sábado, 1 de junho de 2013

Uma criatura dócil - F. M. Dostoiévski

UMA CRIATURA DÓCIL  (Кроткая)
de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski
(Федор Михайлович Достоевский)





                 
  
“O Sol está nascendo, olhem para ele, por acaso não é um cadáver?” 1
(do narrador de Uma criatura dócil)


            Terrível contraste Dostoiévski impõe ao seu leitor nesta novela que aparece inicialmente no jornal Golos (A Voz) em outubro de 1876. Neste mesmo ano, o autor redige em seu Diário de um escritor, comentários sobre a notícia de uma costureira moscovita que, atingida pela miséria, se suicida na capital do Império russo, jogando-se da janela de um alto edifício. Chama a atenção de Dostoiévski, na ocasião, um detalhe: um suicida e uma imagem da Virgem. Tal moça, de nome Maria Boríssova, não deixa com sua morte o descuido da cena minúscula para alguém como Dostoiévski: em vez de algum bilhete, um ícone sagrado.
           

1. O tirano e eloquente marido. Homem solitário, autoritário, articulador, penhorista, com passado desdenhado pelos que o conhecem (covardia num duelo, expulsão do regimento, morada em cortiço afamado pela indecência, etc.), contumaz em seu jogo de silêncio, de sedução e de contradição, “compra” um casamento, ao tirar da miséria, da casa de tias “sem eira nem beira” e de um futuro casamento com um tosco vendeiro obeso cinquentão uma jovem e dócil criatura em seus 16 anos. Ao procurar a fuga da vida miserável que a sucumbe, a moça (ela não tem seu nome apresentado pelo narrador e marido) coloca anúncios no jornal Golos (veja que não escapa de Dostoiévski o nome do jornal que noticia a morte de Boríssova e também o do cortiço Viázemski frequentado em certa ocasião pelo narrador em São Petersburgo) para obter colocação que lhe dê sustento favorável. São penhorados, também, insignificantes objetos por ela. O início da relação com ele então surge. Usando-se da fraqueza financeira da moça miserável, o agiota se agarra na ideia de usurpar a vida de sua vítima se impondo como gerenciador do casamento e dos sentimentos da ingênua moça. Mas o tirano enfrenta também dificuldades, pois a jovem o enfrenta com desdém, com silêncio (embora ele se autodenomine “mestre na arte de falar em silêncio”). Torna-se, de dócil, em algoz e tirana criatura. A intensidade psicológica da narrativa ganha força extrema, pois as desconfianças e conclusões do narrador redobram na busca de explicações para seu relacionamento e sua “tática” para dominar a esposa e, desta maneira, manter a função de marido dentro de um contexto social.

2. A desigualdade como escolha. Homem solitário levado por esta preocupação do início ao final do seu relato, o narrador aglomera pensamentos discordantes entre a diferença de idade entre ele e ela: o narrador-quarentão tira a menininha da lama, mas se lambuza no amor que contracena com a morte dela em etapas. Reconhecendo uma série de erros (algo falha, ele avalia, pois se torna amigo da dócil criatura!) e o plano matrimonial de relacionamento (ela deve reconhecer o sentimento nobre do marido – o que não ocorre!), ele, no final da narrativa, se desmancha na loquacidade de seu desespero amoroso, beijando os pés e o chão em que a esposa pisa. A desigualdade entre o casal se inverte com as atitudes dele: se outrora o fascínio pela ingenuidade dela o comove e o alimenta em seus objetivos tirânicos, agora sua fragilidade o compromete, pois, ela, assustada, entra em histeria nervosa que a desfalece e a corrompe fisicamente. O que resta a ela neste contexto? Uma reflexão com a cabeça encostada na parede do quarto, um ícone apanhado, uma janela aberta e um se jogar para não se corromper por um amor que não pode cumprir. Assustada, opta pela destruição, fazendo com que o atento leitor recorde das dificuldades que Madalena (em São Bernardo - 1936, de Graciliano Ramos) enfrenta em seu matrimônio com o fazendeiro Paulo Honório. Para os caboclos de Honório, todos os caminhos acabam na venda; para o narrador dostoievskiano, todos os caminhos propostos a ele mesmo para escapar da solidão terminam em seu orgulho. Enfim, os fins parecem justificar os meios: se há culpados, a parcela da culpa é desigual também, porque ela é a culpada e, segundo ele, ele, por ter se atrasado cinco minutos não evita a morte dela e o retorno dele ao isolamento.

3. A morte pede a palavra. O texto de Uma criatura dócil já foi analisado como rompedor do conceito de novela clássica pelo crítico russo Leonid Grossman – Dostoiévski artista, pois biografa dois personagens que dividem o espaço narrativo: a vida do narrador (sem muito talento, pouca inteligência, desagradável, franco, 41 anos, desprezado e esquecido por todos – na escola e no regimento, orgulhoso, penhorista, econômico, preconceituoso, etc.) e da moça (pai mortos, miserável, submissa, arroubos doentios, direito de amar, retidão, ignorância da vida, convicções gratuitas, dócil, tirana, impetuosa, agressiva, desvairada, nervosa e histérica, assustada, temerosa, novamente submissa, pensativa, suicida). Mas merece destaque a morte, direta ou indiretamente lembrada por Dostoiévski. A narrativa principia com uma mulher morta (ela, no caso) em cima de duas mesas de jogo num apartamento de dois cômodos; os pais dela estão mortos; ele, ao descobrir o encontro que ela tem com um inimigo tenente dele, arma-se de um revólver para ameaçar a esposa adulterina; ela, quando ele está dormindo, encosta o mesmo revólver na têmpora dele; o suicídio dela; e as conclusivas dele frente à morte: “Acho que muitos suicídios e homicídios são cometidos somente porque o revólver já foi empunhado.”; “Os condenados à morte, dizem que eles dormem profundamente na última noite.”, porque senão não suportariam... Dostoiévski vive minutos preciosos de vida frente à morte quando de sua condenação política por fuzilamento, comutada pela “bondade do czar” (entenda-se sadismo do czar) em trabalhos forçados na Sibéria – relato biografado em Recordações da casa dos mortos – 1862, além da ideia da escrita dada pela morte real da moscovita costureira em São Petersburgo.

4. O pedido final ou do sadismo ao masoquismo. Por cinco minutos, segundo o marido, que prepara os passaportes do casal para que possam viajar e, por extensão, para o recomeço de uma nova vida, depois dela prometer-lhe ser fiel e respeitosa esposa (mas segundo ele, ela fica assustada com a revelação que ele faz de seu amor, preferindo assim a morte: “Não quis me enganar com um amor pela metade, sob uma fachada de amor ou com um quarto de amor.”), a vida deles será diferente, assim, mesmo ela não o amando, assim, mesmo que ela partisse com outro e ele a observar do outro lado da rua, assim, se ela, agora, abrisse os olhos pela última vez, assim, como “O Sol está nascendo, olhem para ele, por acaso não é um cadáver?”.

5. De duas certezas. “Eu a esgotei, isso sim.” e “... quando a levarem amanhã, o que vai ser de mim?”.


1  Esta e as demais citações foram retiradas de Uma criatura dócil, tradução de Fátima Bianchi, Cosac & Naify, 2003.




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