão em
dois personagens bem distintos, mas que se completam graças às mentiras e às ambições
sociais. De um lado, Mária Alieksándrovna Moskalióva, esposa de Afanassi
Matvêitch e mãe de Zinaída Afanássievna. O marido é um inepto cerebral e quando
perde o emprego por esta sua incapacidade, é afastado por Mária Alieksándrova
para a fazenda que os sustenta. A filha é uma romântica shakespereana que vive
escandaloso caso às escondidas (mas descoberto) com Vassíli, um reles professor
do colégio distrital. Este, com vil atitude após desavença com Zina, entrega
uma das cartas que trocou com sua amada para que se torne pública. Conclusão:
Zina fica desonrada em Mordássov. No final do enredo, a reconciliação entre os
dois ex-amantes, quando da morte deste por tísica forçada. O romanticismo
dostoievskiano investe em algumas breves páginas no rápido e último convívio
entre os dois jovens em casa paupérrima do ex-professor em bairro também miserável
de Mordássov. Aliás, basicamente o único momento de descrição com certo acento
social da classe desfavorecida na crônica. Para culminar no Romantismo apelativo,
a pobre mãe lavadeira de Vassíli acusa, num rompante, ao ver o filho morto,
Zina como responsável de tirá-lo de sua vida. Zina, entorpecida pelo cansaço de
horas a fio ao lado do moribundo, mal escuta a acusação materna e sai, quase
enlouquecida, do casabre. Cena seguinte: Pável Alieksándrovitch a intercepta e deseja
retomar sua relação de noivado, mas o olhar emblemático de Zina o despede
definitivamente.
Mária Alieksándrovna faz parte
de um quadro de mulheres dispostas a entreter-se na vida alheia custe o que
custar, nem que para isso precise manipular, de todas as formas, a realidade
que lhe interessa. Não é único exemplo no enredo, mas, certamente, é o mais
expressivo, ao ponto de ser chamada pelo narrador de heroína. A seu lado,
surgem outras quatro escandalosas e sarcásticas senhoras: Natália Dmítrievna, Anna
Nikoláievna, Felissata Mikháilovna e Sófia Pietrovna. Com critérios de amizade
e de solidariedade bastante efêmeros e, portanto, duvidosos, estas mulheres
representam a mais chantagista categoria de caráter da província de Mordássov.
Cada uma, com seu interesse adequado, procura puxar para si o príncipe K,
motivo de “cabo-de-guerra” entre estas mulheres e Mária Alieksándrovna. Mas
tudo se resolve para, novamente, complicar-se. Em casa de Mária Alieksándrovna,
quando das ironias e indiretas destas mulheres para testar o assunto do
casamento entre Zina e Gavrila (o Titio), Mária Alieksándrovna toma a
dianteira, ao perceber que está perdendo terreno em suas intenções, e comunica
oficialmente (à sociedade ali representada por estas mulheres) o pedido de
casamento do príncipe. Surpreendidas e julgando-se valorizadas pelo segredo
íntimo da família, estas mulheres cumprimentam Zina, Afanassi e Mária
Alieksándrovna, além, é claro, do príncipe K.
Entra em cena, então, o outro
lado de interesse, no caso, Pável Alieksándrovitch Mozglyákov. Este induz com
mentira, a realidade vivida pelo Titio, tornando-a sonho. Como a memória do
príncipe é imprestável, ele acredita mesmo que o pedido de casamento não passa
de um sonho com uma “moça encantadora”, no caso, Zina. Derrota implacável Pável
Alieksándrovitch aplica em Mária Alieksándrovna. Anteriormente a esta cena,
Pável Alieksándrovitch havia destratado Zina (e, ela, a ele, chamando-o de
imbecil) ao escutar, atrás de porta, a enganação que ambas fazem com o príncipe
ao completar a bebedeira dele iniciada em casa de Anna Nikoláievna. De posse
desta traição que se julga vítima, Mozglyákov esculacha Zina e pretende fazer o
mesmo com Mária Alieksándrovna. Esta, rapidamente, inverte a situação: chama-o
de amigo e explica seu plano ao casar Zina com o príncipe e, garante, quando Gavrila
morrer, Mozglyákov conquistar e casar com Zina. O rapaz anima-se, mas, depois,
sozinho com a noite, a neve, a solidão e o bairro distante e perdido em que se
encontra, acredita que, mais uma vez, está sendo passado para trás pela esperta
mãe de Zina. Aí, o trabalho onomástico de Dostoiévski com o sobrenome de
Mozglyákov, de “mozglyák” (“homem de cérebro”; “homem racional”) e de
“mozglyávi” (de “fraqueza”; de “mirrado”). Este antagonismo forma a psicologia
de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, tornando-o capaz de investidas racionais
contra o Titio e a mãe de Zina, assim como lances de estupidez e de fraqueza ao
manejar seu comportamento em situações de crise que enfrenta.
Para salvar a própria mãe,
Zina investe contra a própria mãe para, romanticamente e sem grande raciocínio,
denunciar toda a falcatrua das duas, puxando para si a responsabilidade da sedução
que fizeram com o velho e postiço príncipe K. Inicialmente, Mária
Alieksándrovna afirma assumir perante a filha toda responsabilidade por algum
fracasso do plano. Após o desmaio de Mária Alieksándrovna, consequência da
“certeza” do príncipe ao dizer que o pedido foi sonho e, portanto, equívoco de
Mária Alieksándrovna, ao retomar a consciência, a mãe de Zina só tem a gritar
com a filha para que esta não fale algo contra a própria família. Tudo isso é
em vão, pois o discurso de Zina é para achincalhar não somente com sua família
como, também, com a sociedade mediocrizada por aquele bando de mulheres e
homens que se submetem ao despotismo delas e deles próprios. Zina é a voz, um
tanto inconsequente, rouca e romântica, da libertação de um mundo social que
controla, que oprime e dita as normas do que vem a ser o certo e o errado
conforme seus interesses. Mas o discurso de Zinaída Afanássievna não tem eco
nem tampouco durabilidade, pois seu fim é, apenas, o de não mais permanecer ali
em Mordássov com sua família. Depois do escândalo sociofamiliar, Mária
Alieksandrovna, o marido e a filha mudam-se para casa no campo e, dali, de uma
janela, Mária Alieksándrovna espreita seu cacoete de inspecionar a vida alheia.
Vê, ao longe, por exemplo, o enterro do velho príncipe. Passados três anos, na
conta do narrador-testemunha, uma nova vida surge para esta família, agora, frequentando
os salões da nobreza. Neste momento da narração, numa espécie de conclusão do
capítulo XV (encontramos a separação no texto por algumas linhas da suposta
conclusão dos fatos em Mordássov), dois personagens sucumbem ao término do
relato: Afanassi Matvêitch (que não é mais citado no enredo) e Pável Alieksándrovitch
Mozglyákov. Este parece, particularmente, ter uma sobrevida ao encontrar, em
nobre salão de festa em local distante da Rússia, Zina. Esta está casada com
velho general e, ao ver seu antigo desafeto, o ignora completamente. Após esta
cena, Moglyákov depara-se com Mária Alieksándrovna (toda engalanada). Esta, ao
menos, troca algumas palavras com o convidado para, em seguida, deixá-lo só.
Mordássov sequer é mencionada. Em seguida, este ainda acredita na conquista
barata, ao se mostrar apaixonado e vítima, resquício de um romantismo afetado e
sugerido, outrora, por Mária Alieksándrovna, para conquistar Zina. Cansado de
esperar (e com dor nas pernas) o olhar de reconhecimento de Zina pelo
sofrimento amoroso dele (ou sequer um olhar ao menos), deixa o salão bastante
humilhado. No dia seguinte, em plena viagem, tem ideias diferentes que,
certamente, farão com que ele toque a vida para frente…
O final de O sonho do Titio corrobora com a
intenção dos casamentos com interesses financeiros, tema universal de toda
atenta obra que retrata a questão sociofamiliar. Esta análise bem calculada já
havia sido apresentada por Mária Alieksándrovna à Zina no capítulo V:
Permita-me expor meu ponto de vista e no mesmo instante concordarás
comigo. O príncipe vai viver mais um ano, se muito dois, e, a meu ver, é melhor
ser uma jovem viúva do que uma velha solteirona, já sem falar que, por morte
dele, serás uma princesa, livre, rica, independente! Minha amiga, talvez vejas
com desprezo todos esses cálculos – cálculos com a morte dele! Mas eu sou mãe,
e que mãe me condenaria por enxergar longe? (…) Enfim, compreenderá… isto é,
estou simplesmente querendo dizer que com a morte do príncipe poderás te casar
de novo com quem quiseres…
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