GENTE POBRE (Бедные люди)
de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski
(Федор Михайлович
Достоевский)
...uma pessoa pobre é pior que um trapo
e não é digna de nenhum respeito da parte de
ninguém, seja lá o que for que escrevam! (...)
para o pobre vai ficar tudo como sempre foi! (Makar)1
Os pobres e os desgraçados devem se afastar uns
dos outros, para não se contagiarem
ainda mais. (Varvara)
...que botas hei de calçar amanhã
para ir para o serviço? (indagação de Makar)
A ESTRÉIA. Com o romance epistolar Gente pobre (1846), Dostoiévski
entusiasma o crítico Bielínski. Este chega a afirmar que a Rússia descobre um
novo Gógol, salientando também que Gente
pobre é “a primeira tentativa de se fazer um romance social” na Rússia. A
chamada “escola natural” (nosso Naturalismo no Brasil) é a expressão bancada,
então, por Bielínski. Segundo o que este crítico crê, a estréia de Dostoiévski
corresponde a sua proposta. Mais tarde, A
senhoria (1847) e Noites brancas (1848)
decepcionam os críticos pelo romanticismo inadequado e fantasmagórico.
Atualmente, vê-se estas duas obras não somente como textos românticos, mas
enredos preparatórios para diversos personagens com psicologias complexas da
fase adulta do escritor, como Crime e
castigo e Os irmãos Karamázov.
Dostoiévski está com 24 anos.
O ENREDO. Makar Alieksiêivitch Diévuchkin (diévuchka em russo significa moça) tem
cerca de 47 anos, mora num pardieiro alugado, num quarto atrás do tabique da
cozinha: uma verdadeira Arca de Noé, em suas palavras. É primavera em São
Petersburgo. Através de suas cartas carinhosas à Varvara Alieksiêievna
Drobrosiólova, vai compondo sua solidão e consideração à moça, moradora vizinha
em frente ao alojamento de Makar. Varvara mora com Fiódora, mulher boa e
rabugenta. Makar tem especial afeição paternal e protetora por Varvara, sendo o
motivo principal de sua vida. Isolado de todos, este funcionário público é
regularmente ridicularizado por seus colegas de serviço, o que o aproxima de
Akaki Akakievitch, o personagem de O capote,
de Gógol. Makar questiona a veracidade do protagonista gogoliano, mas simpatiza
com Samson Vírin, pai de Avdótia (a Dúnia), em O chefe da estação de Púchkin. Por fim, se vê alijado da companhia
(através das cartas e das raras visitas que faz à Varvara) definitiva de sua
vizinha, por esta optar pelo casamento com Bíkov, outrora amigo imoral de Anna
Fiódorovna, mulher suspeita que agenda seus conhecidos para moças de suas
relações. Como Varvara se recusa a este tipo de vida, é perseguida e denegrida por
Anna. Esta, no passado recente, ajudou Varvara e a mãe da jovem, já morta. A
cena final do romance é insuportavelmente constrangedora: Makar, para ficar
“mais perto” de Varvara (que parte definitivamente para o campo com Bíkov, o
irascível), aluga o quarto desta. O adeus para sempre de Varvara é reforçado
pelas cartas que recebeu de Makar no período de abril até setembro (da
primavera ao outono, passando pelas noites brancas de Petersburgo do fim de
maio), agora deixadas em cima da cômoda. O desabafo de Makar para que Varvara
não parta é inócuo e sem eco, pois é carta que ela jamais receberá.
O DIÁLOGO COM PÚCHKIN E GÓGOL. Dostoiévski
retoma, através de Makar, dois personagens de obras significativas da
literatura russa: O chefe da estação
e O capote, respectivamente
de Púchkin e Gógol. Samson Vírin, o chefe da estação, se vê privado
definitivamente de seu objeto de adoração, no caso, sua filha Avdótia (Dúnia),
“raptada” (entenda-se também fugida da vida mediocrizada que leva ao lado do
pai) por Mínski e levada para São Petersburgo. Akaki Akakievitch, funcionário
público gogoliano, depois de tensas e infecundas negociações com seu alfaiate
para que conserte seu surrado e deplorável capote, se vê na obrigação de
economizar ainda mais do pouco que tem para pagar um capote novo. Também
perderá seu objeto querido, quando do roubo de seu novíssimo capote. Makar é
“roubado” também, por Bíkov, pois Varvara o deixa, preocupação que o faz ter
mais ainda com a sua eterna solidão. Afinal, como ficará sua correspondência
com Varvara?
A DIFERENÇA DOSTOIEVSKIANA. A
contrariedade de Makar com o personagem de Gógol pode ser entendida pela falta
de consciência social de Akaki Akakievitch, se considerarmos as repetidas
preocupações de Makar com os outros, como estes o olham, como o consideram e
como convivem em torno dele (também Varvara se preocupa com seu destino, pois
acredita que ao casar com Bíkov restituirá a sua honra, fugindo da pobreza e da
doença, além de seu mau futuro). Makar e Varvara não se tornam personagens
presos e atrofiados por suas insignificâncias; são leitores, miseráveis e humilhados
e ofendidos sociais, mas representam a mobilidade e luta para manter ou
recuperar suas dignidades e diminuir seus prejuízos sociais. São lutadores incansáveis
e, pela primeira vez na literatura russa, seres com disposição a discutir o seu
destino dentro de um todo social.
DESTAQUE PARA DOIS PERSONAGENS. Pokróvski
é pensionista de Anna Fiódorovna e estudante pobre que dá aulas particulares às
meninas Varvara e à prima desta, Sacha. Tem livros raros e valiosos. Este jovem
e tuberculoso estudante se torna amigo de Varvara e empresta livros à jovem. O
pai é bêbado, mas se esforça para adquirir livros para o filho (com a ajuda de
Varvara, ambos compram as obras completas de Púchkin para Pokróvski no dia de
seu aniversário). Com a morte de Pokróvski por tuberculose, Zakhar, seu pai,
desesperado, persegue, a pé, a carroça que leva o caixão do filho.
Do caderno das
recordações de Varvara entregue a Makar Diévuchkin.
Da morte de Pokróvski.
Por fim entendi o que queria. Pedia-me para
levantar a cortina e abrir os contraventos. Sua vontade, certamente, era de ver
o dia, a luz divina, o sol, pela última vez. Abri a cortina; mas o dia que
despontava estava tão triste e melancólico como a pobre vida do moribundo, que
se extinguia. Não havia sol. As nuvens cobriam o céu com uma névoa espessa; ele
estava tão chuvoso, sombrio e melancólico. Uma chuvinha fina tamborilava nos
vidros da janela e banhava-os com jatos de uma água fria e suja; tudo estava embaciado
e escuro. Os raios do dia pálido penetravam tenuamente no quarto e mal
conseguiam competir com a luz trêmula da lamparina acesa diante do ícone. O
moribundo fitou-me com imensa tristeza e balançou a cabeça. Um minuto depois
estava morto.
O infeliz perdeu o chapéu e nem se deteve
para apanhá-lo. Ficou com a cabeça molhada de chuva; levantara uma ventania; a
escarcha fustigava-lhe o rosto, partindo-o todo. O velho parecia não se dar
conta do mau tempo e corria em pranto de um lado para o outro da carroça. As
abas de seu decrépito sobretudo esvoaçavam como asas ao vento. De todos os seus
bolsos assomavam livros; em sua mão havia um livro enorme, que estreitava
fortemente contra o peito. Os transeuntes tiravam o chapéu e faziam o sinal da
cruz. Outros paravam assombrados, para ver o pobre velho. A todo instante lhe
caíam livros dos bolsos na lama. As pessoas o paravam, para apontar-lhe os
livros perdidos; ele os apanhava e se punha de novo a correr no encalço do
caixão. Na esquina, uma velha mendiga juntou-se a ele para acompanhar o caixão.
O
outro pobre coitado é Gorchkov, homem casado e cheio de filhos morador do mesmo
edifício de Makar. Lutando anos por um ganho judiciário, ao sair vitorioso da
demanda, dorme ao lado da esposa e morre sem ter a oportunidade de usufruir
melhores dias.
A SENHORIA e NOITES
BRANCAS. Os protagonistas destes romances se aproximam de Makar por
perderem seus pares e seus motivos de efêmera felicidade: Vassíli Ordinóv perde
Katierina para o enigmático Múrin, em A senhoria;
o narrador–sonhador perde Nástienka para o inquilino desta, em Noites brancas.
1 Esta e as demais citações foram retiradas de Gente pobre, tradução de Fátima
Bianchi, Editora 34, 2009.
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