А н т о́ н П а́ в л о в и ч Ч е́ х о в
(Antón
Pávilovitch Tchékhov)
Tchékhov e Olga Knipper |
loucos
continuam sem liberdade e taxas de mortalidade e
de
doenças permanecem as mesmas.
O
hospital é altamente prejudicial à saúde dos habitantes.
Para
que impedir os homens de morrer,
se a
morte é o fim natural e legítimo de cada um?
(reflexões
do médico Andriéi Iefímitch Ráguin, em Enfermaria
no 6)
Enfermaria no 6 (Палата № 6 – Palata nomer chest), datada de 1892, atenta pelo
movimento criado por Tchékhov para discutir a mesmice e mediocridade de uma
província e, por contágio, a relação de um paciente e um médico e seus pontos
de vista, surpreendendo e corroborando com a inócua sociedade provincial russa
e sua “inteligência”. Ao se ler este conto (novela, para alguns críticos), é
inevitável a comparação com O alienista (1881),
de Machado de Assis 1, embora as diferenças sejam evidenciadas,
como, por exemplo, a sátira corrosiva e bem-humorada no texto do escritor
fluminense.
1. Primeira impressão. Numa leitura inicial, pode-se
enumerar pontos em comum entre Enfermaria
no 6 e O alienista, se
considerados o inusitado das situações colocado ao limite, a ironia ou,
simplesmente, o poder de persuasão crítica dos dois escritores do século XIX:
Tchékhov, ao criticar a sociedade russa de seu tempo, através de sua
administração pública, e Machado de Assis, ao analisar o cientificismo eminente
e desenfreado na sociedade oitocentista brasileira.
2. Diferenças comparativas. Algo, porém, foge do comparativo de igualdade nas trajetórias de seus
protagonistas. A trágica caminhada de Andriéi Iefímitch Ráguin – o médico do
obsoleto hospital psiquiátrico – dá-se da seguinte maneira: o minúsculo é
avaliado do ambiente fechado do pavilhão psiquiátrico à vida particular de
Andriéi Iefímitch numa relação de causa e efeito que tangencia a vida do médico
com o todo, ou seja, com a vida pública russa metaforizada pelo hospital
público. Já a trajetória de Simão Bacamarte é resgatada do minúsculo exterior
(no caso, a Vila de Itaguaí) e o efeito imediato se vê na construção da Casa
Verde ou Casa de Orates. Outro aspecto relevante é o fim concebido aos dois
médicos alienistas: a morte como cessar de suas pretensas atividades,
concluindo, ambos, de que nada mais resta senão o fim de um mundo que nada mais
é do que a visão constrangedora de uma vida que se acaba antes mesmo de se
fechar os próprios olhos para morrer. A diferença resiste também neste ponto,
se considerados os enterros: com pompas para Bacamarte, com solidão para
Iefímitch. Simão Bacamarte acredita no poder da ciência e se utiliza deste
poder; Andriéi Iefímitch pouco crê no poder da ciência e é utilizado por este
poder.
3. O enredo de Enfermaria nº 6. Num pátio de um hospital de
uma província russa fica um pavilhão (a enfermaria no 6) “rodeado
por verdadeira floresta de bardanas, urtigas e cânhamo selvagem” 2.
Este pavilhão é deprimente, pois além de mal cuidado – paredes e degraus
imprestáveis e terrível cheiro de roupas e trastes apodrecidos, tem como guarda
Nikita, “velho soldado reformado” que espanca e rouba os pacientes. Há, na
enfermaria, cinco internos: um pequeno-burguês, paralítico, com início de
tuberculose; um velho pequeno, Moissiéika, judeu com permissão para sair do
pavilhão e ir à rua; Ivan Dmítritch Gromov, 33 anos, de condição nobre, antigo
oficial de justiça e professor de liceu, que sofre de mania de perseguição; um mujique
obeso, que apanha horrendamente de Nikita e que não responde aos golpes
sofridos e, finalmente, um antigo classificador dos Correios indicado a
receber, segundo crê, a Ordem de Estanislau além da “Estrela Polar” sueca!
Andriéi Iefímitch tem, ao assumir o hospital, consciência do quanto este é
prejudicial aos habitantes da província, pois sabe do estado precário do local
como um todo, ambiente corrupto, antiquado e desumano, embora também ele nada
faça para modificá-lo. Em sua casa, lê intensamente livros e revistas velhas,
além de apreciar uma boa cerveja trazida pela criada Dáriuchka. Andriéi costuma
pensar na condição humana, em especial em seus sofrimentos e na inevitabilidade
da morte. A realidade, segundo pensa, pouco se tem a modificar, reforçando em
Iefímitch o pessimismo de algo futuro. Certo dia, Andriéi Iefímitch visita o
pavilhão e conversa com o jovem demente Ivan Dmítritch, acusador do médico que
lhe priva a liberdade, pois é Andriéi que o trancafia na enfermaria no 6.
A partir deste encontro, o médico começa com maior frequência a procurar o
pavilhão e a discutir questões filosóficas com este paciente. Entretanto, Evguéni
Fiódoritch Khóbotov, médico assistente recém contratado, com cerca de 30 anos,
ouve, certa vez, a conversa “estranha” entre Ivan e Andriéi. O diálogo entre os
dois é inteligente e agrada consideravelmente ao médico mais antigo. Neste
momento em diante, Tchékhov aprofunda a discussão entre médico e paciente,
assim como investe na perseguição que Andriéi sofre da própria medicina e de
sua administração. Khóbotov e o melhor amigo de Andriéi, o chefe dos Correios
Mikhail Avieriánitch, procuram convencê-lo de seu estado mental debilitado.
Andriéi sabe que entra num “círculo encantado”, bastando, de repente, alguém começar
a notar a pessoa para que esta não tenha saída. Desta forma, Andriéi começa a
se entregar, embora, enganado por seu colega Khóbotov: este solicita sua ajuda
para atender a um paciente, leva Andriéi à Enfermaria no 6, sendo
este lá então encerrado, espancado por Nikita e, mais tarde, sofrendo um ataque
de apoplexia.
1ª ed. de Papéis Avulsos, 1881, com o conto O Alienista. |
6. A trajetória de Andriéi Iefímitch. Sua trajetória percorre um plano que se estende da cumplicidade medíocre
de sua profissão – a sua atuação como médico – até o reconhecimento prático
dessa cumplicidade pelo próprio sofrimento. Neste ponto, uma aproximação de
similitude com a trajetória de Simão Bacamarte, pois tanto este como Andriéi
Iefímitch são vitimados pela própria ciência que um dia defenderam. Entretanto,
os caminhos dos dois médicos alienistas são pouco semelhantes, pois no texto de
Tchékhov, em seu primeiro capítulo, o narrador convida o leitor a ver “o que
sucede em seu interior”, referindo-se ao pavilhão onde se encontram os
dementes. Há, deste modo, análise imediata de dentro para fora. O leitor
acompanha a evolução do pensamento do protagonista (e das atitudes dos
dementes) porque este estabelece comunicação inteligente com um dos doentes
mentais: Ivan Dmítritch. As conversas entre médico e paciente criam uma
filosofia que aprofunda não somente a tensão da vida dos dois, como intensifica
e constrange a leitura efetuada, pois esta torna-se quase insuportável uma vez
que os conceitos dos personagens tendem à rivalidade de uma vida melhor (para o
demente Ivan) e a mesmice tendenciosa proposta pelas atitudes daquele que em
nada ou em muito pouco crê (o médico Andriéi). A dicotomia apresentada por
Tchékhov inverte-se na reflexão de paciente e médico, sugerindo a leitura mais
otimista para Ivan e derrotista e complacente para a inutilidade das coisas e
do mundo para Andriéi. Apenas no final, em seu encerramento, uma gota de vida e
rejeição àquilo que está a viver faz de Andriéi um próximo de Ivan: ambos
gritam por suas liberdades, mas nada que não possa ser ajeitado pelas pancadas
do guarda Nikita, pelo conhecimento médico de Khóbotov e pela fé do enfermeiro
religioso Serguéi Serguéitch que se julga mais competente do que o médico
Andriéi.
7. A Rússia social retratada e a ciência. Nikolai Leskov 3, ao ler a Enfermaria no 6 (texto este bastante apreciado por Liev
Nikoláievitch Tolstói 4), constata a seguinte metáfora: a província
de Andriéi é a Rússia em nível social. Na apresentação dos dementes, para
ilustrar as categorias sociais diversas, são mencionados um pequeno-burguês, um
judeu que perde seu negócio num incêndio (Moissiéika), um intelectual de
extração nobre (Ivan Dmítritch Gromov), um mujique e, finalmente, um antigo
classificador dos Correios. Ao sair do pavilhão, somam-se um médico despretensioso
profissionalmente (Andriéi Efímitch Ráguin), um barbeiro bêbado (Semión
Lázaritch), um velho soldado reformado (Nikita), um enfermeiro religioso
(Serguéi Serguéitch), uma criada (Dáriuchka), um chefe dos Correios (Mikhail
Averiánitich), um médico de distrito (Evguéni Fiódoritch Khóbotov), algumas crianças
(Macha e as três crianças de Biélova), um prefeito e um outro médico, um
empregado do Correio e uma senhoria (viúva Biélova). As condições do hospital
(e, por extensão, da enfermaria) ratificam o desinteresse público ao sistema de
saúde, assim como a distinção entre intelectuais e médicos. Para Andriéi, caso ele
não fosse médico, seria intelectual. Segundo ainda Andriéi, ele tem pena da
medicina, assim como, segundo os seus cálculos, enganou doze mil pessoas ao
longo de um ano. Existem as regras, mas não a ciência.
Num ano de exercício do
cargo, recebera doze mil doentes, quer dizer, raciocinando com simplicidade,
enganara doze mil pessoas. Não se podiam também internar os doentes graves nas
enfermarias e tratá-los de acordo com as regras da ciência, pois existiam as
regras, e não a ciência; mas, no caso de se deixar de lado a filosofia e
obedecer pedantemente às regras, como os demais médicos, eram necessários em
primeiro lugar asseio e ventilação em vez de sujeira, uma alimentação sadia e
não schtchi de chucrute fétido, e bons auxiliares em lugar de ladrões.
A psiquiatria, com os
métodos de diagnose e tratamento, com a sua atual classificação das doenças, é
um verdadeiro Elborus em comparação com o que existia antes. (...) Andriéi
Iefímith sabe que, pelos gostos e segundo as concepções atuais, uma ignomínia
como a Enfermaria no 6 é possível unicamente a duzentas verstas da
estrada de ferro, numa cidadezinha em que o prefeito e todos os conselheiros
municipais são pequenos-burgueses semi-analfabetos, que veem no médico um
feiticeiro, em que é preciso acreditar sem qualquer crítica, mesmo que ele
despeje na boca de alguém chumbo derretido; em outro lugar, o público e os
jornais já teriam há muito feito em pedaços essa pequena Bastilha. (...)
“E então?”, pergunta a
si mesmo Andriéi Iefímitch, abrindo os olhos. ‘O que se conclui? Tem-se a
assepsia, Koch, Pasteur, mas a essência do problema não mudou nem um pouco. Os
índices de doenças e de mortalidade são os mesmos. Organizam-se espetáculos e
bailes para os loucos, mas assim mesmo eles não são postos em liberdades. Quer dizer
que tudo é tolice e vaidade, e, em essência, não há nenhuma diferença entre a
melhor clínica vienense e o meu hospital.
A evidência dos problemas sociais metaforizados na
enfermaria leva Andriéi a particularizá-los. Sua vida é causa e efeito das
angústias social e profissional reclamada a todo instante, e a incessante busca
e pouca discussão intelectual sobre o indivíduo classifica mais do que cura
dementes. A análise psicológica da enfermaria funde-se com os sentimentos de
Andriéi, levando-o a frequentar com regularidade aquele ambiente outrora
desprezado por ele mesmo. A inserção do médico no horrendo pavilhão
psiquiátrico (comparado a um edifício carcerário) é, em síntese, a
autorreflexão profissional e pessoal daquele que pouco acredita em seus atos e
em seus conhecimentos acadêmicos. Este médico que não consegue encarar e falar
diretamente às pessoas o que lhe diz respeito perde-se no próprio meio que
alimenta. Curiosamente, consegue diálogo com um demente. Deste modo, a
aproximação com o louco Ivan faz sentido, pois com este a filosofia se estende,
se agita, se confronta e traz reflexões oportunas. Uma razão para a vida se
apresenta a Andriéi e a Ivan, mesmo que esta não apresente o sentido desejado
pelo homem, num oximoro entre a filosofia, a medicina, o bom senso e o
sofrimento vivido e ainda não vivido pelos homens.
8. O demente analisa o médico. Andriéi é, em certo momento do texto, analisado por Ivan. Este ganha voz
e experiência psiquiátrica ao concluir que aquele que lhe privou da liberdade –
sem justificativas – pouco pode compreender se nunca viveu o sofrimento na
vida. A ironia é eficiente, pois o sofrimento de Andriéi é ético e social, mas,
ainda, não físico. A sua ausência de liberdade não é a de Ivan Dmítritch, mas é
o inócuo de nada fazer pela vida dos outros. Para Ivan, Andriéi “não viu a
vida, não a conhece absolutamente, e está a par da realidade apenas em teoria”.
Para Ivan, Andriéi admite somente a explicação racional, evitando espantar-se
com o fim irremediável que é a morte. Ivan conclui: “Uma filosofia cômoda: não
há o que fazer, tem-se a consciência tranquila e a pessoa ainda se sente um
sábio…”. A revelação de um mundo com suas frustrações – em contraste com a
individualidade perdida e a impotência – forma a volubilidade social num
contexto incapaz de compreensão mais humana.
...pelos seus vinte e
tantos anos de serviço, não lhe pagaram aposentadoria, nem uma ajuda de custo.
É verdade que não trabalhara honestamente, mas a aposentadoria é paga a todos
os funcionários sem exceção, honestos ou desonestos. A justiça moderna consiste
justamente em que são premiados com postos, condecorações e aposentadorias não
as capacidades e as qualidades morais, mas o serviço em geral, seja qual for a
sua qualidade.
9. Um fim predestinado; um fim fruto da casualidade. Regras traem Andriéi, as mesmas que lhe ensinam sua contradição. Um
“círculo encantado”, nas palavra de Tchékhov, que surge quando começam a notar
Andriéi. Nas reflexões deste, um único homem inteligente, casualmente louco. Não
há doenças, há critérios estabelecidos; não há discussões, há monólogo com a
morte. Andriéi finalmente compreende isso, pois não há mais diferença entre “um fraque, um uniforme militar ou este
roupão…”. Seu recolhimento ao pavilhão horrendo também é insignificância. Seu
corpo resta na capela iluminado pelo luar. A apoplexia a que foi acometido retifica
a inércia durante vinte e poucos anos de profissão. Um fio de luar sobre um
corpo com olhos abertos fechados pelo enfermeiro pode ser o rebotalho de quem tentou
amar a vida no fim. Ivan Dmítritch descobriu há tempo essa paixão, afinal, diz,
“eu amo a vida, amo-a apaixonadamente.” Em Recordações da casa dos mortos (1862) e Crime e castigo (1866), Fiódor
Mikhailovitch Dostoiévski 5 desenvolve esta percepção nos
aprisionados, sujeitos dispostos a amar intensamente a vida fora da liberdade.
10. O pessimismo em Antón Tchékhov e em Machado de Assis. O pessimismo, em O alienista, revela-se quando os doentes encarcerados na Casa Verde
(honestos em sua maioria) devem ser curados para se tornarem desonestos e,
assim, aptos ao convívio social. O pessimismo, em Enfermaria no 6, quando da revelação a si mesmo do
“círculo encantado” que Andriéi (excetuando poucos privilegiados) não consegue
se safar.
11. Uma leitura subterrânea. A substituição do velho (Andriéi) pelo novo
(Khóbotov – “com muito gosto ocuparia o lugar dele”) como marca indissociável
das relações profissionais.
1 Machado
de Assis (1839-1908). Escritor e maior nome da literatura brasileira. Foi
contista, romancista, cronista, crítico literário, dramaturgo e poeta.
Escreveu, entre outras obras, Memórias
póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de
Aires.
2 Todas as citações deste conto trabalhado neste texto
foram retiradas de O beijo e outras
histórias (in As três irmãs – contos),
traduzidas por Boris Schnaiderman, Abril Cultural, 1982. S.P.
3 Nikolai Leskov (1831-1895). Contista russo, autor,
entre outros títulos, de A fraude, Águia
branca, Lady Macbeth do Distrito de Mtzenski, Homens interessantes, A sentinela
e O velho gênio.
4 Liev Nikoláievitch Tolstói (1828-1910). Escritor russo,
ao lado de F. M. Dostoiévski, de maior representatividade na literatura do
século XIX. Escreveu, entre outros títulos de sua vasta obra, Guerra e paz, Anna Kariênina, A morte de
Ivan Ilitch, Khadji-Murát e
Ressurreição.
5 Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881). Escritor
russo. Escreveu, entre outros títulos de sua vasta obra, Gente pobre, Recordações da casa dos mortos, Memórias do subsolo, Crime
e castigo, Um jogador, O idiota, Os demônios, O adolescente, O eterno marido e
Os irmãos Karamázov.
"Se tantos homens em quem supomos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?"
ResponderExcluirBelíssimo texto, parabéns!