A
obra-prima de Leskov é a novela Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, de
1864. O enredo é dividido em 15 capítulos relativamente curtos. Um narrador
distanciado narra a passagem, pelo distrito que mora, de uma mulher de um
comerciante conhecido, uma mulher de “gênio impetuoso” e protagonista de um
“terrível drama”. Catierina Lvovna Izmáilova, mulher de 24 anos, é casada com
Zinóvi Boríssitch Izmáilov. Sua vida é tediosa, porque vive trancada em casa.
Nesta casa, mora também o pai de Zinóvi, Borís Timofiéitch Izmáilov, homem com
pouco mais de 80 anos. Zinóvi tem pouco mais de 50 anos. Catierina é sua
segunda esposa. Com cinco anos de casados, Catierina Lvovna Izmáilova é
estéril, culpa que recai sobre ela. Como afirma o narrador, “o tédio das casas
de comerciante, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar.”
dá o clima do que possa ocorrer no enredo. Entretanto, Catierina não se mata
por este gosto, pois assassina inicialmente o sogro, envenenando-o, depois o
marido, estrangulando-o com a ajuda de seu amante e capataz da fazendola
Serguiêi Filípitch,
rapaz atrevido e conquistador, e, finalmente, dá cabo do herdeiro e sobrinho de
Bóris, o menino Fiódor Liámin, sufocando o garoto com um travesseiro também com
a ajuda de Serguiêi. Sentindo-se culpado por seus crimes, Serguiêi, amedrontado
por sua superstição, crendo que os mortos achincalham com a casa que agora
Catierina vive sozinha, sendo que quem achincalha janelas e portas são alguns
homens que testemunham o assassinato do pequeno Fiódor, termina, o capataz,
confessando os crimes feitos pelo casal amante. Desterrados para a Sibéria a
trabalhos forçados depois das tradicionais chibatadas em praça pública, o
incorrigível conquistador Serguiêi aproxima-se de duas prisioneiras, Fiona e
Sônia. Com a primeira, sua relação é efêmera, não causando danos à Catierina;
entretanto, com Sônia, as provocações do novo relacionamento são insuportáveis
para Catierina, mulher que não amava nem a si mesma, mas que matou por causa do
amante. Desta forma, quando os presos estão a entrar na barca no Volga, depois
de tamanhas provocações de Serguiêi e castigo físico impretado por este em
Catierina, através de chibatadas, ela, enlouquecida e febril, vê, nas ondas do
Volga, seus três mortos, Borís, Zinóvi e Fiódor. Agarrando Sônia pelas pernas,
joga-se. Catierina e Sônia são tragadas pelo violento e imperdoável Volga.
Do
fantástico ao real, do psicologismo das ações às superstições dos
protagonistas, Lady Macbeth do Distrito
de Mtzensk discute o amor levado às últimas consequências guiado pela cega
paixão, pela estupidez humana e pelo egoísmo desenfreado na alma de um homem e
de uma mulher.
Mas
o enredo de Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk não se limita a encenar a
loucura inquebrantável e a psicologia intratável de seus protagonistas. O texto
vai além, pois instiga já com a projeção deste narrativo, graças à epígrafe “Só
coramos ao cantar a primeira canção.”, numa espécie de recado de que “preciso
só um empurrãozinho pra começar a fazer aquilo que não me envergonharei mais”.
Com este provérbio russo, inicia a vida e a trajetória de Lady Macbeth
Catierina Lvovna Izmáilova ou, ainda, sua derradeira gana de matar quem esteja
a atrapalhar o seu caminho. Entretanto, antes de discutir o frenesi e a
sequência dos assassinatos de Catierina Lvovna Izmáilova, é necessário
estruturar a psicossociabilidade deste relato.
Catierina
Lvovna Izmáilova vive em casa de comerciantes que visam, como de praxe, não
somente o trabalho, mas o lucro. Desta relação natural dos abastados,
esconde-se uma mulher, uma mulher enclausurada. Na casa dos Izmáilov, além dos
subordinados empregados, moram o sogro Borís Timofiéitch, o marido Zinóvi
Boríssitch e a submissa Catierina Lvovna Izmáilova. Vítima de ordens e de
acusações destes seus dois déspotas insensíveis, a jovem pobre casa pelo fato
de ser escolhida (e não ter a vontade de escolher) por um homem mais velho e em
seu segundo casamento como, também, é de praxe na sociedade um tanto rural
russa. Por não conseguir dar filhos a Zinóvi, ainda é culpada de ser estéril.
Interessante que, mais tarde, Catierina Lvovna Izmáilova tem filho, embora no
período de ausência do marido, ainda que não tenha fechado nove meses de seu
desaparecimento. Esta ambiguidade se desfaz e faz-se porque Catierina Lvovna
Izmáilova já tem o capataz do marido como amante, além de o primeiro casamento
do marido também Zinóvi não ter tido filho, embora, no final do enredo, a filha
de Catierina Lvovna Izmáilova é considerada herdeira universal por ser filha
legítima (e, portanto, por ter direito) de Zinóvi e a assassina deste. A
sociedade cuida, desta forma, da virilidade de Zinóvi, suspeito real de
esterilidade. Leskov, ainda no Capítulo
Primeiro, mostra, desta forma, a típica sociedade russa do século XIX e as
relações das moças pobres, seus casamentos, suas não escolhas, seus solitários
sonhos e seus algozes maridos, sogros, etc., embora sem muito detalhismo, até
porque o frenético de sua condução narrativa é o motivo de tornar seu texto
ágil e interessante para o ávido leitor. Este, o leitor, percebe o
inconformismo e o tédio de Catierina Lvovna Izmáilova em relação à casa e ao
distrito de Mtzensk.
O
narrador explica ao antecipar, então, boa parte do enredo para o leitor que
também aprecia a obra de William Shakespeare (assim como o título da novela
também esclarece) o que sua protagonista pode fazer já que nobres do distrito a
chamam de Lady Macbeth. Na peça de
Shakespeare, Lady Macbeth arquiteta a trajetória de ascensão de Macbeth, seu
marido, para este se tornar rei da Escócia. Para Lady Macbeth, de Shakespeare,
falta para Macbeth o “instinto do mal”; ela também afirma, em determinado
momento, para Macbeth, que “não gostarias de roubar no jogo, mas não te
importarias em ganhar ilegitimamente” ou, ainda, “para enganar o mundo, é
preciso ser semelhante ao mundo.”. Já para Macbeth, “um rosto falso deve
esconder o que sabe um falso coração.”. Atento à tragédia shakespereana,
Nikolai Leskov contextualiza seus personagens num distrito da Rússia em meio à
natureza e, principalmente, no clímax da história, no fabuloso rio Volga.
Serguiêi pode não ter a exuberância de Macbeth, mas a psicologia de ambos se
assemelha nas ambições e nos assassinatos que executam, pois, homens que são,
desejam o poder. Também possuem similitudes em seus medos, em seus
arrependimentos e em seus delírios fantasmagóricos depois de suas conquistas
efêmeras e assassínias. Macbeth mata Duncan; Serguiêi Filípitch ajuda a matar Zinóvi; Macbeth tortura-se
com os espectros dos mortos; Serguiêi crê na disposição de espectros estarem
batendo nas janelas depois da morte do menino Fiédia; Macbeth manda matar
Banquo; Serguiêi ajuda a matar o menino Fiédia; na peça de Shakespeare, as
feiticeiras profetizam o destino de Macbeth; em Leskov, o Volga profetiza, com
seus mortos, mais mortes; em Shakespeare, Lady Macduff é assassinada com seus filhos;
em Leskov, Sônia é assassinada; Lady Macbeth, de Shakespeare, morre; Lady
Macbeth do distrito de Mtzensk, também. Se Macbeth morre em combate, Serguiêi
tem, em vida, a morte de sua vida, pois tanto Catierina Lvovna Izmáilova quanto
Sônia morrem, além de sua imagem ficar comprometida perante os detentos que
seguem para a Sibéria. O fim de Lady Macbeth, de Shakespeare, é seu suicídio em
seu castelo; a prisão de Lady Macbeth, de Leskov, começa em sua casa, quando
vigiada por dois guardas, após testemunha ver a morte de Fiédia, e termina com
seu suicídio (e também seu último assassinato, pois leva consigo Sônia). Como
diz Hécate, a deusa da feitiçaria e governante das três feiticeiras da peça Macbeth, “A confiança é o maior inimigo
dos mortais.”. Esta sentença clássica serve para os dois textos e, deste modo,
o intertextualismo que Leskov faz com Shakespeare torna-se primoroso, pois Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk
torna-se destacada obra do autor russo, contemporâneo de Dostoiévski e de
Tolstói.
No
caso de Catierina Lvovna Izmáilova, o agravante é, também, o da casa onde mora
ser tipicamente patriarcal, não somente pelos conceitos exigidos pela sociedade
russa daquela época do século XIX, como pela ausência de outra figura feminina
que possa, com Catierina Lvovna Izmáilova, estabelecer contato mais sensível.
Este é um ponto interessante de o leitor notar no mundo fechado da esposa de
Zinóvi: esta vive sozinha em seu mundo feminino. O primeiro problema a atingir
Catierina Lvovna Izmáilova é o tédio e a melancolia, condições que levaram
outras protagonistas da literatura universal a se atirarem de cabeça na
literatura romântica. Leskov faz Catierina Lvovna Izmáilova ser diferente de
tantas moças leitoras de sua época, pois ela não busca na literatura consolo,
uma vez que tem a realidade para servi-la. O segundo problema é a ausência do
amor na vida desta criatura, assim como, o terceiro problema em sua vida ser a
falta de liberdade. Neste ponto da narrativa, a ausência do marido Zinóvi já
não é lamentada, pois, segundo o argumento de Catierina Lvovna Izmáilova, é um
a menos a mandar e a esculachar. No Capítulo
Segundo, com o problema no moinho, Zinóvi vê-se na condição de trabalhar
mais, ausentando-se definitivamente de sua casa. Aí um paralelo para a enclausurada
Catierina Lvovna Izmáilova: como o sogro está trabalhando na cidade, ela fica
sozinha em sua própria casa. Resolve, então, também sair de casa, deslocando-se
para o jardim. No quintal, há trabalhadores, há algazarra, há brincadeira, há
liberdade e outro modo de viver, além, é claro, do conquistador capataz
Serguiêi Filípitch.
Para o leitor, o rumo do enredo parece que ficará, apenas, no velho e
tradicional adultério, mas, não, pois a literatura leskoviana surpreenderá, com
agitação, com psicologia, com psicopatologia e sequência de assassinatos,
ingredientes estes comandados por uma cega paixão e um apelo de inferioridade
que Serguiêi Filípitch não suporta para si e para a sua condição de homem
diferenciado, segundo julga, dos demais homens: afinal, Serguiêi Filípitch sabe amar…
Será
a paixão de um homem sedutor a provocar uma mulher sem paixão em sua casa que
engolirá o enredo com assassinatos e acúmulo de tragédias: há quatro
assassinatos e um suicídio no enredo. O deslumbramento e a submissão de Catierina
Lvovna Izmáilova por Serguiêi Filípitch aprofunda e liberta a psicologia alterada de uma
mulher que se propõe alcançar o poder pela ganância. A submissão inicial no
mundo de Zinóvi não é diferente da submissão que Catierina Lvovna Izmáilova
estabelece com Serguiêi Filípitch, com a diferença que de passiva passa, a heroína, a
ser ativa. Para fazer também seu amante ascender socialmente, insistência por
ele também trabalhada, Catierina Lvovna Izmáilova não mede seus limites e, se
constrói limites, estes são para eliminar qualquer tipo de obstáculo que venha
a interferir em sua nova vida: cria mentiras, realiza matanças e serve à cega
paixão. Sua indiferença à família, à sociedade, à filha e à vida faz de seu
personagem um tipo definido de patologia que descrê das bases de qualquer
estrutura social. As atitudes de Catierina Lvovna Izmáilova é provida pelas
piores atitudes dos homens em sociedade que atrofiam o mundo das mulheres.
Catierina Lvovna Izmáilova herdou para conquistar o poder o pior do gênero
masculino para conquistar o mundo das mulheres no século XIX. Esta metáfora
leskoviana é surpreendente como tema rompedor de uma literatura que anarquiza,
em geral, o mundo das mulheres por retratar a realidade social.
A
religiosidade não é esquecida por Leskov, com suas tradições tipicamente
russas. Fiédia lê, instantes antes de sua morte, o livro do santo que mais
gosta, no caso, São Teodoro de Stratilato; sua bábuchka vai à missa; os trabalhadores, também; assim como há o
místico, o sobrenatural, o sonho e o pesadelo, a premonição, a culpa e a pureza
da infância indefesa com seus medos. Enquanto isso, Catierina Lvovna Izmáilova
e Serguiêi Filípitch
evitam a religião. A cena do assassinato do menino Fiédia é dolorosa de se ler.
O receio da criança e sua desconfiança eternizam, no leitor, a covardia do
mundo dos homens frente ao mundo inocente das crianças. A cena descrita causa
lástima no leitor.
A
inferioridade de Serguiêi Filípitch fomenta o caráter social na novela Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.
Este rapagão sedutor lembra com insistência, à sua amante, de sua inferioridade
e do desrespeito que nutrem por ele. Desta forma, Catierina Lvovna Izmáilova
garante que o transformará em comerciante. O enredo centraliza exatamente este
ponto das seguintes diferenças sociais: há comerciantes, os antigos patrões de
Serguiêi Filípitch,
os trabalhadores, parentes dos Izmáilov, a pobre moça agora nobre pelo
casamento com um comerciante e, finalmente, um homem insatisfeito com sua
condição social. No final da narrativa, o narrador dispara esta: “O mais
desolador dos quadros: um punhado de pessoas, arrancadas do mundo e privadas de
qualquer sombra de esperança em um futuro melhor, afunda na lama negra e fria
de uma estrada de terra batida.”, em relação aos degredados. Serguiêi Filípitch já havia sido demitido de casa servida
anteriormente por ter se envolvido com a patroa. Na nova casa, no caso a de
Zinóvi, envolve-se, também, com a patroa, levando às últimas consequências seu
desejo de mundança de status social.
Sua tentativa de mudar de status
social é premeditada. Serguiêi Filípitch utiliza seu sensualismo e seu poder de sedução (suas
únicas armas) para ascender socialmente (que coisa atual!!!!!). Sua beleza é
sua superioridade, seu uso é a artimanha para conquistar alguém frágil no
amor. Conquistado seu objeto de desejo e punido não só pela rapidez da
conquista como pela perda desta conquista, não se envergonha de traduzir a
maior das cafajestices: seu desdém à mulher que o levou a ascender social e
criminalmente. Ela reconhece, ao menos, que matou por ele.
A
natureza. Lírica e furiosa, é esplendidamente trabalhada por Leskov. Aí o
diálogo criado pelo autor torna sua novela ainda mais próxima do genial da
peça de Shakespeare. Somente um ótimo escritor tem a capacidade de construir
este intertextualismo, adaptando para a cultura e o contexto de sua própria
realidade e de seu tempo e cultivando a tragicidade das intenções dos
personagens num ambiente diverso dos castelos shakespereanos. Leskov explora a
neve, a lama, a chuva, o jardim, as ondas furiosas e violentas do Volga, e até “Os
vidros das janelas começam a degelar e lacrimejar.” antes do assassinato do menino Fiédia. Leskov não se
contenta com as rápidas descrições, pois ambienta a natureza com o desenvolver
das cenas e das ações dos personagens. O lirismo bucólico condiz com a paixão e
o amor do casal amante; a furiosa natureza, com a punição do casal assassino. O
desfecho que Catierina Lvovna Izmáilova dá a sua indignação é apoiada pelo Volga:
este traz ao delírio da jovem os três mortos de Catierina Lvovna Izmáilova –
Borís, Zinóvi e Fiédia. O vagalhão do Volga é como o ressuscitar daqueles
mortos no imaginário da assassina. A impetuosidade do Volga e de Catierina
Lvovna Izmáilova concluem o relato, com a força demoníaca de uma mulher
adulterina que, traída também, perde a mínima capacidade de se integrar à
sociedade que nunca a integrou realmente. De fato, para Catierina Lvovna
Izmáilova, “não existia a luz nem a
escuridão, nem o mal nem o bem, nem o tédio nem a alegria; ela não compreendia
nada, não amava ninguém, não amava nem a si mesma.”.
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