Este conto que aqui apresento no Fôlego Literário, Assassinato, de Mikhaíl Pietróvitch Artsibáshchev, traduzi no ano de 2006 para a Editora Leitura XXI aqui de Porto Alegre. Na ocasião, o pedido que me foi feito era para o volume 5 da coleção Leitura Jovem da editora, volume intitulado Contos Aterrorizantes, que reúne também autores como Edgar Allan Poe, Ambrose Bierce, Guy de Maupassant, Villiers de L’Isle-Adam, W.W.Jacobs, Horacio Quiroga e Thomas Hood, além do conto abaixo reproduzido de Mikhaíl Artsibáshchev. Este título ainda consta para venda na referida editora.
MIKHAÍL PIETRÓVITCH
ARTSIBÁSHCHEV
Em Assassinato, Artsibáshchev mostra sua habilidade como contista ao
contrapor a necessidade que todos têm de viver com o aparato social que
legaliza a pena de morte e executa o criminoso. Um documento social, uma forte
denúncia contra a corrupção de uma sociedade que caminha perdida para o fim, Assassinato consegue apavorar o leitor
conforme o castigo vai progredindo até atingir seu ápice, lembrando a máxima de
Dostoiévski de que até mesmo um parricida merece piedade.
ASSASSINATO
MIKHAÍL PIETRÓVITCH ARTSIBÁSHCHEV (1878-1927)
Tradução de João Armando Nicotti
I
Muito cedo, antes mesmo de
o sol nascer, todo mundo se levantou na casa, e as luzes foram acesas.
Na rua ainda reinava
a escuridão, mas a proximidade do alvorecer começava a dar um tom acinzentado à
negrura das trevas. Fazia frio. A luz, àquela hora, feria desagradavelmente a
vista, e todos sentiam aquele acentuado mal-estar: o desgosto e o desconforto de
um despertar fora do tempo.
Na sala de jantar, a
senhora French tomava o café. Seu marido, o sr. French, ouvia, do quarto,
enquanto se vestia, o ruído da colherinha e da xícara. Enquanto vestia a camisa
de colarinho e peitilho engomados, estremeceu, devido à interrupção de seus pensamentos.
- Tommi, o café está servido... Já são cinco horas -
avisou-lhe, timidamente, sua mulher. A indisposição do homem ilustre crescia a
cada momento, a ponto de se traduzir numa respiração dificultosa, em que se
podiam notar seu cansaço e um agudo nervosismo.
-
Já vou, já
vou!
Momentos depois, o
sr. French saía para a sala de jantar vestido numa sobrecasaca. O severo traje lhe
caía bem, combinava com a barba bem-feita e proeminente, dando-lhe um ar
majestoso.
Sua mulher lhe dirigiu
um olhar tímido e em seguida baixou os olhos, fingindo estar concentrada na
tarefa de dissolver o açúcar na poção aromática.
O sr. French
sentou-se. Seu mal-estar havia diminuído um pouco. Sentia, novamente, o orgulho
de haver sido designado para assistir à execução de um criminoso, honra de que
havia se gabado, vaidoso, perante os amigos. Parecia-lhe que tal feito lhe
conferia certo caráter solene, implacável - como a Justiça -, que o elevava
sobre os míseros mortais. Naturalmente, sua mulher, uma criatura frágil, estava
um tanto assustada; ele, porém, era um homem acima de tais fraquezas e tinha
consciência da gravidade de sua missão social.
Apesar disso,
ligeiros estremecimentos percorriam seu corpo. Não por causa da temperatura,
bastante baixa dentro da casa, mas pela excitação produzida por seus nervos. Procurava,
em vão, controlar-se.
Enquanto tomava o
café, sem saboreá-lo, e esforçando-se para se manter aprumado, sua mulher
permanecia calada e evitava olhá-lo, como se estivesse enferma, o lindo rosto
juvenil muito pálido.
-
Bom, estou
indo – disse o homem, tomado de seriedade, após olhar o relógio.
Levantou-se.
Sua mulher se levantou também. Ambos sentiram, no fundo do coração, algo
doloroso, mas simularam uma total tranquilidade.
Já
no saguão, quando French estava vestindo o capote, ela disse timidamente:
-
Por que você
não inventa uma desculpa? Poderia alegar uma indisposição...
French ficou ofendido, como se sua mulher o tivesse insultado.
-
Para quê? –
reagiu, encolhendo os ombros -. Devo ir e irei.
-
Digo isso
porque você... você... ficará impressionado...
O homem
ficou ainda mais ofendido: foi ríspido com a mulher e, inclusive, segurou-a
pelo braço.
-
Não é um
espetáculo muito divertido – falou com frieza, contendo sua ira. – Mas, se
todos se recusassem a cumprir com seu triste dever, os criminosos estariam livres
para cometer suas atrocidades. Das duas uma: ou somos cidadãos que zelam pela
segurança da sociedade, ou somos uns covardes!
E acrescentou
ainda outras frases não menos pomposas.
À medida
que falava, sentia como se um peso lhe fosse sendo tirado das costas.
“Com
efeito” – pensou, terminando seu breve discurso, satisfeito como se acabasse de
encontrar a razão nova e poderosa -, “cumpro um dever social!”.
E,
novamente, considerou-se uma espécie de herói chamado a cumprir uma missão para
a qual se necessitava um temperamento extraordinário.
-
É verdade, é
um triste dever – suspirou a senhora French, que o havia escutado movendo
afirmativamente a cabeça.
Quando seu marido já estava abrindo a porta, recordou-se de que
naquela noite deviam ir à ópera e de que se tratava de uma “sessão única”.
-
Queres
desistir do teatro? – ela perguntou.
-
Por quê? Antes
pelo contrário...
-
É verdade... Assim
você se distrai um pouco.
Ambos suspiraram
aliviados.
Ela fechou a porta e
voltou pensativa à sala de jantar.
II
Amanhecia. Desprendia-se do
céu cinzento uma sutil umidade. As calçadas, os postes da rua, as paredes, as
vitrines das lojas, tudo estava molhado.
A vida cotidiana
iniciava. Gente recém-acordada e ainda sonolenta se dirigia apressada,
tiritando, às estações do trem e às paradas de ônibus. As portas das lojas
começavam a se abrir.
French tomou um
ônibus, que se punha em marcha com grande barulho de ferros e vidros. Diante
dos seus olhos desfilavam casas, muitas das quais com as janelas ainda
fechadas. Grande parte da população continuava dormindo. A grande cidade,
apesar dos estridentes apitos das fábricas, do ruído do trânsito e do som de
numerosas vozes humanas, parecia semimorta.
Diante de French
sentaram-se alguns operários e uma moça sonolenta. O grave homem estava completamente
tranquilo; seu abatimento moral havia desaparecido. Observava com serenidade os
demais passageiros. Nem suspeitavam de que viajava entre eles um dos doze jurados
que, em nome da lei, deveria assistir à execução do célebre réu cujo crime
terrível havia causado tanta comoção.
Sentia-se novamente investido
de uma certa majestade soturna.
“Como me olhariam se
soubessem quem sou!”, pensou.
Naquela tarde contaria,
pateticamente, todos os detalhes da execução, e seus ouvintes lhe escutariam
boquiabertos e horrorizados.
A moça sonolenta –
que era muito linda – despertava-lhe um desejo sensual. Seus olhos adormecidos
faziam-lhe pensar em um leito morno, cheirando a mulher, como o que acabara de
deixar. Os cabelos crespos da passageira, seu peito escultural, marcando o
tecido da blusa, davam a French um delicioso prazer visual. No entanto, ele não
se esquecia, em nenhum momento, do objetivo pelo qual havia madrugado, o real
objetivo daquela viagem, muito embora isso não lhe diminuísse a satisfação que
sentia ao olhar a moça. Ah, se ela soubesse que ele era um homem arrojado, um
homem valoroso que iria assistir, dentro de instantes, a uma execução, na certa
o admiraria.
O ônibus parou.
French sentiu uma súbita e aguda frieza no coração e deu um suspiro profundo.
Teve que fazer um esforço para se levantar. Gostaria que faltasse um minuto que
fosse para chegar. A proximidade do grande horror lhe provocava tremores.
Retirando forças da
fraqueza, saiu, depois de olhar uma vez mais os olhos sonolentos da linda
passageira.
III
-
São cinco para
as seis – disse o fiscal, levantando-se.
Os doze jurados também
se levantaram, seguidos do doutor e do oficial de polícia. Todos os rostos
estavam pálidos, porém, as sobrecapas negras e os chapéus de copa davam ao
grupo um ar de grave e serena solenidade.
French, que ocupava
o terceiro lugar da fila, começou a andar com o passo também grave, sereno,
solene, como se estivesse numa procissão.
Os corredores da prisão se encontravam
desertos, e os passos dos quinze homens, abaixo das abóbodas, soavam claros e
secos.
A fria luz do sol
nascente penetrava através das janelas gradeadas da sala onde teria lugar a
execução. Havia quinze cadeiras negras encostadas junto às paredes cinzas.
French ocupou a sua,
trêmulo, e se esforçou para ocultar a emoção que, desde sua chegada à prisão,
ia-se apoderando de sua alma.
No meio da sala
havia uma cadeira de braços, equipada em diversos pontos por fortes correias.
No alto do respaldo havia uma pequena estrutura metálica para a cabeça. O móvel
repousava sobre uma plataforma de vidro e parecia destinado a operações
cirúrgicas.
“Na realidade” –
disse French a si mesmo -, “trata-se de uma operação: a amputação de um membro
doente da sociedade.”
Subitamente, a porta
se abriu e se pôde ouvir o som de passos no corredor. Todos se levantaram.
French, sem saber ao certo por que os outros se levantavam, apenas os imitou.
Ao cabo de um
segundo, terrivelmente longo, apareceram no umbral dois policiais, que se
detiveram em ambos os lados da porta. E ele
apareceu.
Todos os olhares se
cravaram nele. Se, em vez de um
homem, os quinze presentes tivessem visto um fantasma, não teriam ficado mais assombrados.
Era um homem de
estatura elevada, cujo traje de algodão branco, contrastando com as sobrecasacas
negras dos presentes, fazia-lhe parecer ainda mais alto.
A partir daquele
momento, French não tirou mais os olhos dele. Uma curiosidade aguda e doentia
endereçava seu olhar àquele rosto – um rosto vulgar, de pelos ruivos -. Ao
olhá-lo, invadiu-lhe uma sensação desagradável, da qual, contudo, não conseguia
se livrar. Oh, a atração irresistível daquele rosto ainda vivo, que dentro de
instantes seria o de um morto!
O réu entrou com a
cabeça alta, andando a passos largos, olhando tudo a seu redor. Perto da porta,
deteve-se por um momento, como se vacilasse.
French, nervoso, o
coração oprimido, perguntava-se: “O que vai acontecer, meu Deus?” Porém, não
ocorreu nada de extraordinário: o réu, dominando-se, andou mais alguns passos.
Seus olhos observavam de um modo estranho os jurados, dos quais se diria que esperava
algo. Quando seu olhar cruzou com o de French, o grave homem pareceu ver nos
olhos do criminoso uma expressão de fria e amarga reprovação. Acabou por baixar
os seus, o sangue enregelado nas veias: “Eu votei pela pena de morte!”, pensou.
Cumpridas todas as
formalidades, só faltava proceder à execução.
E o mesmo pensamento
perturbou a consciência daqueles que assistiam, em nome da lei, ao horrível
espetáculo. Era um absurdo que uma dúzia e meia de cavalheiros, de sobrecasacas e
chapéus de copa, assassinassem aquele desgraçado.
Não aconteceria nada
que impedisse o assassinato?...
Não, não aconteceu...
Os fatos que
precederam ao ato da execução foram de uma absoluta e terrível normalidade.
Dois auxiliares do
carrasco agarraram, com grande cortesia, cada um dos braços do réu, cercaram-no
e o fizeram sentar. Ele se sentou docilmente, recostou-se à vontade, como quem
se dispõe a assistir a uma peça de teatro, e esperou... Os auxiliares se
inclinaram sobre ele e começaram a amarrá-lo, com as correias de que estava
provida a cadeira elétrica, nos braços e nas pernas.
Quando os dois
homens terminaram sua tarefa, separaram-se. French viu o réu diminuído e
transformado numa espécie de saco envolto numa rede de cordas apertadas. O
criminoso, ainda que quisesse, não poderia mover a cabeça. E havia em seus
olhos uma expressão ávida, ansiosa, como se buscasse algo, como se
quisesse gravar na memória tudo o que via.
Momentos depois,
duas mãos ligeiras e hábeis, com luvas negras, levantaram, por trás da cadeira,
um capacete metálico, que foi colocado sobre a cabeça do réu. Um olhar cheio de
horror, mais breve que um relâmpago, recaíra sobre os olhos de French,
fazendo-o estremecer: era o último olhar daquele homem.
O réu havia
desaparecido. Na cadeira estava sentado um ser estranho, fantástico, uma
espécie de embarcação prestes a afundar no mar. O estranho ser, em sua
imobilidade espantosa, já parecia inanimado.
French se deu conta
de que se aproximava o último momento, de que em seguida iria ocorrer algo
horrível, abominável, repugnante... Fechou os olhos. Sua emoção era tão intensa
que temeu perder os sentidos.
Escutou-se um ruído
seco; alguém pronunciou, em voz alta, duas ou três palavras, e reinou novamente
o silêncio.
“Acabou!”, pensou
French, abrindo os olhos com uma curiosidade cheia de receio.
O corpo do réu,
amarrado, seguia na cadeira. O carrasco e seus ajudantes tinham se afastado do
móvel.
“Acabou!”, voltou a
dizer French para si mesmo.
No entanto, viu, de
repente, horrorizado, que o corpo do réu era sacudido por algo que lembrava um
ataque de epilepsia. Percebiam-se os desesperados esforços do infeliz dentro da
apertada rede de amarras.
- Basta! – ordenou o
médico.
Detrás de um biombo
que havia num dos cantos da sala soou um leve estalido metálico.
Os estremecimentos e
os esforços do réu continuaram.
Uma grande emoção
tomou conta de todos. O fiscal, o médico
e a maioria dos jurados se levantaram. Ouviram-se gritos e perguntas
entrecortadas.
-
A corrente! A
corrente elétrica! – ordenou o fiscal com voz sufocada.
O choque metálico se
repetiu. Um estremecimento horrível sacudiu o corpo do réu.
O silêncio foi rompido pelo
estalar de uma das correias que se rompeu, um estranho ruído...
French sentiu que as forças o abandonavam.
O cheiro de cabelos
queimados se espalhava pelo ambiente.
-
Basta!
O
corpo já não estremecia. A figura branca, fantástica, estava imóvel.
O
doutor aproximou-se da cadeira e inclinou-se sobre ela.
-
Agora sim,
tudo deve estar acabado!”, pensou French. “Que horror!”
O doutor, porém, deu um salto e gritou aterrorizado:
-
Ele ainda está
vivo! Corrente! Mais corrente!
E se afastou
com rapidez.
-
Não é
possível! – contestou alguém.
-
Digo a você que ele está vivo! Corrente! Corrente!
O que ocorreu no momento seguinte
foi tão horroroso que French esteve a ponto de enlouquecer: no alto do capacete
apareceu uma chama azul, e pela abertura saía uma fumaça tênue, cheirando a
carne queimada. French sentiu pavor, angústia, náuseas, e fechou novamente os
olhos.
Outro jurado o puxou pela
manga.
Tudo havia terminado.
Agora, os jurados tinham de
assinar a ata da execução daquele homem, condenado à morte por haver
assassinado o próprio pai.
French se levantou, sem entender
perfeitamente do que se tratava, e olhou com horror a fantástica figura branca
de cabeça metálica, já definitivamente imóvel.
Assinada a ata, ele foi
para casa. Parecia um sonâmbulo. Movia-se como um autônomo. Doía-lhe todo o
corpo. Uma recordação pavorosa o atormentava, mas não era a lembrança do fato
em si, e sim uma terrível impressão. O que era, afinal, Deus do céu, que havia
acontecido?... Acabava de assistir a um assassinato, a um assassinato legal,
realizado dentro da ordem e da lei e de todos os preceitos jurídicos; havia
sido um dos assassinos, havia contribuído com aquele crime odioso; aquilo era
atroz, inconcebível, mas o que lhe havia produzido a impressão cuja lembrança o
perseguia, torturante, não era aquilo em seu conjunto, senão um detalhe...
Aquele detalhe, que não
conseguiu apagar de sua memória, nem naquele momento, nem nunca mais: o último
olhar do réu, a expressão daqueles olhos, muito abertos, que clamavam por piedade,
por ajuda, tingindo suas pupilas de um terror imenso e infinito.
Diante daquele olhar,
French não havia se levantado, não havia sequer se movido de seu lugar.
Como os demais jurados,
havia cumprido seu papel de espectador de um crime!
Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirhttp://abrapt.wordpress.com/2013/04/29/simposio-panorama-da-traducao-de-textos-em-russo-no-brasil/
ResponderExcluirDê uma olhada professor.