terça-feira, 8 de outubro de 2013

O Idiota - F. M. Dostoiévski

O IDIOTA(1868)

(IDIOT /Идиот)


Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski





   Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski redige O idiota no estrangeiro, iniciando em Genebra e concluindo seu trabalho em Florença. Durante este período na Europa, com sua segunda esposa Anna Grigorievna Dostoiévskaia, a vida do casal continua turbulenta, embora sem as pressões dos credores caso estivessem na Rússia. Entretanto, enquanto trabalha em seu novo romance, Dostoiévski se vê obrigado a se mudar cinco vezes neste período na Europa. Uma tragédia também se abate no casal, porque sua primeira filha morre pouco tempo depois de nascer. Assim, a produção de O idiota dá-se em meio de turbulências.



   As primeiras anotações para O idiota aparecem em setembro de 1867. Neste mesmo ano, em novembro ou dezembro, Dostoiévski destrói a primeira redação de O idiota e idealiza novo projeto para o futuro romance. Dostoiévski aprecia Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, como também sabe que o público leitor se simpatiza com o protagonista do escritor espanhol. No Capítulo I da Segunda Parte, Aglaia guarda um bilhete enviado por Míchkin dentro de um volume de Dom Quixote de La Mancha.Depois vê qual o livro escolhido e gargalha sem saber por quê. Dostoiévski tem consciência que seu Míchkin deve ser diferente de Dom Quixote, embora em seu primeiro esboço seu futuro personagem deva preencher algo de bom que carece na sociedade moderna. Para fugir do cômico de Cervantes, a elaboração de seu Míchkin deve se aprofundar não apenas na diferença que ele é em relação ao contexto em que vive, mas ir além em suas intenções ao compreender o sofrimento humano. Ao escolher, por exemplo, por Nastácia Fílippovna, Míchkin opta por este sofrimento; Dostoiévski opta, ao escolher por um tipo como Míchkin, por um personagem disposto a sacrificar sua vida pela vida do outro, numa espécie de ressurreição proposta para Raskólnikov em Crime e castigo. Outro aspecto interessante é a maneira como Míchkin entende a vida promíscua de Nastácia Fílippovna, procurando sacrificar a sua para salvá-la; Raskólnikov, embora só vá compreender no final da trama de Crime e castigo seu amor por Sônia Semeónovna Marmieládova, se ajoelha frente à moça por estar frente ao sofrimento humano. Sim, Míchkin não é Raskólnikov, mas Raskólnikov pode ser Míchkin em sua nova vida depois da pena na Sibéria. Em dezembro de 1867, então, Dostoiévski inicia a redação definitiva de O idiota em Genebra. No ano seguinte, em janeiro de 1868, começa a publicação de seu novo romance nos números I, II, IV - XII no Rúski viéstnik. Finalmente, em 1869, em janeiro, em Florença, Dostoiévski conclui O idiota. A primeira e única edição em vida do autor sai em dois volumes em São Petersburgo no ano de 1874. Há pequenas modificações feitas pelo autor nos últimos quatro capítulos da obra daquela primeira versão no Rúski viéstnik.

   Dostoiévski prima pela dicotomia entre dois grupos de personagens em O idiota: os de caráter social e os de caráter metafísico. Os primeiros são os ditos vulgares e comuns, envolvidos em questões secundárias e de relacionamento mundano. Vê-se, por exemplo, o que o narrador desenvolve no Capítulo 1 da Quarta Parte de O idiota: há pessoas “comuns” ou “ordinárias”, mas há, também, diferenças entre estas, pois há as “limitadas” e as bem “mais inteligentes”. As limitadas são felizes por natureza; as “bem mais inteligentes”, mais infelizes. É o caso do personagem Gavrila Ardaliónovitch Ívolguin (Gánia), “contagiado pelo desejo de originalidade”, pela “falta de talento”, por seus “desejos impetuosos e invejosos”, por seus “nervos irritados”, pelo “ódio que tem da pobreza e da decadência de sua família” e por acreditar que a conquista de tudo passa pelo dinheiro. A contradição deste personagem é evidente, por isso humana, pois vive às custas do cunhado (Ptítzin) e, em determinado momento, se arrepende de ter devolvido – via Míchkin – o dinheiro “doado” por Nastácia Fílippovna. Este dinheiro, cabe salientar, é resultado da loucura apaixonada de Rogójin para conquistar Nastácia. No dia do aniversário de Nastácia, ela recebe um pacote com enorme quantia de dinheiro. Para provocar e humilhar seu suposto “noivo” Gavrila, joga o pacote contendo 100 mil rublos na lareira. Gánia fica a observar o pacote queimar, mas se contém e não pega, com certa dignidade, o pacote. Por fim, desmaia. O pacote é retirado da lareira apenas chamuscado. A luta interior de Gavrila é digna e, seu desmaio, a metáfora que reage ao materialismo iminente em sua proposta de vida.

   Os outros personagens, aqueles de caráter metafísico, personificados em três protagonistas (Liev Nikoláievitch Míchkin, Parfen Semeónovitch Rogójin e Nastácia Filíppovna Barachkova), distendem-se em preocupações mais profundas e com consequências principais, pois filosóficas. Entretanto, no decorrer da leitura de O idiota, estes últimos personagens terminam por se envolver nos problemas sociais e mundanos que estão às suas voltas, salientando ainda mais em suas personalidades a tensão em que vivem. Nas convivências estabelecidas entre si, estes três personagens principais percorrem um trajeto similar instaurando em suas performances de caráter o sombrio assustador de um destino inexorável, de um final que se torna cíclico da primeira à ultima parte do romance. Suas estranhezas são salientadas e diluídas na convivência com os personagens sociais, atendendo ao apelo da trama: o suspense, o minúsculo, o diálogo, a reflexão e as atitudes inconsequentes, pois apaixonadas.

   Para Dostoiévski, o essencial é saber como o homem deve ser em sua existência e, não apenas, como ele se apresenta em sociedade e em suas relações pessoais. Este “ir além” dostoievskiano corrobora em seus personagens a diferença dos tipos realistas do século XIX, porque a base da construção destes passa também a ser filosófica.

   As relações de Liev Nikoláievitch Míchkin, a cada momento da narrativa, se aprofundam, seja com o cotidiano mundano e cheio de mesquinharias e intrigas triviais, seja com dois personagens que se tocam para tocarem no príncipe Míchkin. Se avaliado o estreitamento entre Míchkin e Nastácia Filíppova e Rogójin, percebemos o inexorável de suas uniões e desuniões ao longo da história de Dostoiévski. Míchkin é um homem dotado de bondade e de simplicidade, agravantes em seu convívio com a maioria dos personagens. Entretanto, Dostoiévski faz um duplo interessante nos personagens Míchkin e Rogójin. Rogójin, no início da narrativa, gosta de Míchkin, apontando a este como o vê: um iuródiv, ou seja, uma mescla de tolo, mendigo bitolado e clarividente. Míchkin “vê” os outros de modo diferente, “vê” também vultos e olhares que o acompanham ou que o observam no meio de multidões; Míchkin, o Cristo simbolizado por Dostoiévski, tem uma sensibilidade destacada em nível dos demais homens. Ao conversar com os demais personagens, o príncipe, antecipadamente, já sabe o rumo que a conversa tomará, embora não consiga, racionalmente, acompanhar a razão vilipendiada dos interesses e das relações sociais de seus pares. Todos aqueles que convivem com Míchkin terminam por gostar dele ao seu modo: irritados, ofendidos, humilhados, desarmados, etc. Chegam, muitos destes personagens, a externar o que sentem a Míchkin, seja o ofendendo ou reconhecendo sua pureza e franqueza. Míckhin sofre, entretanto, ao se deparar com um mundo convencionalmente egoísta, perdulário ao dinheiro e às relações mesquinhas e parasitárias. Se Míchkin se aproxima de Rogójin e de Nastácia é porque estes precisam mais do que qualquer outro personagem de O idiota, pois, estando mal, sofrem algo que extrapola a mediocridade do mundo. A punição a estes três personagens é o tripé de um mundo metafísico pressionado pelo amor, pelo ódio, pela própria existência. O existir de Rogójin é amar odiando; o de Nastácia, odiar o amado e o de Míckhin, amar o seu semelhante, por isso nada ou pouco o surpreende.

   A cruz de Rogójin no peito de Míchkin é a duplicidade da cruz de Míchkin no peito de Rogíjin; a mão que acaricia a loucura de Nastácia Filíppovna, é a mesma mão que acaricia a cabeça do assassino da depravada. O que fica para Míchkin é a luminosidade maravilhosa de seus ataques epilépticos que, finalmente, se tornam sua loucura, sua idiotia e o não reconhecimento mais de quem é aquela mulher que o visita na Suíça e chora por seu parente distante: Lisavieta Iepántchina Prokófievna.



4 comentários:

  1. A relação entre Raskólnikov e Míchkin, "numa espécie de ressurreição" daquele, é fascinante. O príncipe parece simbolizar a redenção que Rodion Románovitch e Sônia Semeónova alcançam juntos, assim como a própria misericórdia, que é demonstrada com os outros dois protagonistas de 'O Idiota', quando cada um deles se encontra diante da sua punição: "a mão que acaricia a loucura de Nastácia Filíppovna, é a mesma mão que acaricia a cabeça do assassino da depravada".

    Parabéns pelo blog!

    Abraço, Eduardo

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  2. Eduardo

    Obrigado pelo comentário oportuno e inteligente.

    Abraço. Nicotti

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  3. Olá, eu acabei de ler o livro e estou num misto de tristeza com curiosidade por saber mais da história. Eu gostaria de entender melhor a relação de Michkin com a Aglaia. Ela realmente o amava? O que de fato os impediu de ficarem juntos era vergonha que ela sentia dele, ou a relação mau resolvida com Nastácia?
    Gostei muito do texto? Abraços!

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  4. Eu cheguei ao absurdo de pensar que O PRÍNCIPE E REGOJIN fossem a mesma pessoa, um caso de dupla personalidade. Fui muito além do possível?kkkk

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