terça-feira, 2 de julho de 2013

Enfermaria nº 6 e o minúsculo da vida cotidiana

casa onde nasceu Tchékhov




Enfermaria no 6  (Палата № 6)

А н т о́ н   П а́ в л о в и ч  Ч е́ х о в

(Antón Pávilovitch Tchékhov)



Tchékhov e Olga Knipper
Antón Pávilovitch Tchékhov é consagrado não somente por seus breves e surpreendentes contos e por sua hábil capacidade de analisar o óbvio e o minúsculo do cotidiano, mas por deixar seus relatos como “incompletos” do início ao fim. Tchékhov dizia que o escritor, depois de concluir um conto, devia eliminar o começo e o fim do texto, momentos que a mentira perdura. Dramaturgo, contista, novelista e médico que morre tuberculoso no ano de 1904 (Badenweiler, Alemanha), Tchékhov inicia sua literatura com  textos humorísticos para manter seu próprio sustento e o de sua família. Nasce em 1860 – em Taganrog – e, no final de sua breve vida, em 1901, une-se à atriz Olga Knipper. “Estou morrendo” e “pediu uma taça de champanhe” para, depois, ser conduzido até sua cama, tornam-se descrições corriqueiras em suas biografias. Também são habituais as lembranças de diversos contos de Tchékhov, assim como, ao menos, três peças de teatro que marcam o final do século XIX e o princípio do século XX na dramaturgia: A gaivota (1896), Três irmãs (1901) e O jardim das cerejeiras (1904). Platonov (1881), Ivanov (1887) e Tio Vânia (1900) também merecem destaque. A viagem que faz à ilha de Sacalina, já com a saúde comprometida, é relatada em A ilha de Sacalina (1893-1894), obra humana sobre prisioneiros desta ilha no mar do Japão e suas condições primárias de tratamento.

Não desconhece os avanços da medicina, entretanto,
loucos continuam sem liberdade e taxas de mortalidade e
de doenças permanecem as mesmas.

O hospital é altamente prejudicial à saúde dos habitantes.

Para que impedir os homens de morrer,
se a morte é o fim natural e legítimo de cada um?

(reflexões do médico Andriéi Iefímitch Ráguin, em Enfermaria no 6)


Enfermaria no 6 (Палата № 6 – Palata nomer chest), datada de 1892, atenta pelo movimento criado por Tchékhov para discutir a mesmice e mediocridade de uma província e, por contágio, a relação de um paciente e um médico e seus pontos de vista, surpreendendo e corroborando com a inócua sociedade provincial russa e sua “inteligência”. Ao se ler este conto (novela, para alguns críticos), é inevitável a comparação com O alienista (1881), de Machado de Assis 1, embora as diferenças sejam evidenciadas, como, por exemplo, a sátira corrosiva e bem-humorada no texto do escritor fluminense.



   

1. Primeira impressão. Numa leitura inicial, pode-se enumerar pontos em comum entre Enfermaria no 6 e O alienista, se considerados o inusitado das situações colocado ao limite, a ironia ou, simplesmente, o poder de persuasão crítica dos dois escritores do século XIX: Tchékhov, ao criticar a sociedade russa de seu tempo, através de sua administração pública, e Machado de Assis, ao analisar o cientificismo eminente e desenfreado na sociedade oitocentista brasileira.
2. Diferenças comparativas. Algo, porém, foge do comparativo de igualdade nas trajetórias de seus protagonistas. A trágica caminhada de Andriéi Iefímitch Ráguin – o médico do obsoleto hospital psiquiátrico – dá-se da seguinte maneira: o minúsculo é avaliado do ambiente fechado do pavilhão psiquiátrico à vida particular de Andriéi Iefímitch numa relação de causa e efeito que tangencia a vida do médico com o todo, ou seja, com a vida pública russa metaforizada pelo hospital público. Já a trajetória de Simão Bacamarte é resgatada do minúsculo exterior (no caso, a Vila de Itaguaí) e o efeito imediato se vê na construção da Casa Verde ou Casa de Orates. Outro aspecto relevante é o fim concebido aos dois médicos alienistas: a morte como cessar de suas pretensas atividades, concluindo, ambos, de que nada mais resta senão o fim de um mundo que nada mais é do que a visão constrangedora de uma vida que se acaba antes mesmo de se fechar os próprios olhos para morrer. A diferença resiste também neste ponto, se considerados os enterros: com pompas para Bacamarte, com solidão para Iefímitch. Simão Bacamarte acredita no poder da ciência e se utiliza deste poder; Andriéi Iefímitch pouco crê no poder da ciência e é utilizado por este poder.
3. O enredo de Enfermaria nº 6Num pátio de um hospital de uma província russa fica um pavilhão (a enfermaria no 6) “rodeado por verdadeira floresta de bardanas, urtigas e cânhamo selvagem” 2. Este pavilhão é deprimente, pois além de mal cuidado – paredes e degraus imprestáveis e terrível cheiro de roupas e trastes apodrecidos, tem como guarda Nikita, “velho soldado reformado” que espanca e rouba os pacientes. Há, na enfermaria, cinco internos: um pequeno-burguês, paralítico, com início de tuberculose; um velho pequeno, Moissiéika, judeu com permissão para sair do pavilhão e ir à rua; Ivan Dmítritch Gromov, 33 anos, de condição nobre, antigo oficial de justiça e professor de liceu, que sofre de mania de perseguição; um mujique obeso, que apanha horrendamente de Nikita e que não responde aos golpes sofridos e, finalmente, um antigo classificador dos Correios indicado a receber, segundo crê, a Ordem de Estanislau além da “Estrela Polar” sueca! Andriéi Iefímitch tem, ao assumir o hospital, consciência do quanto este é prejudicial aos habitantes da província, pois sabe do estado precário do local como um todo, ambiente corrupto, antiquado e desumano, embora também ele nada faça para modificá-lo. Em sua casa, lê intensamente livros e revistas velhas, além de apreciar uma boa cerveja trazida pela criada Dáriuchka. Andriéi costuma pensar na condição humana, em especial em seus sofrimentos e na inevitabilidade da morte. A realidade, segundo pensa, pouco se tem a modificar, reforçando em Iefímitch o pessimismo de algo futuro. Certo dia, Andriéi Iefímitch visita o pavilhão e conversa com o jovem demente Ivan Dmítritch, acusador do médico que lhe priva a liberdade, pois é Andriéi que o trancafia na enfermaria no 6. A partir deste encontro, o médico começa com maior frequência a procurar o pavilhão e a discutir questões filosóficas com este paciente. Entretanto, Evguéni Fiódoritch Khóbotov, médico assistente recém contratado, com cerca de 30 anos, ouve, certa vez, a conversa “estranha” entre Ivan e Andriéi. O diálogo entre os dois é inteligente e agrada consideravelmente ao médico mais antigo. Neste momento em diante, Tchékhov aprofunda a discussão entre médico e paciente, assim como investe na perseguição que Andriéi sofre da própria medicina e de sua administração. Khóbotov e o melhor amigo de Andriéi, o chefe dos Correios Mikhail Avieriánitch, procuram convencê-lo de seu estado mental debilitado. Andriéi sabe que entra num “círculo encantado”, bastando, de repente, alguém começar a notar a pessoa para que esta não tenha saída. Desta forma, Andriéi começa a se entregar, embora, enganado por seu colega Khóbotov: este solicita sua ajuda para atender a um paciente, leva Andriéi à Enfermaria no 6, sendo este lá então encerrado, espancado por Nikita e, mais tarde, sofrendo um ataque de apoplexia.

4. O enredo de O alienistaSimão Bacamarte, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, instala-se em Itaguaí, cidade interiorana fluminense, com o objetivo de, na Casa Verde, (local onde o alienista pretende colocar os loucos) “estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal”. Num primeiro momento, o alienista confina na Casa Verde os loucos mansos, os furiosos e os monomaníacos, como por exemplo o rapaz que supunha ser a estrela d’alva, ou o louco que estava à procura do fim do mundo, ou o que distribuía boiadas a toda gente. Entrentanto, como dizia o ilustre Simão Bacamarte “a loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. E, assim, começa, a contragosto da população, a encerrar diversos itaguaienses. Quer, o alienista, demarcar “definitivamente os limites da razão e da loucura”. Para ele, “A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia”. Revoltado com as ações de Bacamarte, o barbeiro Porfírio lidera uma rebelião para derrubar a Casa Verde e seu alienista. Porfírio acaba assumindo a Câmara de Itaguaí. Mas Simão Bacamarte resiste, até porque não pode, segundo o próprio barbeiro Porfírio, o governo interferir nas causas científicas. Restabelecida a ordem pelo vice-rei, o alienista ganha mais prestígio. São recolhidos, então, à Casa Verde o barbeiro, o vereador Freitas, o boticário Crispim Soares, o presidente da Câmara e seu secretário e a própria esposa de Simão Bacamarte, D. Evarista. Certo dia, para mais um espanto da população de Itaguaí, todos os supostos loucos são soltos. Em nota à Câmara, o alienista decide que os loucos são, agora, todos os casos em que o equilíbrio mental seja ininterrupto. São recolhidos à Casa Verde o vereador Galvão, o Padre Lopes, o juiz-de-fora e, novamente, o barbeiro Porfírio – que havia sido solto e, não atendendo seus conhecidos, negara-se a liderar nova rebelião. Por fim, insatisfeito com suas  conclusões, pois os cérebros que cura – no caso os equilibrados – são desequilibrados como todos os outros que frequentam um dia a Casa Verde, Simão Bacamarte recolhe-se ao hospício e morre dezessete meses depois. 
1ª ed. de Papéis Avulsos, 1881, com o conto O Alienista.
5. A trajetória de Simão Bacamarte. O alienista criado por Machado de Assis aparece em Itaguaí como autoridade médica. Sua formação europeizada da medicina (ligada às teorias espanholas e portuguesa) o autoriza a não ver discutidas as suas teses na Vila de Itaguaí. Machado de Assis desloca seu protagonista à Vila para que, lá, não possa ser questionado em sua doutrina científica, pois há, apenas, nesta Vila, um médico clínico e, se loucos há outrora, são trancafiados em casa ou passeiam, sem perigo à sociedade, pelas ruas. Até então, o critério usado para a loucura dos itaguaienses é mais familiar do que científico. Trajetória rápida e destacada pela presunção e ironia, Simão Bacamarte se vê alijado não de sua ciência, mas da capacidade de discernir esta ciência do paciente, embora institucionalize uma “nova medicina” com padrões autoritários e efêmeros até concluir que o limite tênue entre a loucura e a não loucura está nele mesmo. Ao concluir-se demente, pois em perfeito equilíbrio mental, a pantomima anterior causada na Vila de Itaguaí continua agora arrefecida, uma vez que, para a população tudo volta a sua normalidade: não há loucos e, se há, este está morto. Mas o fim reserva, ainda, uma surpresa: o louco é enterrado com muita pompa, sugerindo a completa ausência de loucos em Itaguaí ou o não entendimento social do que, de fato, vem a ser a insanidade mental. Morto Bacamarte, morta a ciência deste, inócua mas que agasalhou na Casa Verde a população (os barbeiros Porfírio e João Pina), a família (D. Evarista), a política (presidente da Câmara e vereadores), a farmácia (o boticário Crispim Soares) e a própria ciência (Simão Bacamarte). Uma trajetória meteórica que fica nas crônicas remotas da Vila de Itaguaí, não sem antes ter percorrido cada casa, cada rua, cada intenção de cada indivíduo em suas expressões externas.
6. A trajetória de Andriéi Iefímitch. Sua trajetória percorre um plano que se estende da cumplicidade medíocre de sua profissão – a sua atuação como médico – até o reconhecimento prático dessa cumplicidade pelo próprio sofrimento. Neste ponto, uma aproximação de similitude com a trajetória de Simão Bacamarte, pois tanto este como Andriéi Iefímitch são vitimados pela própria ciência que um dia defenderam. Entretanto, os caminhos dos dois médicos alienistas são pouco semelhantes, pois no texto de Tchékhov, em seu primeiro capítulo, o narrador convida o leitor a ver “o que sucede em seu interior”, referindo-se ao pavilhão onde se encontram os dementes. Há, deste modo, análise imediata de dentro para fora. O leitor acompanha a evolução do pensamento do protagonista (e das atitudes dos dementes) porque este estabelece comunicação inteligente com um dos doentes mentais: Ivan Dmítritch. As conversas entre médico e paciente criam uma filosofia que aprofunda não somente a tensão da vida dos dois, como intensifica e constrange a leitura efetuada, pois esta torna-se quase insuportável uma vez que os conceitos dos personagens tendem à rivalidade de uma vida melhor (para o demente Ivan) e a mesmice tendenciosa proposta pelas atitudes daquele que em nada ou em muito pouco crê (o médico Andriéi). A dicotomia apresentada por Tchékhov inverte-se na reflexão de paciente e médico, sugerindo a leitura mais otimista para Ivan e derrotista e complacente para a inutilidade das coisas e do mundo para Andriéi. Apenas no final, em seu encerramento, uma gota de vida e rejeição àquilo que está a viver faz de Andriéi um próximo de Ivan: ambos gritam por suas liberdades, mas nada que não possa ser ajeitado pelas pancadas do guarda Nikita, pelo conhecimento médico de Khóbotov e pela fé do enfermeiro religioso Serguéi Serguéitch que se julga mais competente do que o médico Andriéi.
7. A Rússia social retratada e a ciência. Nikolai Leskov 3, ao ler a Enfermaria no 6 (texto este bastante apreciado por Liev Nikoláievitch Tolstói 4), constata a seguinte metáfora: a província de Andriéi é a Rússia em nível social. Na apresentação dos dementes, para ilustrar as categorias sociais diversas, são mencionados um pequeno-burguês, um judeu que perde seu negócio num incêndio (Moissiéika), um intelectual de extração nobre (Ivan Dmítritch Gromov), um mujique e, finalmente, um antigo classificador dos Correios. Ao sair do pavilhão, somam-se um médico despretensioso profissionalmente (Andriéi Efímitch Ráguin), um barbeiro bêbado (Semión Lázaritch), um velho soldado reformado (Nikita), um enfermeiro religioso (Serguéi Serguéitch), uma criada (Dáriuchka), um chefe dos Correios (Mikhail Averiánitich), um médico de distrito (Evguéni Fiódoritch Khóbotov), algumas crianças (Macha e as três crianças de Biélova), um prefeito e um outro médico, um empregado do Correio e uma senhoria (viúva Biélova). As condições do hospital (e, por extensão, da enfermaria) ratificam o desinteresse público ao sistema de saúde, assim como a distinção entre intelectuais e médicos. Para Andriéi, caso ele não fosse médico, seria intelectual. Segundo ainda Andriéi, ele tem pena da medicina, assim como, segundo os seus cálculos, enganou doze mil pessoas ao longo de um ano. Existem as regras, mas não a ciência.

Num ano de exercício do cargo, recebera doze mil doentes, quer dizer, raciocinando com simplicidade, enganara doze mil pessoas. Não se podiam também internar os doentes graves nas enfermarias e tratá-los de acordo com as regras da ciência, pois existiam as regras, e não a ciência; mas, no caso de se deixar de lado a filosofia e obedecer pedantemente às regras, como os demais médicos, eram necessários em primeiro lugar asseio e ventilação em vez de sujeira, uma alimentação sadia e não schtchi de chucrute fétido, e bons auxiliares em lugar de ladrões.

           Mais adiante, a evolução da medicina e seus resultados:

A psiquiatria, com os métodos de diagnose e tratamento, com a sua atual classificação das doenças, é um verdadeiro Elborus em comparação com o que existia antes. (...) Andriéi Iefímith sabe que, pelos gostos e segundo as concepções atuais, uma ignomínia como a Enfermaria no 6 é possível unicamente a duzentas verstas da estrada de ferro, numa cidadezinha em que o prefeito e todos os conselheiros municipais são pequenos-burgueses semi-analfabetos, que veem no médico um feiticeiro, em que é preciso acreditar sem qualquer crítica, mesmo que ele despeje na boca de alguém chumbo derretido; em outro lugar, o público e os jornais já teriam há muito feito em pedaços essa pequena Bastilha. (...)
“E então?”, pergunta a si mesmo Andriéi Iefímitch, abrindo os olhos. ‘O que se conclui? Tem-se a assepsia, Koch, Pasteur, mas a essência do problema não mudou nem um pouco. Os índices de doenças e de mortalidade são os mesmos. Organizam-se espetáculos e bailes para os loucos, mas assim mesmo eles não são postos em liberdades. Quer dizer que tudo é tolice e vaidade, e, em essência, não há nenhuma diferença entre a melhor clínica vienense e o meu hospital.

evidência dos problemas sociais metaforizados na enfermaria leva Andriéi a particularizá-los. Sua vida é causa e efeito das angústias social e profissional reclamada a todo instante, e a incessante busca e pouca discussão intelectual sobre o indivíduo classifica mais do que cura dementes. A análise psicológica da enfermaria funde-se com os sentimentos de Andriéi, levando-o a frequentar com regularidade aquele ambiente outrora desprezado por ele mesmo. A inserção do médico no horrendo pavilhão psiquiátrico (comparado a um edifício carcerário) é, em síntese, a autorreflexão profissional e pessoal daquele que pouco acredita em seus atos e em seus conhecimentos acadêmicos. Este médico que não consegue encarar e falar diretamente às pessoas o que lhe diz respeito perde-se no próprio meio que alimenta. Curiosamente, consegue diálogo com um demente. Deste modo, a aproximação com o louco Ivan faz sentido, pois com este a filosofia se estende, se agita, se confronta e traz reflexões oportunas. Uma razão para a vida se apresenta a Andriéi e a Ivan, mesmo que esta não apresente o sentido desejado pelo homem, num oximoro entre a filosofia, a medicina, o bom senso e o sofrimento vivido e ainda não vivido pelos homens.

8. O demente analisa o médico. Andriéi é, em certo momento do texto, analisado por Ivan. Este ganha voz e experiência psiquiátrica ao concluir que aquele que lhe privou da liberdade – sem justificativas – pouco pode compreender se nunca viveu o sofrimento na vida. A ironia é eficiente, pois o sofrimento de Andriéi é ético e social, mas, ainda, não físico. A sua ausência de liberdade não é a de Ivan Dmítritch, mas é o inócuo de nada fazer pela vida dos outros. Para Ivan, Andriéi “não viu a vida, não a conhece absolutamente, e está a par da realidade apenas em teoria”. Para Ivan, Andriéi admite somente a explicação racional, evitando espantar-se com o fim irremediável que é a morte. Ivan conclui: “Uma filosofia cômoda: não há o que fazer, tem-se a consciência tranquila e a pessoa ainda se sente um sábio…”. A revelação de um mundo com suas frustrações – em contraste com a individualidade perdida e a impotência – forma a volubilidade social num contexto incapaz de compreensão mais humana.

...pelos seus vinte e tantos anos de serviço, não lhe pagaram aposentadoria, nem uma ajuda de custo. É verdade que não trabalhara honestamente, mas a aposentadoria é paga a todos os funcionários sem exceção, honestos ou desonestos. A justiça moderna consiste justamente em que são premiados com postos, condecorações e aposentadorias não as capacidades e as qualidades morais, mas o serviço em geral, seja qual for a sua qualidade.

9. Um fim predestinado; um fim fruto da casualidade. Regras traem Andriéi, as mesmas que lhe ensinam sua contradição. Um “círculo encantado”, nas palavra de Tchékhov, que surge quando começam a notar Andriéi. Nas reflexões deste, um único homem inteligente, casualmente louco. Não há doenças, há critérios estabelecidos; não há discussões, há monólogo com a morte. Andriéi finalmente compreende isso, pois não há mais diferença entre “um fraque, um uniforme militar ou este roupão…”. Seu recolhimento ao pavilhão horrendo também é insignificância. Seu corpo resta na capela iluminado pelo luar. A apoplexia a que foi acometido retifica a inércia durante vinte e poucos anos de profissão. Um fio de luar sobre um corpo com olhos abertos fechados pelo enfermeiro pode ser o rebotalho de quem tentou amar a vida no fim. Ivan Dmítritch descobriu há tempo essa paixão, afinal, diz, “eu amo a vida, amo-a apaixonadamente.” Em Recordações da casa dos mortos (1862) e Crime e castigo (1866), Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski 5 desenvolve esta percepção nos aprisionados, sujeitos dispostos a amar intensamente a vida fora da liberdade.
10. O pessimismo em Antón Tchékhov e em Machado de Assis. O pessimismo, em O alienista, revela-se quando os doentes encarcerados na Casa Verde (honestos em sua maioria) devem ser curados para se tornarem desonestos e, assim, aptos ao convívio social. O pessimismo, em Enfermaria no 6, quando da revelação a si mesmo do “círculo encantado” que Andriéi (excetuando poucos privilegiados) não consegue se safar.
11. Uma leitura subterrânea. A substituição do velho (Andriéi) pelo novo (Khóbotov – “com muito gosto ocuparia o lugar dele”) como marca indissociável das relações profissionais.


 
1  Machado de Assis (1839-1908). Escritor e maior nome da literatura brasileira. Foi contista, romancista, cronista, crítico literário, dramaturgo e poeta. Escreveu, entre outras obras, Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.
2 Todas as citações deste conto trabalhado neste texto foram retiradas de O beijo e outras histórias (in As três irmãs – contos), traduzidas por Boris Schnaiderman, Abril Cultural, 1982. S.P.
3 Nikolai Leskov (1831-1895). Contista russo, autor, entre outros títulos, de A fraude, Águia branca, Lady Macbeth do Distrito de Mtzenski, Homens interessantes, A sentinela e O velho gênio.
4 Liev Nikoláievitch Tolstói (1828-1910). Escritor russo, ao lado de F. M. Dostoiévski, de maior representatividade na literatura do século XIX. Escreveu, entre outros títulos de sua vasta obra, Guerra e paz, Anna Kariênina, A morte de Ivan Ilitch, Khadji-Murát e Ressurreição.
5 Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881). Escritor russo. Escreveu, entre outros títulos de sua vasta obra, Gente pobre, Recordações da casa dos mortos, Memórias do subsolo, Crime e castigo, Um jogador, O idiota, Os demônios, O adolescente, O eterno marido e Os irmãos Karamázov.




Um comentário:

  1. "Se tantos homens em quem supomos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?"
    Belíssimo texto, parabéns!

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