quinta-feira, 2 de maio de 2013

Assassinato, conto de Mikhaíl P. Artsibáshchev



    Este conto que aqui apresento no Fôlego Literário, Assassinato, de Mikhaíl Pietróvitch Artsibáshchev, traduzi no ano de 2006 para a Editora Leitura XXI aqui de Porto Alegre. Na ocasião, o pedido que me foi feito era para o volume 5 da coleção Leitura Jovem da editora, volume intitulado Contos Aterrorizantes, que reúne também autores como Edgar Allan Poe, Ambrose Bierce, Guy de Maupassant, Villiers de L’Isle-Adam, W.W.Jacobs, Horacio Quiroga e Thomas Hood, além do conto abaixo reproduzido de Mikhaíl Artsibáshchev. Este título ainda consta para venda na referida editora. 



MIKHAÍL PIETRÓVITCH ARTSIBÁSHCHEV


Autor pouco conhecido no Brasil e em boa parte dos países ocidentais, Mikhaíl Artsibáshchev nasce na Rússia, em 1878, e morre em 1927. Depois de 1917, sem compreender os rumos da Revolução, emigra para o estrangeiro, declarando-se inimigo dos bolcheviques. Iniciando sua carreira literária nos primeiros anos do século XX, Artsibáshchev recebe influência de Fiódor Dostoiévski e dos escritores da chamada primeira geração de simbolistas russos. Após publicar sua novela mais importante, Sanin, um texto bastante ousado para a época (tendo como temas a prática do amor livre de inibições e a sujeição das mulheres às regras patriarcais), Artsibáshchev investe numa linha mais pessimista e sombria, como são exemplos as novelas curtas O tenente Golobov e O limite. Seus temas se voltam para a deterioração das relações humanas, a ponto do escritor centrar seus enredos no sentimento trágico que se experimenta diante da morte. Influenciado por Nietzsche, escreve Até o último instante, novela que terá como personagem o engenheiro Naúmov (homem sombrio e de olhos selvagens), que revela o motivo pelo qual não se suicida: não é a vida que o incomoda, mas sim a humanidade inteira.
            Em Assassinato, Artsibáshchev mostra sua habilidade como contista ao contrapor a necessidade que todos têm de viver com o aparato social que legaliza a pena de morte e executa o criminoso. Um documento social, uma forte denúncia contra a corrupção de uma sociedade que caminha perdida para o fim, Assassinato consegue apavorar o leitor conforme o castigo vai progredindo até atingir seu ápice, lembrando a máxima de Dostoiévski de que até mesmo um parricida merece piedade.





ASSASSINATO

MIKHAÍL PIETRÓVITCH ARTSIBÁSHCHEV (1878-1927)

Tradução de João Armando Nicotti 

I
Muito cedo, antes mesmo de o sol nascer, todo mundo se levantou na casa, e as luzes foram acesas.
Na rua ainda reinava a escuridão, mas a proximidade do alvorecer começava a dar um tom acinzentado à negrura das trevas. Fazia frio. A luz, àquela hora, feria desagradavelmente a vista, e todos sentiam aquele acentuado mal-estar: o desgosto e o desconforto de um despertar fora do tempo.
Na sala de jantar, a senhora French tomava o café. Seu marido, o sr. French, ouvia, do quarto, enquanto se vestia, o ruído da colherinha e da xícara. Enquanto vestia a camisa de colarinho e peitilho engomados, estremeceu, devido à interrupção de seus pensamentos.
-  Tommi, o café está servido... Já são cinco horas - avisou-lhe, timidamente, sua mulher. A indisposição do homem ilustre crescia a cada momento, a ponto de se traduzir numa respiração dificultosa, em que se podiam notar seu cansaço e um agudo nervosismo.
-  Já vou, já vou!
Momentos depois, o sr. French saía para a sala de jantar vestido numa sobrecasaca. O severo traje lhe caía bem, combinava com a barba bem-feita e proeminente, dando-lhe um ar majestoso.
Sua mulher lhe dirigiu um olhar tímido e em seguida baixou os olhos, fingindo estar concentrada na tarefa de dissolver o açúcar na poção aromática.
O sr. French sentou-se. Seu mal-estar havia diminuído um pouco. Sentia, novamente, o orgulho de haver sido designado para assistir à execução de um criminoso, honra de que havia se gabado, vaidoso, perante os amigos. Parecia-lhe que tal feito lhe conferia certo caráter solene, implacável - como a Justiça -, que o elevava sobre os míseros mortais. Naturalmente, sua mulher, uma criatura frágil, estava um tanto assustada; ele, porém, era um homem acima de tais fraquezas e tinha consciência da gravidade de sua missão social.
Apesar disso, ligeiros estremecimentos percorriam seu corpo. Não por causa da temperatura, bastante baixa dentro da casa, mas pela excitação produzida por seus nervos. Procurava, em vão, controlar-se.
Enquanto tomava o café, sem saboreá-lo, e esforçando-se para se manter aprumado, sua mulher permanecia calada e evitava olhá-lo, como se estivesse enferma, o lindo rosto juvenil muito pálido. 
-  Bom, estou indo – disse o homem, tomado de seriedade, após olhar o relógio.
Levantou-se. Sua mulher se levantou também. Ambos sentiram, no fundo do coração, algo doloroso, mas simularam uma total tranquilidade.
Já no saguão, quando French estava vestindo o capote, ela disse timidamente:
-  Por que você não inventa uma desculpa? Poderia alegar uma indisposição...
French ficou ofendido, como se sua mulher o tivesse insultado.
-  Para quê? – reagiu, encolhendo os ombros -. Devo ir e irei.
-  Digo isso porque você... você... ficará impressionado...
O homem ficou ainda mais ofendido: foi ríspido com a mulher e, inclusive, segurou-a pelo braço.
-  Não é um espetáculo muito divertido – falou com frieza, contendo sua ira. – Mas, se todos se recusassem a cumprir com seu triste dever, os criminosos estariam livres para cometer suas atrocidades. Das duas uma: ou somos cidadãos que zelam pela segurança da sociedade, ou somos uns covardes!
E acrescentou ainda outras frases não menos pomposas.
À medida que falava, sentia como se um peso lhe fosse sendo tirado das costas.
“Com efeito” – pensou, terminando seu breve discurso, satisfeito como se acabasse de encontrar a razão nova e poderosa -, “cumpro um dever social!”.
E, novamente, considerou-se uma espécie de herói chamado a cumprir uma missão para a qual se necessitava um temperamento extraordinário.
-  É verdade, é um triste dever – suspirou a senhora French, que o havia escutado movendo afirmativamente a cabeça.
Quando seu marido já estava abrindo a porta, recordou-se de que naquela noite deviam ir à ópera e de que se tratava de uma “sessão única”.
-  Queres desistir do teatro? – ela perguntou.
-  Por quê? Antes pelo contrário...
-  É verdade... Assim você se distrai um pouco.
Ambos suspiraram aliviados.
Ela fechou a porta e voltou pensativa à sala de jantar.


II

Amanhecia. Desprendia-se do céu cinzento uma sutil umidade. As calçadas, os postes da rua, as paredes, as vitrines das lojas, tudo estava molhado.
A vida cotidiana iniciava. Gente recém-acordada e ainda sonolenta se dirigia apressada, tiritando, às estações do trem e às paradas de ônibus. As portas das lojas começavam a se abrir.
French tomou um ônibus, que se punha em marcha com grande barulho de ferros e vidros. Diante dos seus olhos desfilavam casas, muitas das quais com as janelas ainda fechadas. Grande parte da população continuava dormindo. A grande cidade, apesar dos estridentes apitos das fábricas, do ruído do trânsito e do som de numerosas vozes humanas, parecia semimorta.
Diante de French sentaram-se alguns operários e uma moça sonolenta. O grave homem estava completamente tranquilo; seu abatimento moral havia desaparecido. Observava com serenidade os demais passageiros. Nem suspeitavam de que viajava entre eles um dos doze jurados que, em nome da lei, deveria assistir à execução do célebre réu cujo crime terrível havia causado tanta comoção.
Sentia-se novamente investido de uma certa majestade soturna.
“Como me olhariam se soubessem quem sou!”, pensou.
Naquela tarde contaria, pateticamente, todos os detalhes da execução, e seus ouvintes lhe escutariam boquiabertos e horrorizados.
A moça sonolenta – que era muito linda – despertava-lhe um desejo sensual. Seus olhos adormecidos faziam-lhe pensar em um leito morno, cheirando a mulher, como o que acabara de deixar. Os cabelos crespos da passageira, seu peito escultural, marcando o tecido da blusa, davam a French um delicioso prazer visual. No entanto, ele não se esquecia, em nenhum momento, do objetivo pelo qual havia madrugado, o real objetivo daquela viagem, muito embora isso não lhe diminuísse a satisfação que sentia ao olhar a moça. Ah, se ela soubesse que ele era um homem arrojado, um homem valoroso que iria assistir, dentro de instantes, a uma execução, na certa o admiraria.
O ônibus parou. French sentiu uma súbita e aguda frieza no coração e deu um suspiro profundo. Teve que fazer um esforço para se levantar. Gostaria que faltasse um minuto que fosse para chegar. A proximidade do grande horror lhe provocava tremores.
Retirando forças da fraqueza, saiu, depois de olhar uma vez mais os olhos sonolentos da linda passageira.


III
-  São cinco para as seis – disse o fiscal, levantando-se.
Os doze jurados também se levantaram, seguidos do doutor e do oficial de polícia. Todos os rostos estavam pálidos, porém, as sobrecapas negras e os chapéus de copa davam ao grupo um ar de grave e serena solenidade.
French, que ocupava o terceiro lugar da fila, começou a andar com o passo também grave, sereno, solene, como se estivesse numa procissão.
Os corredores da prisão se encontravam desertos, e os passos dos quinze homens, abaixo das abóbodas, soavam claros e secos.
A fria luz do sol nascente penetrava através das janelas gradeadas da sala onde teria lugar a execução. Havia quinze cadeiras negras encostadas junto às paredes cinzas.
French ocupou a sua, trêmulo, e se esforçou para ocultar a emoção que, desde sua chegada à prisão, ia-se apoderando de sua alma.
No meio da sala havia uma cadeira de braços, equipada em diversos pontos por fortes correias. No alto do respaldo havia uma pequena estrutura metálica para a cabeça. O móvel repousava sobre uma plataforma de vidro e parecia destinado a operações cirúrgicas.
“Na realidade” – disse French a si mesmo -, “trata-se de uma operação: a amputação de um membro doente da sociedade.”
Subitamente, a porta se abriu e se pôde ouvir o som de passos no corredor. Todos se levantaram. French, sem saber ao certo por que os outros se levantavam, apenas os imitou.
Ao cabo de um segundo, terrivelmente longo, apareceram no umbral dois policiais, que se detiveram em ambos os lados da porta. E ele apareceu.
Todos os olhares se cravaram nele. Se, em vez de um homem, os quinze presentes tivessem visto um fantasma, não teriam ficado mais assombrados.
Era um homem de estatura elevada, cujo traje de algodão branco, contrastando com as sobrecasacas negras dos presentes, fazia-lhe parecer ainda mais alto.
A partir daquele momento, French não tirou mais os olhos dele. Uma curiosidade aguda e doentia endereçava seu olhar àquele rosto – um rosto vulgar, de pelos ruivos -. Ao olhá-lo, invadiu-lhe uma sensação desagradável, da qual, contudo, não conseguia se livrar. Oh, a atração irresistível daquele rosto ainda vivo, que dentro de instantes seria o de um morto!
O réu entrou com a cabeça alta, andando a passos largos, olhando tudo a seu redor. Perto da porta, deteve-se por um momento, como se vacilasse.
French, nervoso, o coração oprimido, perguntava-se: “O que vai acontecer, meu Deus?” Porém, não ocorreu nada de extraordinário: o réu, dominando-se, andou mais alguns passos. Seus olhos observavam de um modo estranho os jurados, dos quais se diria que esperava algo. Quando seu olhar cruzou com o de French, o grave homem pareceu ver nos olhos do criminoso uma expressão de fria e amarga reprovação. Acabou por baixar os seus, o sangue enregelado nas veias: “Eu votei pela pena de morte!”, pensou.
Cumpridas todas as formalidades, só faltava proceder à execução.
E o mesmo pensamento perturbou a consciência daqueles que assistiam, em nome da lei, ao horrível espetáculo. Era um absurdo que uma dúzia e meia de cavalheiros, de sobrecasacas e chapéus de copa, assassinassem aquele desgraçado.
Não aconteceria nada que impedisse o assassinato?...
Não, não aconteceu...
Os fatos que precederam ao ato da execução foram de uma absoluta e terrível normalidade.
Dois auxiliares do carrasco agarraram, com grande cortesia, cada um dos braços do réu, cercaram-no e o fizeram sentar. Ele se sentou docilmente, recostou-se à vontade, como quem se dispõe a assistir a uma peça de teatro, e esperou... Os auxiliares se inclinaram sobre ele e começaram a amarrá-lo, com as correias de que estava provida a cadeira elétrica, nos braços e nas pernas.
Quando os dois homens terminaram sua tarefa, separaram-se. French viu o réu diminuído e transformado numa espécie de saco envolto numa rede de cordas apertadas. O criminoso, ainda que quisesse, não poderia mover a cabeça. E havia em seus olhos uma expressão ávida, ansiosa, como se buscasse algo, como se quisesse  gravar na memória tudo o que via.
Momentos depois, duas mãos ligeiras e hábeis, com luvas negras, levantaram, por trás da cadeira, um capacete metálico, que foi colocado sobre a cabeça do réu. Um olhar cheio de horror, mais breve que um relâmpago, recaíra sobre os olhos de French, fazendo-o estremecer: era o último olhar daquele homem.
O réu havia desaparecido. Na cadeira estava sentado um ser estranho, fantástico, uma espécie de embarcação prestes a afundar no mar. O estranho ser, em sua imobilidade espantosa, já parecia inanimado.
French se deu conta de que se aproximava o último momento, de que em seguida iria ocorrer algo horrível, abominável, repugnante... Fechou os olhos. Sua emoção era tão intensa que temeu perder os sentidos.
Escutou-se um ruído seco; alguém pronunciou, em voz alta, duas ou três palavras, e reinou novamente o silêncio.
“Acabou!”, pensou French, abrindo os olhos com uma curiosidade cheia de receio.
O corpo do réu, amarrado, seguia na cadeira. O carrasco e seus ajudantes tinham se afastado do móvel.
“Acabou!”, voltou a dizer French para si mesmo.
No entanto, viu, de repente, horrorizado, que o corpo do réu era sacudido por algo que lembrava um ataque de epilepsia. Percebiam-se os desesperados esforços do infeliz dentro da apertada rede de amarras.
- Basta! – ordenou o médico.
Detrás de um biombo que havia num dos cantos da sala soou um leve estalido metálico.
Os estremecimentos e os esforços do réu continuaram.
Uma grande emoção tomou conta de todos.  O fiscal, o médico e a maioria dos jurados se levantaram. Ouviram-se gritos e perguntas entrecortadas.
-  A corrente! A corrente elétrica! – ordenou o fiscal com voz sufocada.
O choque metálico se repetiu. Um estremecimento horrível sacudiu o corpo do réu.
O silêncio foi rompido pelo estalar de uma das correias que se rompeu, um estranho ruído...
 French sentiu que as forças o abandonavam.
O cheiro de cabelos queimados se espalhava pelo ambiente.
-  Basta!
O corpo já não estremecia. A figura branca, fantástica, estava imóvel.
O doutor aproximou-se da cadeira e inclinou-se sobre ela.
-  Agora sim, tudo deve estar acabado!”, pensou French. “Que horror!”
O doutor, porém, deu um salto e gritou aterrorizado:
-  Ele ainda está vivo! Corrente! Mais corrente!
E se afastou com rapidez.
-  Não é possível! – contestou alguém.
-  Digo a você que ele está vivo! Corrente! Corrente!
O que ocorreu no momento seguinte foi tão horroroso que French esteve a ponto de enlouquecer: no alto do capacete apareceu uma chama azul, e pela abertura saía uma fumaça tênue, cheirando a carne queimada. French sentiu pavor, angústia, náuseas, e fechou novamente os olhos.
Outro jurado o puxou pela manga.
Tudo havia terminado.
Agora, os jurados tinham de assinar a ata da execução daquele homem, condenado à morte por haver assassinado o próprio pai.
French se levantou, sem entender perfeitamente do que se tratava, e olhou com horror a fantástica figura branca de cabeça metálica, já definitivamente imóvel.
Assinada a ata, ele foi para casa. Parecia um sonâmbulo. Movia-se como um autônomo. Doía-lhe todo o corpo. Uma recordação pavorosa o atormentava, mas não era a lembrança do fato em si, e sim uma terrível impressão. O que era, afinal, Deus do céu, que havia acontecido?... Acabava de assistir a um assassinato, a um assassinato legal, realizado dentro da ordem e da lei e de todos os preceitos jurídicos; havia sido um dos assassinos, havia contribuído com aquele crime odioso; aquilo era atroz, inconcebível, mas o que lhe havia produzido a impressão cuja lembrança o perseguia, torturante, não era aquilo em seu conjunto, senão um detalhe...
Aquele detalhe, que não conseguiu apagar de sua memória, nem naquele momento, nem nunca mais: o último olhar do réu, a expressão daqueles olhos, muito abertos, que clamavam por piedade, por ajuda, tingindo suas pupilas de um terror imenso e infinito.
Diante daquele olhar, French não havia se levantado, não havia sequer se movido de seu lugar.
Como os demais jurados, havia cumprido seu papel de espectador de um crime!





2 comentários:

  1. Parabéns pelo texto.

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  2. http://abrapt.wordpress.com/2013/04/29/simposio-panorama-da-traducao-de-textos-em-russo-no-brasil/

    Dê uma olhada professor.

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