segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O SONHO DO TITIO - DOSTOIÉVSKI

O título O sonho do Titio (1859) sugere relações familiares imediatas, ou seja, a de uma estrutura familiar sendo a ampliação do enredo com suas complicações e consequências em âmbito de um microcosmos, além de possível idealização do Titio mencionado. Nada impede, entretanto, um alargamento temático no contexto de uma província ou de uma cidade metaforizada, principalmente o título criado por Dostoiévski. Assim, algumas surpresas aparecem se comparadas com o título. Primeiro: o sonho que não é sonho, pois é colocado na cabeça do Titio (o príncipe K ou, ainda, Gavrila) como sonho para substituir a realidade como tal se apresentou (o pedido de casamento do príncipe à Zinaída Afanássievna); segundo: o Titio que não é tio legítimo de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, o sobrinho impostor. O verdadeiro parente só aparece no capítulo XV, quando da morte do príncipe K em hotel em Mordássov, meio que acidentalmente, pois desloca-se  a caminho  de Petersburgo, passa na fazenda do príncipe em Dukhánovo, há sessenta verstas de Mordássov, para, finalmente (por não encontrar o tio nesta fazenda), chegar até Mordássov e se deparar com a morte do mesmo. Providencia, então, o enterro do velho príncipe. Este parente legítimo é príncipe também, no caso, de nome Schepetílov. Sorrateiramente, Pável Alieksándrovitch Mozglyákov desaparece da cidade, reaparencendo, três anos mais tarde, em local longínquo da Rússia. Terceiro: a esperada estrutura familiar apoiada na figura do Titio não é o centro da discussão, mas, sim, na de dois personagens que ganham força na construção do enredo: Mária Alieksándrovna Moskaliova e Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, deixando a figura do próprio Titio em segundo plano na narrativa, embora com o poder de comicidade que sua figura empresta à trama. Os parentes do Titio estão em Moscou e pretendem, inicialmente, colocá-lo em manicômio. Por isso sua fuga para a fazenda de Dukhánovo.


A discussão proposta por Fiódor Dostoiévski é a própria figura da tediosa província de Mordássov e seus habitantes, título que poderia assim ser parafraseada de outro título do próprio autor: A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes. Neste texto, porém, a ideia central passa a ser, de fato, a família e não a aldeia em si. Veja o que escrevi sobre este romance quando de sua análise:

“O título A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes e seu subtítulo (Das memórias de um desconhecido) soam abrangentes e banais, num primeiro instante, ao leitor. Esta armadilha dostoievskiana é retificada pelo desenvolvimento do enredo, pois, sutilmente, cada habitante vai surgindo de dentro da casa de Iegor Ilítch Rostániev como que saindo sem muita pretensão, meio que sem querer, até começar a se desvendar através de suas falas e comportamentos um tanto estranhos e associados a conchavos para lutar por seus espaços na aldeia metaforizada pela própria casa herdada por Iegor Ilítch Rostániev. O parasitismo e a hipocrisia, aliadas ao humor, enraizam-se para não mais saírem do enredo. O que o leitor espera basicamente não ocorre, ou seja, conhecer os habitantes da aldeia em suas casas, fora de casa alheia. O social esperado pelos diversos personagens “próximos” de Stepántchikovo também não acontece, pois o emblemático conflito ficará, em regra, em quatro paredes. O movimento de atração é a casa, assim como Iegor Ilítch Rostániev; este movimento é de “fora para dentro” a partir do segundo capítulo da Primeira parte.”

Em O sonho do Titio, embora a urdidura do texto parta de duas pessoas da família de Mária Alieksándrovna Moskaliova, no caso ela mesma e de sua filha Zinaída Afanássievna, a percepção que o leitor tem é a da busca da ascensão social desta estrutura familiar através da metáfora da ascensão real de uma burguesia que se forma depois da abolição dos servos em 1861 com a imposição do surgimento do capitalismo na Rússia. Mas o texto de Dostoiévski é de 1859, e a ideia inicial de 1856, para ser justo com a observação aguçada do autor sobre os acontecimentos sociais. A velha aristocracia, que se une com a burguesia (tempos depois no plano real e social russos), é representada, não somente pelo príncipe K (e seu legítimo herdeiro Schepetílov), como com o casamento de Zinaída Afanássievna com um velho general no final do enredo. Ela, representando esta burguesia em formação na Rússia; ele, simbolizando a velha estrutura de uma nobreza. Da família de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, assim como as demais famílias de Mordássov, pouco ou nada se sabe, além dos escândalos e mexericos que cada um dos personagens bem resolve fazer para ou livrar sua cara (ou fuça) de alguma complicação ou para conseguir uma vantagem social (ou seja, a de participar da sociedade e não ser excluído dela!) na tediosa província. Desta maneira, Dostoiévski desfila personagens que mostram muito bem como é a própria província de Mordássov: um local em que a intelectualidade não é apresentada como virtude, um ambiente em que as atividades culturais não são mencionadas (exceção de uma possibilidade de um teatro filantrópico a se realizar e que termina por não ser apresentado como efetivo no enredo) e, por fim, uma província que tem como mérito o interesse de um cronista-narrador-testemunha em desvendar as relações de mesquinharias de seus moradores com o subtítulo Das crônicas de Mordássov, quando da polvorosa passagem e permanência de três dias de um príncipe por algumas de suas ruas e por algumas de suas casas. Dostoiévski escolhe, propositadamente, o nome de Mordássov, pois a onomástica é recurso que o autor de O sonho do Titio torna fundamental para explicar atitudes, ações, psicologismos, intenções predeterminadas, etc. para seus personagens ou localidades na maioria de suas obras. Mordássov vem de “fuça”, “focinho”, simbolizando aquilo que é desmascarado ou, popularmente, jogado na cara de alguém. No decorrer do enredo, os personagens vão desmascarando a si mesmos, acidental ou incidentalmente, e, por extensão, aos outros e à própria província. Interessante notar que a expressão em russo bróssit v mórdu significa “lançar na fuça” ou “falar/dizer na cara”, ratificando uma das personalidades dos típicos mexeriqueiros de uma província mexeriqueira que, no descontrole de uma discussão, desempenham muito bem o seu papel social de desmascarar seu rival mexeriqueiro.
O sonho do Titio centraliza a discussão em dois personagens bem distintos, mas que se completam graças às mentiras e às ambições sociais. De um lado, Mária Alieksándrovna Moskalióva, esposa de Afanassi Matvêitch e mãe de Zinaída Afanássievna. O marido é um inepto cerebral e quando perde o emprego por esta sua incapacidade, é afastado por Mária Alieksándrova para a fazenda que os sustenta. A filha é uma romântica shakespereana que vive escandaloso caso às escondidas (mas descoberto) com Vassíli, um reles professor do colégio distrital. Este, com vil atitude após desavença com Zina, entrega uma das cartas que trocou com sua amada para que se torne pública. Conclusão: Zina fica desonrada em Mordássov. No final do enredo, a reconciliação entre os dois ex-amantes, quando da morte deste por tísica forçada. O romanticismo dostoievskiano investe em algumas breves páginas no rápido e último convívio entre os dois jovens em casa paupérrima do ex-professor em bairro também miserável de Mordássov. Aliás, basicamente o único momento de descrição com certo acento social da classe desfavorecida na crônica. Para culminar no Romantismo apelativo, a pobre mãe lavadeira de Vassíli acusa, num rompante, ao ver o filho morto, Zina como responsável de tirá-lo de sua vida. Zina, entorpecida pelo cansaço de horas a fio ao lado do moribundo, mal escuta a acusação materna e sai, quase enlouquecida, do casabre. Cena seguinte: Pável Alieksándrovitch a intercepta e deseja retomar sua relação de noivado, mas o olhar emblemático de Zina o despede definitivamente.
Mária Alieksándrovna faz parte de um quadro de mulheres dispostas a entreter-se na vida alheia custe o que custar, nem que para isso precise manipular, de todas as formas, a realidade que lhe interessa. Não é único exemplo no enredo, mas, certamente, é o mais expressivo, ao ponto de ser chamada pelo narrador de heroína. A seu lado, surgem outras quatro escandalosas e sarcásticas senhoras: Natália Dmítrievna, Anna Nikoláievna, Felissata Mikháilovna e Sófia Pietrovna. Com critérios de amizade e de solidariedade bastante efêmeros e, portanto, duvidosos, estas mulheres representam a mais chantagista categoria de caráter da província de Mordássov. Cada uma, com seu interesse adequado, procura puxar para si o príncipe K, motivo de “cabo-de-guerra” entre estas mulheres e Mária Alieksándrovna. Mas tudo se resolve para, novamente, complicar-se. Em casa de Mária Alieksándrovna, quando das ironias e indiretas destas mulheres para testar o assunto do casamento entre Zina e Gavrila (o Titio), Mária Alieksándrovna toma a dianteira, ao perceber que está perdendo terreno em suas intenções, e comunica oficialmente (à sociedade ali representada por estas mulheres) o pedido de casamento do príncipe. Surpreendidas e julgando-se valorizadas pelo segredo íntimo da família, estas mulheres cumprimentam Zina, Afanassi e Mária Alieksándrovna, além, é claro, do príncipe K.


Entra em cena, então, o outro lado de interesse, no caso, Pável Alieksándrovitch Mozglyákov. Este induz com mentira, a realidade vivida pelo Titio, tornando-a sonho. Como a memória do príncipe é imprestável, ele acredita mesmo que o pedido de casamento não passa de um sonho com uma “moça encantadora”, no caso, Zina. Derrota implacável Pável Alieksándrovitch aplica em Mária Alieksándrovna. Anteriormente a esta cena, Pável Alieksándrovitch havia destratado Zina (e, ela, a ele, chamando-o de imbecil) ao escutar, atrás de porta, a enganação que ambas fazem com o príncipe ao completar a bebedeira dele iniciada em casa de Anna Nikoláievna. De posse desta traição que se julga vítima, Mozglyákov esculacha Zina e pretende fazer o mesmo com Mária Alieksándrovna. Esta, rapidamente, inverte a situação: chama-o de amigo e explica seu plano ao casar Zina com o príncipe e, garante, quando Gavrila morrer, Mozglyákov conquistar e casar com Zina. O rapaz anima-se, mas, depois, sozinho com a noite, a neve, a solidão e o bairro distante e perdido em que se encontra, acredita que, mais uma vez, está sendo passado para trás pela esperta mãe de Zina. Aí, o trabalho onomástico de Dostoiévski com o sobrenome de Mozglyákov, de “mozglyák” (“homem de cérebro”; “homem racional”) e de “mozglyávi” (de “fraqueza”; de “mirrado”). Este antagonismo forma a psicologia de Pável Alieksándrovitch Mozglyákov, tornando-o capaz de investidas racionais contra o Titio e a mãe de Zina, assim como lances de estupidez e de fraqueza ao manejar seu comportamento em situações de crise que enfrenta.

Para salvar a própria mãe, Zina investe contra a própria mãe para, romanticamente e sem grande raciocínio, denunciar toda a falcatrua das duas, puxando para si a responsabilidade da sedução que fizeram com o velho e postiço príncipe K. Inicialmente, Mária Alieksándrovna afirma assumir perante a filha toda responsabilidade por algum fracasso do plano. Após o desmaio de Mária Alieksándrovna, consequência da “certeza” do príncipe ao dizer que o pedido foi sonho e, portanto, equívoco de Mária Alieksándrovna, ao retomar a consciência, a mãe de Zina só tem a gritar com a filha para que esta não fale algo contra a própria família. Tudo isso é em vão, pois o discurso de Zina é para achincalhar não somente com sua família como, também, com a sociedade mediocrizada por aquele bando de mulheres e homens que se submetem ao despotismo delas e deles próprios. Zina é a voz, um tanto inconsequente, rouca e romântica, da libertação de um mundo social que controla, que oprime e dita as normas do que vem a ser o certo e o errado conforme seus interesses. Mas o discurso de Zinaída Afanássievna não tem eco nem tampouco durabilidade, pois seu fim é, apenas, o de não mais permanecer ali em Mordássov com sua família. Depois do escândalo sociofamiliar, Mária Alieksandrovna, o marido e a filha mudam-se para casa no campo e, dali, de uma janela, Mária Alieksándrovna espreita seu cacoete de inspecionar a vida alheia. Vê, ao longe, por exemplo, o enterro do velho príncipe. Passados três anos, na conta do narrador-testemunha, uma nova vida surge para esta família, agora, frequentando os salões da nobreza. Neste momento da narração, numa espécie de conclusão do capítulo XV (encontramos a separação no texto por algumas linhas da suposta conclusão dos fatos em Mordássov), dois personagens sucumbem ao término do relato: Afanassi Matvêitch (que não é mais citado no enredo) e Pável Alieksándrovitch Mozglyákov. Este parece, particularmente, ter uma sobrevida ao encontrar, em nobre salão de festa em local distante da Rússia, Zina. Esta está casada com velho general e, ao ver seu antigo desafeto, o ignora completamente. Após esta cena, Moglyákov depara-se com Mária Alieksándrovna (toda engalanada). Esta, ao menos, troca algumas palavras com o convidado para, em seguida, deixá-lo só. Mordássov sequer é mencionada. Em seguida, este ainda acredita na conquista barata, ao se mostrar apaixonado e vítima, resquício de um romantismo afetado e sugerido, outrora, por Mária Alieksándrovna, para conquistar Zina. Cansado de esperar (e com dor nas pernas) o olhar de reconhecimento de Zina pelo sofrimento amoroso dele (ou sequer um olhar ao menos), deixa o salão bastante humilhado. No dia seguinte, em plena viagem, tem ideias diferentes que, certamente, farão com que ele toque a vida para frente…


O final de O sonho do Titio corrobora com a intenção dos casamentos com interesses financeiros, tema universal de toda atenta obra que retrata a questão sociofamiliar. Esta análise bem calculada já havia sido apresentada por Mária Alieksándrovna à Zina no capítulo V:

Permita-me expor meu ponto de vista e no mesmo instante concordarás comigo. O príncipe vai viver mais um ano, se muito dois, e, a meu ver, é melhor ser uma jovem viúva do que uma velha solteirona, já sem falar que, por morte dele, serás uma princesa, livre, rica, independente! Minha amiga, talvez vejas com desprezo todos esses cálculos – cálculos com a morte dele! Mas eu sou mãe, e que mãe me condenaria por enxergar longe? (…) Enfim, compreenderá… isto é, estou simplesmente querendo dizer que com a morte do príncipe poderás te casar de novo com quem quiseres…

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