terça-feira, 1 de outubro de 2013

Crime e Castigo - Fiódor M. Dostoiévski

CRIME E CASTIGO (1866)


П р е с т у п л е́ н и е     и      н а к а з а́ н и е


(PRESTUPLENIE I NAKAZANIE) 


Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski



 


“... mas pode ser que Deus absolutamente não exista.” (de Rodion à Sônia) 

Inicialmente, “No Mensageiro Russo”, em 1866. 

Em forma de livro, em 1867 (com modificações). 

Nova edição, sem modificação, em 1870. 

Última publicação em vida do autor, com alguns reparos, em 1877.


Crime e Castigo (1866) é escrito cerca de vinte anos depois da estreia de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) na literatura russa (com Gente pobre, publicado em 1846 e escrito no ano anterior). Em Gente pobre, a dimensão do destino dos personagens Varvara e Makar é destacada na troca de cartas entre os dois. A preocupação que ambos apresentam em seus discursos é relevante na medida em que o amadurecimento do homem e do escritor Dostoiévski e de sua escrita aparecem na estrutura psicológica associada à ideológica de seus personagens. Há início, em seu primeiro romance, de uma dimensão que se tornará, com o tempo, mais profunda e audaciosa. Entretanto, desde Gente pobre até Recordações da casa dos mortos (1862), Dostoiévski vacila ainda em certo romanticismo em A senhoria (1847), Noites brancas (1848) e Niétotchka Niezvânova (1849). Mas este vacilo é mesclado com a impaciência nevrálgica de seus narradores oportunos com o que vivenciam. Memórias do subsolo inaugura, em 1864, o investimento subterrâneo das neuroses dos protagonistas confessionais de Dostoiévski. A denominada fase de maturidade do escritor russo termina com a publicação, em 1880, de Os irmãos Karamázov.

Raskólnikov, protagonista do romance Crime e castigo, é um jovem intelectualizado (estudante da faculdade de Direito de São Petersburgo que abandona o curso por questãos financeiras e tem artigo publicado sobre a psicologia do crime em revista da cidade) propenso a acreditar que a partir de um crime, ao eliminar “um princípio” e não um homem, poderá fazer ações boas. Assim, cometido o delito, vê-se despreparado e fracassado para pôr em prática sua teoria. Aniquilado também psicologicamente, percorre os labirintos de seus pensamentos, as ruas de São Petersburgo (becos, pátios abandonados, canais, pontes, prédios suspeitos, tabernas, descampados, etc.) e segue insinuações e delírios que se submete ao fazer a leitura de tudo o que o cerca impiedosa e amargamente. Desta maneira, surgem os demais personagens, servindo para que Rodion viva o seu “estado febril; delírio e semiconsciência”, enfim, seu inferno moral e subterrâneo, apesar de que para si mesmo não entenda o crime como um ato delituoso. Para Raskólnikov, os “homens extraordinários” (assim como Napoleão) diferenciam-se dos “homens ordinários”, pois estes não conseguem ultrapassar o limite estabelecido pela lei. Burlar o limite, ou seja, a lei, é possível para aquele que faz o próprio limite e que se julga diferente da massa. O fracasso de Raskólnikov é que o tortura, e, por extensão, o próprio crime é compreendido como incompleto. Ao entregar-se à polícia, também elucida o caso criminal em São Petersburgo, submete-se ao sofrimento e ratifica seu fracasso ao matar Aliena (a velha viúva usurária) e Lisavieta (irmã explorada por Aliena). No fim do romance, o sofrimento serve para sua redenção e sua ressurreição graças também à ex-prostituta Sônia na Sibéria.

A galeria de personagens em Crime e castigo confirma tipos expressivos da obra dostoievskiana como um todo: homens e mulheres que não aceitam facilmente a dimensão de seus destinos. Exemplos significativos são os de Marmieládov e a bebida; Catierina e a miserabilidade; Sônia, portadora da “carteira de identidade amarela” que sustenta a família e traz a Raskólnikov a redenção; Avdótia, irmã de Ródia, que abre mão do noivado seguro financeiramente para não ser humilhada pelo noivo Lújin, capitalista que a vê como miserável; Svidrigáilov, que procura superar-se fazendo doações de rublos e copeques para aqueles que pouco possuem; Razumíkhin e sua espontaneidade tola e eficaz; e Porfiri, torturador psicológico de Ródia com suas hipóteses acerca do crime cometido por este.


Dostoiévski acena, em Crime e castigo, com cerca de oitenta personagens, entre bêbados, criados, funcionários públicos (conselheiro titular, funcionário do ministério, conselheiro de Estado, conselheiro forense, tenente, inspetor de polícia, escriturário, general, juiz de instrução e policial); um ou outro príncipe e princesa apenas citados, patifes endinheirados, velhas usurárias, senhorias, cantores e proprietários de tabernas; mendigos, ex-estudantes, pintores e empregados do povo em geral; turba de curiosos; alguns estrangeiros (alemão, polaco e judeu), conselheiro da Corte, crianças famintas e órfãs, alfaiate, cozinheira e zeladores, desocupados em geral, médicos, padres, comerciantes, viúvas, livreiro, camponês, prostitutas, agenciadoras de meninas, pedófilo, assassinos, costureiras, moradores da comuna, entre outros.

Do quarto à cidade de Rodion Románovitch Raskólnikov

Viver o limite, ultrapassá-lo ou não, conformar-se e analisá-lo teoricamente são alguns dos recursos para os grandes temas da alma humana apresentados por Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski. Seguindo os raciocínios de um bêbado inveterado, como Semion Zakháritch Marmieládov, ou de um patife descarado, como Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov, respectivamente, nos deparamos com as conclusivas revelações:

“...porque tudo já é do conhecimento de todos e tudo o que estiver encoberto será revelado; e não é com desprezo mas com humildade que considero tudo isso.” e “...na terra da gente é melhor: aqui, ao menos a gente põe a culpa de tudo nos outros e se desculpa a si mesmo.”

Mas relembrando Rodion Románovitch Raskólnikov e seu pensamento furioso em sua “natureza morbitamente irritada”, é possível compreendê-lo ainda mais:

“Aí estão eles nesse vaivém pelas ruas, mas cada um deles é um patife e um bandido já pela própria natureza; pior ainda, é um idiota! Mas tenta alguém me evitar o exílio e todos eles ficarão loucos de nobre indignação! Oh, como eu odeio todos eles!”

São Petersburgo – é a cidade com seus “cheiros insuportáveis das tavernas”, seus “bêbados”, seu abafamento - como “um quarto sem postigos” (comparação importante com o quarto de Raskólnikov!), seu pôr-do-sol e sua influência na psicologia do protagonista (diversas vezes ao longo do romance a imagem do final do dia associa-se com a angústia delírica e soturna de Ródia). Segundo Svidrigáilov, assim ele define São Petersburgo: “cidade de semiloucos”, “tantas influências sombrias, grosseiras e estranhas sobre a alma humana”, “influências climáticas” e “centro administrativo de toda a Rússia”. Pela primeira vez na literatura russa, Petersburgo é tão reveladora de seus subterrâneos e, por extensão, das minúcias psicológicas de seus antros e de seus habitantes;

O quarto de Raskólnikov - “Gaiola minúscula, de uns seis passos de comprimento, do aspecto mais deplorável, com um papel de parede já amarelado, empoeirado e todo descolado, e tão baixa que um homem um pouquinho alto que fosse ficaria horrorizado, com a impressão permanente de que a qualquer momento bateria com a cabeça no teto.” “Era difícil chegar a maior degradação e mais desleixo”, ou “cubículo amarelo, parecido com um armário ou baú”, “Todo o quarto era de um tamanho tal que se podia abrir o trinco sem se levantar da cama.”, “Cabide de navio.” e “Quarto ruim... parece um caixão de defunto.” Segundo o próprio Raskólnikov, “eu me encafuei num canto do meu quarto como uma aranha”. Esta afirmação de Dostoiévski faz o leitor recordar a ideia de Fraz Kafka (1883-1924) em A metamorfose (1912).

As relações de Rodion são as mais diversas ao longo da narrativa de Crime e castigo. Desta forma, Dostoiévski cria relações tanto de piedade como de irritabilidade e confronto de seu jovem protagonista com os demais personagens. Conforme Rodion avança em suas intenções, suas ações o impossibilita de viver em liberdade, engessando sua capacidade de pensar, de raciocinar e, principalmente, lidar com as sensações que cria ao redor de si.


Uma obra significativa de encontros e desencontros, de arruaças sociais e emotivas que enriquecem os relacionamentos de Rodion, ao ponto de o leitor, por exemplo, sentir-se sufocado e desorientado na trajetória frenética que Rodion busca enfrentar desafiando as mais variadas formas de convívio social. Raskólnikov acaba, por via indireta, testar o seu limite com o mundo. Entre distrações de pensamento, de distratos pessoais, de esquecimentos devido ao seu estado quase vegetativo de raciocínio, até delírios febris, Rodion estabelece em seu domínio mental hipocondrias infames, dissonantes com a realidade e, sobretudo, fantasias inauditas para que aqueles que estabelecem trocas com ele se sintam um tanto confusos pelas atitudes pensadas e doentias do ex-estudante de Direito.


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