segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Gógol e Almas mortas



   Nicolai Gógol termina sua literatura de modo similar ao seu início: no ano de 1829, publica um poema estudantil que tem enorme fracasso. Gógol e seu criado compram todos os exemplares de Hans Küchelgarten. Também deixa de utilizar o pseudônimo utilizado para esta obra, não adotando mais V. Álov; no ano de 1852, momentos antes de morrer, Gógol queima os manuscritos da Segunda parte de Almas mortas. No ano de 1842, Almas mortas é publicada, depois das mortes de Púchkin (em 1837) e de Liermontóv (em 1841). Nicolái Gógol é considerado o grande escritor vivo da Rússia. 
   O declínio da literatura de Gógol inicia com suas conclusões e investimento no seu misticismo religioso, elemento este que se encontra no seu discurso moral e na esperança de alguns de seus personagens na Segunda parte de Almas mortas. Este misticismo será um dos motivadores da queima dos manuscritos desta Segunda parte, naquele que se considera um julgamento impiedoso e severo do próprio autor por sua obra literária. É razoável lembrar que Gógol peregrinou por Jerusalém no ano de 1848. 
   Gógol foi o grande inovador da literatura russa, abrindo vertentes e diretrizes importantes não somente na literatura russa como, também, na literatura ocidental, graças a sua postura crítica frente ao seu próprio tempo, num contexto de repressão e censura de um regime autoritário.
   O projeto de Gógol, desde o início para Almas mortas, era englobar toda a Rússia em seu poema, pois sabia que para a literatura de seu país ainda não havia uma obra deste porte. Esta revelação é vista em carta a Púchkin em 07 de outubro de 1835, portanto antes da escrita de O inspetor geral.
   He comenzado a escribir Almas muertas. El tema se va extendiendo y se va convirtiendo en una novela larga y parece que será tremendamente divertida. Pero ahora la he parado en el capítulo tercero. Estoy buscando un buen informador con el que pueda compartir una breve intimidad: en esta novela quiero mostrar toda Rusia, al menos desde un lado.
   Numa primeira versão de Almas mortas, iniciada em São Petersburgo, em 1836, e continuada na Suíça e em Paris, Gógol abre mão de continuá-la por considerar que há excessiva sátira em seu enredo. Deseja, sim, criar um texto que tenha mais descrição e com menos mordacidade, embora não abrindo mão de retratar a banalidade, a mesquinharia, a hipocrisia e a trivilialidade do dinheiro que encanta a sociedade e suas relações de conluio e de corrupção nas mais variadas formas.
   Entre os anos de 1836 e 1841, a obra ganha forma sem maiores modificações em seu intento, ou seja, a de avaliar as perspectivas sociais a partir da contemplação de alguns personagens que conduzirão as atitudes mais disparatadas em nível de suas ambições e cinismos. Entretanto, uma reflexão formal começa a ganhar mais propósito, com a participação do narrador e suas interferências em relação à criação da própria obra, assim como comentários com o leitor e sobre este, como também sobre os escritores.
   Feliz o escritor que, passando ao largo das personagens enfadonhas, repugnantes, que nos repelem com o seu triste realismo, aproxima-se das personagens que mostram a elevada dignidade humana; o escritor que, no grande torvelinho das imagens cotidianas, soube acolher apenas as poucas exceções, que não modificou jamais a elevada afinação da sua lira, jamais desceu dos seus altos cumes até os seus irmãos humildes e apagados, e, sem tocar a terra, mergulhou inteiro nas suas imagens tão distantes dela e tão exaltadas. (…) Ninguém o iguala em seu poder – ele é um deus!
Mas diversa é a sorte, outro é o destino do escritor que se atreveu a descortinar tudo aquilo que está diuturnamente diante dos olhos, e o que não enxergam os olhos indiferentes – todo o terrível, espantoso limo de mesquinharia que enlameia a nossa vida, toda a profunda, assustadora frieza dos caracteres fragmentados e vulgares que pululam no nosso tantas vezes amargo e tedioso caminho terrestre; o escritor que, com o vigor do seu cinzel impiedoso, ousou expô-lo em alto e nítido relevo aos olhos do mundo inteiro!                   (Cap. VII; Primeira parte)                           
    
  Nitidamente, Gógol vê-se no segundo tipo de escritor. No período da escrita de Almas mortas, Gógol alterna a produção com leituras de São Francisco de Assis, Dante Alighieri e Homero, como registra o crítico Henry Troyat.
   O título do poema mostra toda sua ambiguidade no desenvolver do enredo, como pode se revelar no vocábulo almas, como servos ou campesinos ou mujiques, assim como espíritos, reforçados pela ideia da palavra mortas, ou seja, todo aquele campesino registrado ainda como vivo no recenseamento e não como morto, embora, na realidade estivesse. Como há demora na atualização dos dados do recenseamento, figuram, estas almas mortas, ainda como vivas, para efeito de registro e de pagamento de impostos. Mas com o desenvolvimento do enredo, a expressão almas mortas ganha semântica diferente, pois há diversos personagens vivos com suas almas mortas pela maneira como atuam socialmente, não tendo senão almas inexistentes ou mortas. Lembremos o final do poema a reflexão de Muzárov a Tchítchicov:

   Pense não nas almas mortas, mas na sua própria alma viva, e siga com Deus por outro caminho! Apresse-se, porque senão, sem mim, estará em apuros.

   O título da primeira edição foi, entretanto, As aventuras de Tchítchicov ou Almas mortas, por imposição do censor petersburguense Nikitienko para atenuar o sentido macabro do título ou, quiçá, subversivo. Esta negociação, resultou em modificações na história do Capitão Kopêikin, Capítulo X, da Primeira parte. Almas mortas é submetido à censura entre janeiro e abril do ano de 1842. A primeira edição é publicada com 2.400 exemplares. 
   Gógol chama Almas mortas de poema, assim catalogado. Uma das leituras possíveis é a subversão que o autor pretende dar ao gênero literário romance (ou novela), descaracterizando, desta forma, esta composição para se valer do gênero poema. Inicialmente, o plano de Almas mortas é ser uma obra tripartida, embora o autor tenha confeccionado apenas duas partes. Aliás, a Segunda parte passa a ser uma caricatura da Primeira parte, pois torna-se em diversos pontos obscura e um tanto enigmática no discurso do autor. A ruptura intencional dá-se, também, pela intenção gogoliana de entender Almas mortas em sua composição épica, portanto, para abranger, no seu enredo como um todo, a Rússia e seus personagens. O próprio Gógol explica:
   En los últimos siglos, ha surgido un tipo de obra narrativa que, por así decirlo, está a medio caminho entre la novela y la épica y cujo héroe, pese a ser una figura aislada e insignificante, resulta no obstante significativo en muchos aspectos para aquel que observa el alma humana. El autor hace que la vida de éste discurra a través de un encadenamiento de aventuras y cambios, con el ánimo de presentar, junto con un cuadro verdadeiro y vivo de todo lo que es significativo en los rasgos y las costumbres de la época que ha elegido, una visión mundana, explorada casi estadísticamente, de las insuficiencias, las malas costumbres, los pecados y todo aquello que él ha percibido en el periodo de tempo seleccionado y que sea digno de atraer la mirada de cualquier contemporáneo atento que busque, en el pasado fabuloso, lecciones para el presente. (...) Aunque muchas de éstas se hallan escritas en prosa, pueden ser consideradas, sin embargo, creaciones poéticas. 

    A estrutura de Almas mortas, assim é vista por Yuri Mann:



1. Capítulo primeiro. 
Tchítchicov chega à cidade NN. e a conhece;

2. Capítulo segundo ao sexto (incluído).
Tchítchicov visita vários proprietários de terras, sendo um de cada vez: (1) Manílov; (2) Koróbotchka; (3) Nozdriov; (4) Sobakêvitch; (5) Pliúchkin;

3. Capítulo sétimo.
Tchítchicov registra suas compras na cidade;

4. Capítulo oitavo.
Baile em casa do governador onde Nozdriov coloca em evidência o negócio de Tchítchicov;

5. Capítulo nono.
As damas da cidade começam a elucubrar sobre Tchítchicov, seu negócio e sua personalidade.

6. Capítulo décimo.
Os altos funcionários da cidade começam a especular sobre Tchítchicov. Morte do fiscal angustiado pela situação imposta por Tchítchicov à cidade.

7. Capítulo décimo primeiro.
É contada a história de Tchítchicov e o sentido da compra das almas mortas. Tchítchicov deixa a cidade.


   Ou, ainda, assim pode-se acompanhar a estrutura da seguinte forma:

a. Chegada de Tchítchicov à cidade de NN.;
b. Tchítchicov conquista funcionários públicos graduados e proprietários de terras;
c. Compra as almas mortas de Manílov, ou seja, este cede as almas em nome da amizade;
d. Compra as almas mortas de Nastácia: esta vende por 15 rublos, pois crê que Tchítchicov a aconselhará ao governo para que este compre produtos de sua aldeola;
e. Tchítchicov vê-se obrigado a visitar Nozdriov. Afirma querer adquirir as almas mortas deste. Este quer jogar damas e apostar as suas almas mortas. Como rouba no jogo, Tchítchicov sai deste. Nozdriov manda dois de seus criados baterem em Tchítchicov, mas este se safa com a chegada de um policial que intima Nozdriov por um caso anterior de agressão;
f. Tchítchicov visita Sobakêvitch. A negociação é árdua entre os dois referente às almas mortas. Propostas de Tchítchicov por alma morta: 80 copeques/1 rublo e meio/2 rublos/2 rublos e meio (valor fechado entre as partes). Propostas de Sobakêvitch: 100 rublos/75 rublos/50 rublos/25 rublos/3 rublos;
g. Tchítchicov visita o sovina Pliúchkin. Este não oferece muita resistência no negócio e vende 200 almas mortas e fugidas por 32 copeques cada;
h. Tchítchicov vai no cartório oficial. Encontra Manílov e Sobakêvitch. Tudo é oficializado e todos, incluindo o presidente, almoçam em casa do chefe de polícia;
i. Festa em casa do governador. Chegada e denúncia do negócio por Nozdriov;
j. Imagem de Tchítchicov é afetada, pela aproximação deste pela filha do governador e pela denúncia de Nozdriov;
k. Chegada na cidade de Koróbotchka. Fofocas entre “uma senhora agradável em todos os sentidos” (Ana Grigórievna) e “uma senhora simplesmente agradável” (Sófia Ivánovna);
l. Boato sobre Tchítchicov: almas mortas + sequestro da filha do governador + falsificador;
m. Chegada do novo governador-geral (neste ponto do enredo, há similitude com o enredo de O inspetor geral);
n. Reunião em casa do chefe de polícia. Deliberações sobre Tchítchicov. O grupo não chega à conclusão alguma;
o. Tchítchicov deixa a cidade. A vida pregressa de Tchítchicov;
p. Tchítchicov torna-se hóspede de Tentiêtnikov;
q. Tchítchicov conhece o general Bétrichtchev e sua filha Úlinka;
r. Tchítchicov erra de fazenda: ao invés da fazenda de Kochkariov, está na fazenda de Piotr Petróvitch Pietukh. Ali, conhece Platónov;
s. Dali, Platonóv e Tchítchicov partem para a fazenda do cunhado de Platon, Costangioglio;
t. Tchítchicov visita o parente biruta do general Bétrichtchev, ou seja, Kochkariov;
u. Tchítchicov vista e compra a fazenda arruinada de Khlobúiev;
v. Prisão de Tchítchicov. Soltura de Tchítchicov. Desaparecimento de Tchítchicov.

   O narrador de Almas mortas é significativo e tem peso importante na condução dos acontecimentos e na formalização do discurso e na construção do poema durante seu processo. Denomina-se, também, de autor da obra, assim como considera-se como um personagem autônomo que intercede e faz a mediação entre a ação que apresenta ao público leitor. Diversas são as vezes que “dialoga” com o leitor. Não satisfeito em narrar os acontecimentos, opina sobre as situações e os personagens. Utiliza digressões, como discute conceitos de criação artística, de literatura, de herói e da construção e do caráter deste, do conceito de história, etc.

   Segundo Lotman, Gógol desejava produzir em Almas mortas o esquema da Divina comédia de Dante Alighieri.

1. Almas mortas
2. Almas fugitivas
3. Almas vivas

   Suas correspondências:

1. Inferno – Primeira parte, em que há predomínio das almas mortas: os proprietários de terras e os funcionários da cidade que aparecem;
2. Purgatório – Segunda parte, com algumas almas fugitivas (Tentiêtnikov; Platon; Khlobúiev), auxiliadas por santos como Costangioglio; Vassíli Platónov, Muzárov e o príncipe;
3. Paraíso – hipotética Terceira parte, em que todos haveriam de ser bons

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Gógol e O nariz (1836)



     A primeira quebra de paradigma ocorre no título deste conto: O nariz. O que esperar de um título assim? Talvez, em um texto convencional, fosse o problema físico e psicológico que um pequeno ou monstruoso nariz viesse a torturar o seu protagonista. Mas o que pensar quando a parte de um todo torna-se um dos protagonistas do conto? Ou, ainda, rivaliza com os outros dois protagonistas do enredo, ou seja, com o barbeiro Ivan Iákovlievitch e, principalmente, com o próprio dono do nariz, Platon Kovalióv? 
     Gógol e sua originalidade para trabalhar com o banal cotidiano e seus absurdos desorienta o tradicional leitor. Este, procurando superar o impacto do título e ainda buscando alguma orientação para “descobrir” a intenção do texto, tem certa trégua no primeiro parágrafo ao ler “No dia 25 de março aconteceu em Petersburgo um fato extraordinariamente estranho.”, pois, ao menos, não fica isolado com a estranheza do título, uma vez que o narrador compactua que algo estranho aconteceu e será relatado. A precisão realista desta frase inicial parece acalmar o ânimo alterado do leitor, pois há data, mês e local administráveis como aceitáveis em qualquer história a ser contada. Mas ao virar a página (dependendo da edição), o estranhamento nocauteia o pobre leitor, pois o barbeiro Ivan Iákovlievitch encontra no pão que irá comer um nariz alheio. Pior: reconhece o nariz como sendo do assessor de colegiatura Kovalióv.
    O que esperar de uma história e de seu autor que rompe com aquilo que estamos acostumados na maioria dos textos literários? Como afirma Vladímir Nabokov, o leitor que lê o nome de Gógol como Gogól certamente terá dificuldade para entender aquele que é considerado o iniciador de uma literatura na Rússia que abrirá caminho para nomes como Dostoiévski, Turguêniev, Tolstói e Tchékhov. Apesar de entendermos a metáfora de Nabokov, de fato, Gógol atrapalha as melhores intenções do ingênuo leitor. Este realismo deformado ou este realismo fantástico, confundindo-se com o grotesco e o humor, tornam o estilo gogoliano incomparável.
     Inicialmente, Gógol, em seu texto original, opta pelo sonho, como resultado de tudo aquilo vivido por Kovalióv, para modificar drasticamente na versão definitiva. Se sonho, embora o leitor pudesse sentir-se traído no final do enredo (vá entender o leitor!), tudo estaria explicado. Mas o que admitir quando o sonho é substituído pela realidade? Aí está a confusão trazida por Gógol, pois aquilo que convencionalmente admitimos é rompido por nova e extravagante convenção. Como afirma o próprio Kovalióv, se fosse ainda um braço, uma perna ou até uma orelha (situações já horríveis!) ainda é possível entender. Mas um nariz? Algo visível? Explícito? Pouco convencional para ser discutido? Ao menos que fosse, então, extirpado em um duelo ou guerra, pondera Kovalióv. A discussão, entretanto, avança, pois duas situações constrangem o dono do nariz: passa a não ser mais dono do objeto, pois este adquire personalidade, função, autonomia e confunde-se facilmente com qualquer outro cidadão, e o que fica na cara de Kovalióv não é, ao menos, uma aceitável cicatriz, mas uma superfície plana que parece “uma panqueca recém-assada”, nas palavras do funcionário do jornal.
     Kovalióv procura, então, tornar seu problema público, contradizendo-se em seu gesto de esconder, com um lenço, o que lhe fica na cara, ou seja, a superfície, pois somente deseja restituir para si o objeto perdido, julgando-se, deste modo, em seu direito. Assim, outros personagens começam a conviver com este estranhamento sem que venham a alterar significativamente aquilo que pensam sobre a realidade que vivem. Tecnicamente, o conto divide-se em partes bem determinativas: primeiro o problema encontra-se literalmente nas mãos do barbeiro Ivan Iákovlievitch, depois na cara do assessor de colegiatura Kovalióv, para, enfim, envolver alguns outros personagens, como um funcionário de jornal, uma mãe com necessidade de casar sua filha e um médico. Por fim, a última parte retoma os dois primeiros personagens do início do conto: o barbeiro e o assessor, como se nada ou pouco tivesse acontecido de irreal.
     A discussão para o leitor continua insolúvel, pois este, certamente, deseja compreender, de fato e de direito, o que significa tudo isso proposto por Gógol. Caso seja a primeira obra lida pelo desamparado leitor, este ainda tem um longo caminho a trilhar na obra gogoliana, passando desde o folclore ucraniano, pelas tantas vezes que as expressões “diabo” e “nariz” aparecem nos textos de Gógol, até chegar nos contos petersburguenses que alteram o cotidiano aceitável proposto e definido pela literatura dita realista. Pela primeira vez na literatura russa um autor aborda, no caso de O nariz, com o duplo de cada um de nós. Este tema será seguido por Fiódor Dostoiévski em algumas de suas obras, tendo como exemplo mais evidente o seu romance O duplo. Neste trabalho, o autor de Crime e castigo dualiza as personalidades do protagonista Yákov Pietróvitch Golyádkin e seu Golyádkin segundo. O duplo foi bastante criticado pelo crítico Bielínski, pois a influência foi vista como cópia de Gógol. O tempo provou o equívoco do grande crítico e seu comentário compreensível para aqueles tempos. 
     A ambição de Kovalióv é evidente dentro do texto O nariz, quando das insinuações amorosas e sexuais, passando pela intenção de se tornar governador e pela pouca boa vontade de casar com a filha de Aleksandra Podtotchina Palaguêia Grigórievna. As ambições deste homem de 37 anos não têm nada de estranhamento nem, tampouco, de fantástico, pois bastante reais no contexto da burocracia e do social russos. Nada melhor do que afetar o ambicioso de frente, embora o trocadilho deva ficar a cargo de Nicolai Gógol. Este é outro ponto explorado pelo autor ucraniano, os trocadilhos. Convenhamos que a expressão “nariz”, em diversas partes do mundo, gera brincadeiras e jogos de palavras engraçadíssimos, assim como a sonoridade da palavra “hemorroidas”. E, nisto, Gógol é incomparável, uma vez que o trocadilho transforma-se em humor e saliência do absurdo que o homem vive a cada momento. Outra expressão bastante usada por gógol é “diabo” em toda a sua obra. Estes dois vocábulos podem, certamente, estar relacionados com o próprio e significativo nariz do autor (veja, por favor, a capa deste material), assim como o místico apreciado desde criança pelas histórias contadas por sua mãe na Ucrânia.
     A intromissão de um nariz que se julga Conselheiro de Estado separa o mundo aceitável do não aceitável, daquele mundo que procuramos dar um sentido para aquele que não queremos crer em um não sentido. A interferência de algo num mundo que julgamos com sentido desorienta todas ações que aprendemos como possíveis entre as relações sociais. Quando há transgressão, há desconforto e luta interior. Nos finais do primeiro e do segundo “capítulos” do conto, Gógol continua a atrapalhar o entendimento do leitor: “Mas aqui o acontecimento fica completamente encoberto por uma névoa e não se sabe absolutamente nada do que se passou depois” e “Depois disso... mas aqui novamente todo o acontecimento se encobre por uma névoa e não se sabe absolutamente o que aconteceu depois.”. Ainda não satisfeito, Gógol conclui sua história da seguinte maneira: “Mas, apesar de tudo, muito embora se possa, sem dúvida, admitir isso, aquilo, e mais aquilo, pode ser até... bem, e onde é que não existem absurdos? – E, não obstante, se refletirmos bem sobre tudo isto, na verdade, há algo. Digam o que disserem, mas tais fatos ocorrem no mundo; é raro, mas ocorrem.”.

     O conto O nariz é publicado pela primeira vez na revista O contemporâneo, de Púchkin, no ano de 1836, depois de ter sido recusado por ser “sujo” pela redação de O observador moscovita.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Tio Vânia - Antón P. Tchékhov


Tio Vânia  (Дядя Ваня)

Antón Pávlovitch Tchékhov
А н т о́ н    П а́ в л о в и ч    Ч е́ х о в



  Antón Pávilovitch Tchékhov escreve Tio Vânia em 1896, mas a origem da peça dá-se com O espírito dos bosques (1889), apresentado em dezembro no Teatro Abrámov. A crítica não recebe bem a peça e afirma não ser teatro e também nada significar. Anos depois, Tchékhov retoma este texto e reescreve ele por completo. Assim, surge Tio Vânia. Sua publicação ocorre em 1897; suas representações, em diversos teatros. A estreia dá-se no Teatro de Arte de Moscou em 26 de outubro de 1899, com encenação de Konstantin Sierguêievitch Stanislavski e Vladímir Niemiróvitch-Dântchenko e cenários de V. Simov. Olga Knipper, futura esposa de Tchékhov, interpreta Ielena; Liliana, Sonia; Vichnevski, tio Vânia; Stanislavski, Astrov. Os contrastes desta peça evidenciam-se na tensão dos conflitos que se arrastam na perspectiva de uma morosidade impressionante. A passividade de Vânia parece aniquilada com a revolta que este passa a ter frente a sua própria vida, embora nada faça de concreto para sair do mesmo lugar. Sua preocupação para modificar seu modo de viver esbarra nele mesmo, pois nada muda em sua vida. A mudança não muda; sua vida passa enlutada pelo trabalho e por uma pausa ao receber, na propriedade rural, um casal citadino. Neste ponto, mais um contraste reiterado nas peças de Tchékhov: a cidade que “invade” com seus valores o modo de vida rural. Veja que o próprio subtítulo (“Cenas da vida rural”) antecipa esta discussão tchekhoviana. Assim, da vida tranquila levada por tio Vânia e sua família, surge a mudança de conceitos e de hábitos com a chegada de Serebriakov e sua jovem e linda esposa Ielena Andréievna. A beleza e seus efeitos arrematadores e destruidores são a tônica da peça, pois a “figura episódica” de Ielena balança personagens: tio Vânia; o próprio marido Serebriakov; o médico Astrov e, finalmente, Sonia e sua feiura. Coincidentemente, o belo da paisagem rural da Rússia também desaparece (assim como Ielena e o marido vão embora da casa rural). Esta concretização dá-se nos mapas ilustrados pelo médico Astrov, quando pinta a comarca há cinquenta e vinte e cinco anos até chegar no tempo presente onde se encontra. Florestas e animais vão minguando, mostra o médico que constrói bosques e não come carne. A transformação de Vânia é, no decorrer da peça, teórica e consciente de seu fracasso da existência vivida, assim como, na prática, tudo volta à estaca zero com a partida da beleza de Ielena Andréievna e a ciência de Serebriakov. A beleza, em Tio Vânia, é o retrato do medíocre e real dos personagens que, para fugir desta realidade, procuram a beleza para mascarar suas vidas insignificantes. A estética da perfeição parece ser a metáfora idealizada por Tchékhov para afirmar que o preço que se paga pelo sucesso da aparência é a capacidade de alguns homens perceberem que algo ficou para trás em suas vidas e que, realisticamente, já não é mais possível recuperar aquilo que foi desprestigiado pela própria concepção atribuída à beleza. 

  Nos versos de “Madrigal melancólico”, em O ritmo dissoluto (1924), de Manuel Bandeira, estes versos caem muito bem como exemplificação para Tio Vânia

O que eu adoro em ti, 
Não é a tua beleza. 
A beleza, é em nós que ela existe. 
A beleza é um conceito. 
E a beleza é triste. 
Não é triste em si, 
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.  

  Se a beleza é sinônimo de vitória na figura de Ielena Andréievna, também pode significar derrota para Ielena e todos aqueles que veneram esta figura maravilhosa e atraente. 


  O enredo de Tio Vânia passa-se no ano de 1896 e tem como subtítulo “Cenas da vida rural”. Cenas em quatro atos em movimento cíclico, se pensarmos que o trabalho executado na propriedade por Sonia e por Vânia terá continuidade no final do Quarto Ato. A vida apresentada por Tchékhov tem pouca ou nenhuma alteração, e a passividade de tio Vânia e de sua sobrinha Sonia ratificam esse imbróglio que é o tédio e o arrastar de uma existência sem sentido, sem felicidade e com a consciência de que a resignação dos golpes dados pelo destino é algo inexorável. Se haverá uma nova vida? Isso ficará a cargo da transcendência da própria morte ou das gerações futuras que, certamente, não reconhecerão esforço algum nos homens do passado. Tchékhov constrói em suas peças atritos que vão crescendo até se tornarem insuportáveis. 

  No Primeiro Ato de Tio Vânia, há atritos iniciais entre Voinitskii e o casal Serebriakov e Ielena, assim como críticas da babá Marina ao casal (no que se refere aos horários da casa) e Ielena e Voinitskii, pois este, no final do ato, declara-se à jovem esposa do professor aposentado. Ainda neste Primeiro Ato, o casal Ielena e Serebriakov faz com que a “vida saiu dos eixos”, pois há alteração no cotidiano da casa rural: Astrov, o médico, trabalha muito e, no enredo, pouco trabalha, ficando mais a perambular pelos cômodos e a pensar em Ielena; Voinitskii, outrora trabalhador com Sonia na fazenda, apenas bebe, come e dorme, além da declaração amorosa por Ielena; Sonia, ainda trabalha, mas esgota-se e fica, como diz, a escutar e conversar com Ielena. Esta é admirada por todos e julga-se tediosa e cansativa, assim como o marido não suporta mais viver naquela casa rural. A beleza de Ielena é seu viver (como é dito no Segundo Ato) e seu contágio é explícito em homens como Vânia e Astrov. Por sua vez, Ielena tem inclinação por Astrov, embora nada faça por fidelidade ao marido. Este julga-se velho e doente e afirma que deixará, em breve, a todos, o que não se confirma até o final da peça, quando parte da fazenda com a esposa para morar em Kharkov. Afinal, para Ielena, “as florestas são monótonas”. Tio Vânia e Sonia formam o par da infelicidade e do trabalho para os outros. Desta maneira, o título justifica-se, pois quem é lembrado como tio é porque tem sobrinho ou sobrinha, além de não ser pai, etc., ou seja, Vânia nada construiu fora o fato de ser único, ou seja, tio. O título é propositadamente estranho, pois a palavra “tio” antecipa a dura relação de Sonia e Vânia com seus destinos similares: tudo volta a ser o que foi, no cíclico de uma vida monótona e sem esperanças. Se no passado a vida de trabalho árduo para manter a fazenda e enviar dinheiro para a ciência de Serebriakov é festejada, no tempo presente a revolta de Vânia dá-se exatamente na figura desprezada que tem do professor. A revolta de Vânia está na sua vida liquidada para um homem que enganou a todos com sua falsa intelectualidade. Agora, só resta a Vânia revoltar-se e gritar em família o que fizeram com ele. Mas o ciclo e a inoperância são mais fortes, e no final da peça tudo volta a ser o que sempre foi, sem qualquer tentativa de mudança para tio e sobrinha. Aliás, esta aconselha o tio a trabalhar e a entregar-se, de vez, ao destino que os mantêm em seres infelizes e desesperançosos. Se esperança existe, é em outro nível metafísico, não mais no plano terreno e material. A sucessiva relação de fracassos e inocuidade entre os personagens é marca definitiva nas peças tchekhovianas: um professor adoentado e velho; a beleza de uma jovem esposa; uma matriarca que apenas repreende o filho de 47 anos em defesa do genro; um proprietário falido visto como parasita e serviçal; uma babá que traz boas lembranças a um médico; um médico que treme ao lembrar da morte de um paciente; uma sobrinha feia que não será amada e o tédio que a todos inferniza e que os mantêm nulos e completamente vazios em suas atitudes. 

  No Segundo Ato, as rivalidades continuam, seja com o professor não acreditando na competência do médico Astrov, tio Vânia e Astrov insatisfeitos com suas vidas, tornando-se uns “ursos rabugentes”. Astrov empolga-se com a beleza das mulheres, mas não acredita em relação íntima com ninguém. Ielena, idolatrada por Astrov e por Vânia, é a antítese de Sonia. Serebriakov, a antítese de Vânia. Este julga sua vida desperdiçada, sem passado e com um presente idiota. Astrov ama a vida, mas não aguenta a “vidinha burguesa e provinciana” que leva. Para ele, é difícil conviver com os intelectuais e, com os camponeses, impossível, pois são atrasados e sujos. 

  A peça começa a ganhar tensão principalmente no Terceiro Ato, quando da reunião proposta por Serebriakov. Este tem como objetivo vender a propriedade rural, para desespero e desconforto de tio Vânia. Os atritos continuam em paralelos: Astrov agarra pela cintura Ielena (esta encosta sua cabeça no peito dele para, em seguida, safar-se. No Quarto Ato, ao despedir-se de Astrov, Ielena abraça-o impetuosamente.); Sonia e Vânia são infelizes; Ielena é chamada de preguiçosa por Vânia; Sonia pergunta se é feia; Sonia chama Ielena de feiticeira; Ielena indaga como aguentarão todo um inverno na fazenda; Ielena tem vontade de fugir mas falta-lhe coragem; Ielena apaixonou-se um pouco por Astrov; e, finalmente, a revolta e a má pontaria de Vânia, pois atira com uma pistola em Serebriakov e erra por duas vezes. 

  No último e Quarto Ato, os conflitos são ajustados pela paz e harmonia, justificando toda e qualquer explosão por parte de alguns personagens como mera interferência sem resultado eficiente e, portanto, a manutenção da vida tediosa, arrastada e inócua. O casal desarmônico parte, assustado, para Kharkov; os horários da casa (chá, almoço e janta) voltam a ser respeitados; Vânia e Astrov continuam com suas desesperanças; a possibilidade de suicídio de Vânia deixa de existir quando este entrega a ampola de morfina que subtraiu da maleta do médico; o conselho de Sonia (a sobrinha) para Vânia (o tio) da necessidade de trabalhar para conseguir suportar tudo. Para Astrov, na comarca só ele e Vânia eram inteligentes, mas foram “tragados pelo pântano da vida pequeno-burguesa que nós desprezamos; com seus valores putrefatos ela envenenou nosso sangue e nos tornamos tão patifes quanto os outros.”. 
  Assim os atos são apresentados em nível cronológico: Primeiro Ato: cerca de 15h; Segundo Ato: 24h20min; Terceiro Ato: dia; setembro; Quarto Ato: noite; outubro. Tio Vânia é peça escrita depois de A gaivota (1896) e antes de As três irmãs (1900) e O jardim das cerejeiras (1903).


Personagens de Tio Vânia

1. Aleksander Vladimirovitch Serebriakov – professor universitário aposentado; filho de um escrivão; ex-seminarista; genro de um senador; catedrático; há 25 anos escreve e palestra sobre arte sem entender absolutamente nada, segundo tio Vânia; “mastiga ideias alheias sobre realismo, naturalismo e outras baboseiras”; vaidoso e um semideus pelo seu caminhar, segundo Voinitskii; casado com a jovem e bela Ielena Andréievna;
2. Besouro – cachorro do guarda matraqueador;
3. Criado 
4. Grigori Ilitch – irmão de Teleguin; apenas citado na peça;
5. Iefim – guarda matraqueador;
6. Ielena Andréievna (Lenotchka; Hélène) – mulher de Aleksander Vladimirovitch Serebriakov, 27 anos; belíssima e inteligente; detesta o marido, mas é fiel ao professor; nasceu em Petersburgo; estudou no conservatório; sentiu-se um pouco apaixonada por Astrov; leva cantada de Vânia;
7. Ilia Ilitch Teleguin – fazendeiro arruinado; sua esposa foge com o amante logo após o casamento; ele entregou sua fortuna para a educação dos filhos dela com o amante, pois este morreu; sua beleza murchou; o que restou para ela?, indaga Teleguin; Teleguin sempre a amou; marcas de varíola no rosto; apelido: Bexiga; padrinho de Sonia;
8. Ivan Petrovitch Voinitskii (tio Vânia; Jean) – filho de Maria Vasilievna Voinitskaia; 47 anos; segundo ele, perdeu a vida por não vê-la; odeia Aleksander Serebriakov; procura matar Serebriakov, mas erra os dois tiros que dá no professor; no fim, ambos se perdoam; 
9. Konstantin Trofimovitch Lakedemonov – irmão da esposa do irmão de Teleguin; magistrado; apenas citado na peça;
10. Maria Vasilievna Voinitskaia – viúva de um conselheiro de Estado; mãe da primeira mulher de Aleksander Serebriakov;
11. Marina – velha babá; “velha simples e gasta”; de movimentos lentos;
12. Mikhail Lvovitch Astrov – médico; segundo ele, a vida é “enfadonha, idiota e suja”; está cercado de excêntricos e estranhos; julga-se também excêntrico, mas não tonto; não ama ninguém; deseja bem só a velha babá; se diz um dos personagens de Ostrovski, com “longos bigodes e ideias curtas”; segundo ele, as florestas dão beleza à terra, ensinam o que é belo e elevam o espírito; bonito; interessante; atraente; apaixonado por Ielena Andréievna; não ama Sonia;
13. Moleca – cachorro do guarda matraqueador;
14. Pavel Aleksêievitch – apenas citado; escreve artigos e envia estes para Maria Vasilievna;
15. Sofia Aleksandrovna (Sonia; Sonietcka; Sophie) – filha do primeiro casamento de Serebriakov; feia; boa; pura; inteligente; apaixonada pelo médico Astrov; fica só;
16. Vera Petrovna – mãe de Sonia; já falecida; bela e meiga.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O jardim das cerejeiras - Antón P. Tchékhov

O jardim das cerejeiras 
Вишнëвый сад
(Vishnioviy sad)

Antón Pávlovitch Tchékhov
А н т о́ н    П а́ в л о в и ч    Ч е́ х о в

  Antón Pávilovitch Tchékhov produz sua última peça de teatro na virada do ano de 1903 para 1904, ano este também de sua morte. O jardim das cerejeiras desconstrói, mais uma vez no teatro tchékhoviano, as relações entre os personagens, sendo que, neste enredo, a dificuldade de comunicação entre os protagonistas é fortalecida a partir de nítidas diferenças, tanto em nível sociocultural, como também do burlesco à dramática situação dos proprietários de um jardim de cerejeiras hipotecado. A pantomima está formada pelo desconforto das situações construídas pelo passado e pelo presente dos protagonistas, assim como pela inadaptação que estes estão a viver no tempo da ação e no espaço de suas dificuldades, em especial no que se refere à família de Liuba Andrêievna Raniévskaia e de seu irmão Leonid Andreiêvitch Gaiév.

  Como deixou em depoimento, o poeta Vladímir Maiakóvski refere-se a Antón Tchékhov como o “mestre da palavra”. Deste modo, e a partir do jogo dos vocábulos, o surgimento de uma possibilidade de nuances transitam entre o farsante, o arrogante, o insistente, o inconsequente, o dramático, o pensante, o oportunista, o vitimado, enfim, nas personalidades que, juntas, se tornam desconexas em seus diálogos, comentários, atritos e intenções.

  Pode-se selecionar três tipos de personagens que ordenam a estrutura social a partir do dinheiro ou da iminente falta deste. Liuba Andrêievna e seu irmão Gaiév sustentam opiniões e ordens por disposição e suposição hierárquica do passado, pois do presente estão liquidados financeiramente. A tiracolo, surgem a filha Ânia, de 17 anos, e a filha adotiva Vária, de 24 anos, ambas de Liuba. Ânia vive na esperança de uma vida melhor ao lado de Trofímov, o “eterno estudante” e postulante a filósofo, enquanto que o trabalho de organização da casa do cerejal fica a cargo da adotiva Vária, mais governanta do que a titulada governanta Carlota Ivanóvna, embora esta mais mágica do que governanta.

  Num segundo grupo social, surgem os empreendedores financistas e um pensador de uma nova vida para a humanidade: representando os primeiros, o negociante Iermolai Alexêievitch Lopakhine e Bóris Borissovitch Simionov, o Pichtchik, proprietário de terras; o segundo é representado pelo estudante Piótr Serguêievitch Trofímov, o Pétia. Entretanto, a diferença entre Lopakhine e Pichtchik está na ordem do dinheiro, pois Iermolai é rico e compra a propriedade de Liuba em leilão, enquanto que Bóris tem a esperança que algo acontecerá para mudar a sua vida, no caso, o ocorrido acontece com a exploração que este permite a ingleses em sua fazenda. Já o “eterno estudante” filosofa para ter uma vida acima dos conceitos mundanos e na expectativa de ficar ao lado de Ânia para viver esta vida teorizada.

  Por fim, os sequazes Carlota, Epikodov, Duniacha, Firs, Iacha, criados, visitantes, chefe da estação e funcionário dos Correios. Ainda, um cão. Para cada um destes, excetuando o cão, a possibilidade de um entendimento da vida prática ou da procura de um preenchimento do sentido de viver, embora sem solução imediata e aparente em suas ações.

  Antón Tchékhov inventa, também, um vocábulo para O jardim das cerejeiras: niedotiópa. Na tradução de Millôr Fernandes (L&PM Editores), aparece como os “vale-nada”: Liuba; Gaiév; Lopakhine; Trofímov; Iacha e o vagabundo alcoolizado do Segundo Ato. Firs, no final da peça, conceitua-se também como um “vale-nada”; no início da peça, chama Duniacha de “vale-nada”. Em outras traduções, este “vale-nada” é chamado de “bando de inúteis” ou “lentos”. De qualquer modo, independente da tradução, os “vale-nada” equivalem à inoperância ou à inocuidade do personagem frente àquilo que desempenha, o desconforto de uma personalidade que pouco ou nada contribui numa sociedade cinzenta e sem sentido, obliterada pela permanência de inaptidões e atrapalhações que se alteram como dispositivos apáticos na engrenagem que gira em torno de uma propriedade falida e desejada por Lopakhine.
  O modo de pensar e a funcionalidade dos personagens que executam suas ideias e ações afinam-se conforme a necessidade daqueles justificarem suas atitudes. Liuba Andrêievna Ramiévskaia explicita suas culpas em vários momentos da peça, variando desde a morte do filho Gricha por afogamento, passando pelos gastos excessivos em Paris, em restaurante na Rússia para quem pouco ou nada soma em nível pecuniário, criando as reminiscências de suas duas uniões sentimentais fracassadas até, finalmente, chegar ao apego doentio ao seu passado que reforça sua irracionalidade ao venerar os objetos da casa (como beijar o armário e chamar uma mesinha de querida). Liuba acredita que a vida “de vocês” é “totalmente cinzenta” e o orgulho algo “místico e importante”. Ao viver e reviver o passado, perde alguns critérios do presente, como a distribuição do pouco que tem de dinheiro para, então, aceitar, de fato, a perda da casa e de seu passado. Ânia, a filha de Liuba, para compensar o dissabor sofrido pela mãe, promete plantar um outro jardim mais bonito do que o que acabam de perder. Mesmo assim, a acusação da vida cinzenta aos outros encaixa-se perfeitamente ao modo de viver de Liuba.

  O irmão de Liuba, Leonid Andreiêvitch Gaiév, segue o prumo da família e da irmã, com sobressaltos sentimentais, irracionalidades com objetos e invencionices neurastênicas para se iludir na solução do problema da hipoteca da propriedade. Gaiév chega a sugerir comemoração aos 100 anos da estante da casa, com a descoberta de uma gravação na gaveta da estante datada de 1803. Abraça e acaricia o objeto, chamando-o de “Querida e honrada estante!”. A comédia destes lances no decorrer da peça é intraduzível psicologicamente, tanto é o absurdo impetrado pelo dramaturgo. O hilário de Gaiév sustenta também seu discurso inconfiável, quando, por exemplo, garante por sua honra que a propriedade não será vendida, assim como idealiza possível empréstimo da tia-avó e de um certo general para a solução do cerejal. Seu pensamento lacônico, entretanto, aparece quando afirma que no final das contas todos morremos. No fim, com emprego em banco, acha-se financista, embora, talvez, pela preguiça, segundo Lopakhine, não se sustente na função por muito tempo.

  Ânia, filha de 17 anos de Liuba, vive na ilusão de manter viva em sua mãe a permanência do passado glorioso, embora, para ela mesma, a possibilidade de união com  Trofímov concretize uma nova vida, acima da banalidade vivida por ela mesma e por aqueles que a rodeiam. A abertura de leitura no final da peça de que uma nova vida virá é a marca rompedora da vida cinzenta e inócua vivida pelos protagonistas, apesar desta nova vida que está nos planos do casal não mostre as evidências concretas de como será enfrentado o cotidiano vindouro. De qualquer modo, a possibilidade de mudança é um alento para quem, como Ânia e Trofímov, deseja acabar com a autoglorificação. Para isso é necessário, defende o “eterno estudante”, muito trabalho e não ficar apenas no discurso, como fazem os intelectuais que terminam por se enganarem e aos outros também. Para o jovem estudante, os intelectuais russos tratam os criados como seres inferiores e o mujiques como animais selvagens. Trofímov mostra para Ânia que o cerejal deles é a Rússia inteira. A descoberta e o entusiasmo de Trofímov não é conclusivo na peça, pois a perspectiva do estudante é continuar estudando em Moscou...

  Vária, a filha adotiva de 24 anos, tem como esperança o casamento com o rico e matuto Iermolai Alexêievitch. Este escamoteia, no entanto, toda e qualquer possibilidade de realização amorosa com a trabalhadora e gerenciadora moça da propriedade do cerejal. No final da peça, a esperança é amordaçada mais uma vez, mesmo com a promessa de Lopakhine e a felicidade interesseira de Liuba. É mais fácil a moça conseguir 100 rublos e terminar seus dias no convento. Segundo Ânia e Trofímov, Vária procura obstruir o relacionamento do estudante com a filha de Liuba. Vária se romantiza como personagem vitimado pelo amor e pela dramaticidade dos suspiros e das abafadas lágrimas.

  Bóris Borissovitch Simionov, o Pichtchik, procura algum dinheiro para pagamento de suas dívidas mesmo sendo proprietário de terras. Tem a crença que as coisas mudarão, bastando paciência e tempo. De fato, consegue dinheiro com ingleses que explorarão as terras de sua fazenda por duas décadas. Carlota tem somente seus truques e mágicas para distrair sua vida patética e arruinada, pois a governanta confessa que não tem ninguém na vida para conversar e demonstra que seu passado não é diferente do que está por vir em sua vida, pois a obscuridade dos extremos de sua existência não se mostrará num passe de mágica, apesar do trocadilho. Afinal, o que ela é e o que faz é, para ela mesma, um mistério! O guarda livros Epikodov é personagem sofrível em suas atribuições, bastando tentar compreendê-lo no que diz respeito aos livros difíceis que já leu: não encontrou nenhuma explicação para viver ou para não viver, atribuindo ao inexorável destino o seu caminho marcado, pois, afinal, o destino para ele é um furacão a brincar com o barco que é a sua vida. Sabedor da incompreensão que o domina, adota e o abate, traz consigo sempre um revólver. O jovem criado oportunista tem nome e endereço: Iacha e a vontade de ser eterno criado de Liuba preferencialmente em Paris. Duniacha, a criada metida à senhora com esquecimento de como vivem os camponeses e possibilidades de desmaios que se encarrega de avisar, é apaixonada por Iacha, assim como pouco sabe sobre o seu próprio passado. No presente, vive assustadiça como uma dama!

  O pobre do Firs merece parágrafo em separado. O velho octogenário e tanto fecha a peça com a tristeza de quem fica para arrumar o teatro depois da saída de todos da peça. Literalmente trancado e esquecido na casa que será demolida, Firs tem a consciência do quanto vale e do quanto a vida passou para ele. O que fazer? Ficar imóvel, como um utensílio centenário que não compreendeu nem tampouco a abolição como a demolição de sua vida em meio aos decadentes patrões.

  Por fim, o triunfador pessoal de sua história de vida estúpida não tão diferente como a vida estúpida dos demais personagens. Para Trofímov, Lopakhine “devora tudo o que encontra pela frente, convertendo tudo em excrementos.”. Como é rico e como será milionário algum dia, Lopakhine é um mal social necessário, pois útil para definir o progresso e os investimentos capitais na Rússia dos séculos XIX e XX. O empreendedorismo de Lopakhine é a medida exata entre o aconselhamento aos proprietários falidos, às novas ideias e, por fim, o abocanhamento oportuno para provar a si mesmo e para os outros que o matuto endinheirado pode colocar com honradez os pés na casa que escravizou seu pai e seu avô naquele cerejal. A vitória pessoal de Lopakhine é a vibração de quem tem a estratégia e o dinheiro para comandar o futuro com olhos no passado socialmente humilhado. A cena de fechamento da casa por ele, para preservar os bens que ficarão em sua partida até Karkov, é metaforicamente a ironia da prisão e morte de Firs, homem que preferia o passado sem abolição para que a vida fosse mais clara em suas definições sociais entre amos e servos. Lopakhine é o ágil negociante e a ele é dado o papel principal de conduzir a dramaticidade das ações da família do jardim das cerejeiras. Estranhamente, sai dele o comentário de que há poucos honestos e decentes no mundo, mas apesar da contradição da parte de quem fala isto, aí talvez esteja mesmo a chave do enigma proposto por Antón Tchékhov: não sendo um intelectual, Lopakhine talvez não engana a si mesmo nem aos outros com seu discurso.


  O jardim das cerejeiras faz o leitor oscilar em sua leitura, ora sugerindo através da comicidade o surgimento de uma interpretação jocosa pela atitude descomprometida com o real drama de seus protagonistas (bengaladas, comentários desconexos, bilhar imaginário, balidos, etc.), ora pelos elementos dramáticos da vida acinzentada e estúpida que algumas personalidades insistem levar até as últimas consequências como se nada ou pouco lhe dissessem respeito. 

  O bufão (Gaiév), assim como a moça com seu drama (Vária), como o jovem esperançoso em mudar de vida e de conceitos (Trofímov), assim como aqueles que não conseguem se modificar por causa da inércia de suas lentidões e de suas obsessivas crenças (Gaiév e Liuba), contribuem para um desfecho sem solução, típico dos textos de Antón Pávilovitch Tchékhov. 

  Se o contista e o dramaturgo não buscaram estéticas definidas para suas obras, o mesmo não pode se dizer plenamente da obscuridade simbolista em O jardim das cerejeiras. Não que a peça se enquadre no Simbolismo, mas a nitidez do indecifrável nas intenções dos personagens – e de como e o porquê atravessam caminhos captados por suas incapacidades de formular um roteiro para suas vidas despedaçadas – sugere que há algo mais notável do que a imprecisão do pensamento humano, pois da comédia à farsa, do drama ao decadente espaço entre a mentira verdadeira e a verdade mentirosa há o atestado do engessamento de um resmungo de Firs, do choromingar e das bengaladas de Vânia, da alegria de Ânia, do estrionismo de Gaiév com seus imaginários lances de bilhar, da escandalosa ingenuidade de Liuba e, finalmente, de um “Méééééé!” repleto de idiotia do empreendedor dos futuros lotes veranistas em terras das cerejeiras.


Alguns Personagens de O jardim das cerejeiras
1. Ânia (Anitchka) – filha de Raniévskaia; tem 17 anos; ama Trofímov;
2. Carlota Ivanóvna – governanta; faz truques com cartas; criada por uma senhora alemã; não conheceu seus pais; no fim da peça, afirma precisar de emprego;
3. Duniacha – criada; sensível demais; ama Iacha; filha de Fiodor Kosoiedov;
4. Epikodov (Sêmion Panteleiêvitch) – apelido: “Vinte e duas desgraças”; rapaz sério; pede Duniacha em casamento; guarda livros; 
5. Firs – criado; tem 87 anos; morre no final da peça; fica dentro da casa, pois esquecem dele;
6. Gaiév (Leonid Andreiêvitch) – irmão de Liuba; 51 anos; preguiçoso; fala demais; consegue, no fim da peça, emprego em banco com vencimentos de seis mil rublos ao ano; julga-se, assim, um financista;
7. Iacha – criado jovem; seu desejo é morar em Paris; menospreza sua mãe; petulante e folgado;
8. Liuba (Madame Andrêievna Raniévskaia) – criatura esplêndida; simples; tem boa-vontade; proprietária do cerejal; esbanja dinheiro sem pensar no dia seguinte; apega-se à casa de seus pais e ama toda sua propriedade; mesmo mal financeiramente, não mede com exatidão suas economias; em Paris, tem relacionamento com homem que lhe passa a perna financeiramente; ela ama este homem, fruto de um segundo relacionamento, já que seu primeiro marido era um advogado e beberrão;
9. Lopakhine (Iermolai Alexêievitch) – seu pai (um mujique) possuiu loja na aldeia; nasceu campônio; negociante; seu pai foi servo do pai e do avô de Liuba; aquele que compra o jardim de cerejeiras; tem como ideia o loteamento a veranistas;
10. Pichtchik (Bóris Borissovitch Simionov) – proprietário de terras; paga seus credores graças à permissão que dá a ingleses para explorarem argila branca em sua fazenda;
11. Trofímov (Piótr Serguêievitch; Pétia) – “estudante eterno”; ama Ânia e, esta, ele; considera-se homem livre, forte e orgulhoso; crê em uma verdade e felicidade maiores;
12. Vária – filha adotiva de Raniévskaia; tem 24 anos; controla a casa e, em especial, possível aproximação entre Ânia e Trofímov;


A gaivota - Antón P. Tchékhov

A gaivota
(Чайка / Tchaika)

Antón Pávilovitch Tchékhov
А н т о́н    П а́в л о в и ч    Ч е́х о в


 


  A gaivota é considerado o primeiro triunfo do Teatro de Arte de Moscou. No dia 29 de dezembro de 1898, sua apresentação é reconhecida como sucesso pelo público. Este aplaude com entusiasmo. Dois anos antes, esta mesma peça fracassa em São Petersburgo. É, então, o dia 20 de outubro, e a incompreensão do que está ocorrendo no palco é significativa, tanto em nível do diretor e dos atores (estes não estão à vontade em seus papéis), quanto do público e da crítica. Na ocasião, os críticos não poupam palavras fortes contra o intuito tchékhoviano.

  Antón Tchékhov fica decepcionado com o ocorrido e com os comentários sobre A gaivota e decide não mais escrever obras de teatro nem tampouco deixar as peças que já escreveu serem representadas. Mas Tchékhov tem um amigo, dos tempos de Ialta, que procura demovê-lo desta ideia. Vladímir Niemiróvitch-Dântchenko, autor dramático e diretor junto com o ator e diretor Konstantin Stanislávski, escreve em duas oportunidades para Tchékhov, mas somente na segunda tentativa é que convence o dramaturgo a deixá-lo representar A gaivota. Deste modo, Niemiróvitch-Dântchenko encarrega seu colaborador, Stanislávski, a montar A gaivota, embora este tema por um novo fracasso de Tchékhov no palco. Neste período, a tuberculose de Antón avança.

  Ocorre, então, o primeiro êxito teatral do autor de Enfermaria nº 6, escritor já conhecido na Rússia por seu contos e por algumas novelas, mesclados pelo humorismo e pelo sentimental. Aos poucos, une-se o grande contista e o grande dramaturgo na literatura russa, pois a análise e a crítica tchékhovianas mostram as condições de vida do homem e o que rodeia estes em suas obrigações, suas aflições e buscas de suas liberdades.

  A gaivota é texto que prioriza a banalidade da vida dos personagens. A dimensão dada por cada um daqueles que convivem com a família de Sórin e de Arkádina não chega a ultrapassar o medíocre que tece todo um colapso de desentendimentos, seja pelas questões que envolvem o profissionalismo do teatro, seja ele ultrapassado ou que busque novas formas de apresentação, seja pelos íntimos envolvimentos entre protagonistas que, entre sussurros e caprichos, vivem toda a sorte de humilhação (Arkádina por Trigórin), de idealização (Nina por Trigórin), de indignação (Trepliov por Macha), de oferta (Polina por Dorn), de sujeição (Trepliov por Nina) ou, até, de desinteresse a este mesmo sentimento (Macha por Miedviediênko).

  A ciranda do amor alterna-se conforme a necessidade do egoísmo de cada envolvido, diagnosticando o vazio de um amor entre pessoas que não se correspondem em perspectivas similares. Afinal, se toda peça de teatro deve ter o sentimento do amor, conforme aponta a personagem Nina, Antón Tchékhov não deixa por menos o tratamento deste tema e de suas consequências. Impactante é o amar sem ser amado, noticiando a engrenagem alimentada pela prostração deste sentimento, assim como a ruína quando, eventualmente, concretiza-se (Nina e Trigórin e Macha e Miedviediênko). A incapacidade de ser amado não só diminui a integridade psicológica do submisso, como desmorona, neste, a capacidade de reflexão sobre o que pensam sobre ele mesmo.

  A discussão sobre as perspectivas do que vem a ser o teatro em sua construção e contemporaneidade invade as opiniões dos protagonistas e de seus ataques ora para a defesa de um teatro passadista, ora para um teatro lírico, simbólico e com pretensões de nova arte dramatúrgica. Os personagens, ao longo dos atos, discutem (ou tentam) seus pontos de vistas de forma agressiva, intransigente ou pacífica. O ardor ou a ausência deste nas discussões torna o humor e as expectativas dos envolvidos como um grande rolo compressor descontrolado passando à revelia por uma rua deserta, pois basicamente ninguém escuta (de verdade) o outro em sua opinião.

  A simbologia da gaivota no decorrer da peça é inevitável, pois surge, inicialmente, de uma caça real realizada por Tchékhov e seu amigo e pintor Levitan. Este, após abater uma ave, ferida na asa, pede para que Tchékhov mate a galinhola. O contista diz não conseguir, mas diante da insistência do amigo, termina por liquidar o animal. Esta olhava Tchékhov espantada, lembra o escritor. Assim, mais tarde, dois imbecis, segundo Tchékhov, jantavam, enquanto no mundo havia uma fascinante criatura a menos.

  A gaivota vem a ser a motivadora metáfora três anos depois na peça A gaivota. Nina Zariêtchnaia, Konstantin Trepliov e Boris Trigórin envolvem-se num triângulo amoroso e dramático costurados, também, pela simbologia da gaivota: inicialmente, Nina diz-se uma gaivota, depois, Trepliov deposita aos pés de Nina uma gaivota morta para, em seguida, afirmar que do mesmo modo se matará. Mais tarde, Nina, mais de uma vez, associa-se e assina cartas como A Gaivota; no final do enredo, Iliá entrega a Trigórin a gaivota morta (por Trepliov) empalhada (segundo Iliá, o escritor solicitara a taxidermia do animal) e, finalmente, Trigórin anota para um futuro conto seu o seguinte:

     Estou fazendo anotações... É que me veio uma ideia... (Guarda o caderninho) Uma ideia para um conto curto: uma jovem vive na beira de um lago, desde a infância, como a senhorita; ama o lago, como uma gaivota, e é feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece um homem, ele a avista e, por pura falta do que fazer, ele a destrói, assim como aconteceu a essa gaivota. (em tradução de Rubens Figueiredo; Editora Cosac & Naify).

  Curiosamente, um possível conto citado em sua origem dentro de uma peça de teatro que se torna realidade entre os personagens Nina e Trigórin, ou seja, a realidade próxima demais da arte literária.

  Aspecto oportuno, também na peça, é a disposição de cada um dos personagens frente à expectativa de viver suas vidas sem esperanças, sem conseguir mudá-las, ou simplesmente, compreendê-las como algo inexorável numa comédia (como Tchékhov denomina a peça) de vidas frustradas.


Antón Tchékhov lendo A gaivota para os atores e
diretores do Teatro de Arte de Moscou, em 1898.


Alguns personagens de A gaivota
1. Boris Trigórin – escritor famoso e inteligente; farto da vida; cerca de 40 anos; escreve contos; envolvimento e rompimento com Nina; íntimo de Arkádina;
2. Ievguêni Dorn – médico; 55 anos; saciado da vida; teve caso com Polina; quem vê o corpo de Trepliov depois do suicídio;
3. Iliá Chamraiev – tenente reformado e administrador a serviço de Sórin; marido de Polina; pai de Macha;
4. Irina Arkádina – atriz; mãe de Trepliov; talento inegável; interpretou A dama das camélias e O enlevo da vida; 43 anos; teme a velhice e a morte; íntima de Trigórin; entra em rota de colisão com o filho por causa do teatro do passado e do presente;
5. Konstantin Trepliov – filho de Irina; 25 anos; a peça apresentada na propriedade de Sórin é de sua autoria; apaixonado por Nina; não tem grande consideração pelo teatro; para ele, o teatro contemporâneo é “rotina e superstição”; fracassa em suas intenções de escritor; tem inveja de Trigórin; não suporta o envolvimento de sua mãe com Trigórin; suicida-se no quarto ato;
6. Macha – filha de Iliá e de Polina; julga-se infeliz; 22 anos; costumes: cheirar rapé, beber vodca e vestir-se de preto; ama Trepliov, mas é ignorada por este; no fim, casa com Miedviediênko, tem filho com este, mas despreza o marido;
7. Nina Zariêtchnaia – moça; filha de rico proprietário de terras; representa na peça de Trepliov; apaixonada por Konstantin; é controlada pelo pai; foge de casa; une-se a Trigórin; tem filho com este; é abandonada por Trigórin, mas continua a amá-lo; torna-se atriz de teatros mundanos; é amada por Trepliov;
8. Piotr Sórin – irmão de Irina; aposentado; segundo ele, as mulheres nunca gostaram dele; quis ser escritor e não conseguiu; quis casar e também não conseguiu; 
9. Polina Andréievna – esposa de Iliá Chamraiev; íntima de Dors;
10. Siemion Miedviediênko – professor; vida economicamente difícil; casa com Macha.


Cena do III ato de A gaivota, no Teatro de Arte de Moscou, dirigida por Stanislavski e Niemiróvitch-Dântchenko. Pintor, Símov.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Minha vida - Antón P. Tchékhov

Minha vida 
Antón Pávlovitch Tchékhov
А н т о́ н    П а́ в л о в и ч    Ч е́ х о в


   Minha vida é texto longo se considerarmos os contos curtos de Antón Tchékhov, assim como Três anos, Duelo, Um drama de caça e A enfermaria nº 6 são também mais extensos. Minha vida não é texto autobiográfico, como dizia o seu próprio autor, embora, certamente, o autor poderia claramente se identificar se assim quisesse ou deixasse o trabalho para a crítica ou para o leitor: Blagovó é médico; a doença de Kleopatra, irmã de Missail, lembra a tuberculose; a esposa de Missail, Maria Víktorovna, constrói uma escola rural; as experiências de Missail com os mujiques e sua aproximação nos bastidores do teatro amador em casa dos  Ajóguin; o despotismo de Aleksandr Pávlovitch, pai de Missail e Kleopatra, e, finalmente, a província criticada lembra Taganrog, cidade natal de Antón Tchékhov. A obra é publicada em 1896.


   Missail pode não saber ao certo o que deseja, mas sabe, desde o início de seu relato o que não deseja. O subtítulo da novela, paradoxalmente chamado de conto (“Conto de um provinciano”), identifica “de saída” a intenção do autor, através de seu narrador em primeira pessoa, de não suportar mais uma cidadezinha russa e sua sociedade diagnosticada de medíocre, hipócrita, tediosa, mentirosa, corrupta, parasitária e vulgar. Embora se reconheça um provinciano, Missail quer sua singularidade, uma vez que recusa seu título de nobre para buscar outra responsabilidade, agora, de cunho metafísico, a partir do trabalho braçal. Para isso, ou seja, para encontrar o sentido que procura sem algum horizonte definido, Missail sabe o que não quer, desde a casa paterna despótica, até o intelectualismo oferecido pela província através de serviços entediantes que fazem com que os de nível fiquem sentados esperando a vida passar. O confronto é, deste modo, inevitável, desde o interno familiar, pois seu pai se recusa a aceitar a diferença do filho em relação à tradição familiar, até as grosserias e poucas simpatias da população. Usando de um último estratagema indecoroso, o pai de Missail, via governador da província, ameaça o próprio filho com a retirada do título de nobreza. Nesta altura do relato, o próprio Missail já abriu mão de sua herança, assim como suas únicas ligações com a nobreza fica em nível do médico Blagovó e da filha do engenheiro, Maria Víktorovna. Apesar das discussões entre estes três personagens sobre progresso, estudo, ciência, trabalho, liberdade, inteligência, etc., o distanciamento se torna concreto no final da narrativa de Minha vida, pois tanto o médico como a esposa se afastam definitivamente de Missail na busca de suas perspectivas pessoais, respectivamente, de estudo e de liberdade. No fim do enredo, o pai se recusa também a reconhecer Kleopatra como filha, acusando Missail de tê-la influenciado para sua concepção absurda de vida.


   Inicialmente, o que chama a atenção do leitor é a importância que Tchékhov faz dos antepassados do protagonista para, no decorrer da novela, desconsiderá-los gradativamente. O pai é, no final do enredo, envelhecido e encurvado a andar pelos arredores da própria casa. A mãe é apenas mencionada em sua morte. A família com seus gloriosos antepassados (poeta, general, pedagogo) não é suficiente para manter a solidez, pois o protagonista Missail e sua irmã Kleopatra anarquizam a estrutura mantida por Aleksandr Pávlovitch. Mas além da família de Missail, surge também uma cidade repleta de corruptos, uma galeria de personagens que abrange políticos, médicos, religiosos, militares, professores e funcionários em geral bem dispostos a qualquer tipo de gratificação. Propina é a mola propulsora da sociedade que Missail procura se afastar. O pai, arquiteto, colabora ao desenhar o mesmo tipo de casa padrão para uma sociedade padrão que, em seus lares, liquida filhas e mães e propaga o horror. A infância estúpida e agressiva vivida por Missail e Kleopatra é sinônimo da solidão vivida na velhice por seu próprio pai. A filha não quer saber do próprio pai que tanto atendeu, servilmente, durante anos. Os casamentos também são nutridos pelo machismo, assim como a pureza das moças vai murchando conforme a vida em família. A irmã de Missail engravida do médico Vladímir Blagovó, homem separado e pai de dois filhos. Por fim, Kleopatra morre e deixa uma menina. O pai viaja para o exterior em busca de especialização na medicina. Algo similar acontece com o casamento de Missail: apesar de amar a esposa, Maria Víktorovna (Macha), esta, decepcionada com a vida no campo, parte para Petersburgo e, de lá, em carta lacônica e autoritária, despacha o marido, fazendo-o crer que o casamento entre eles foi um grande erro. Ao partir para a América, segundo a filha do engenheiro Víktor Iványtch Dóljikov, busca sua liberdade. 

   Tchékhov discute, nesta novela repleta de situações desconcertantes, temas metafísicos de modo natural e impressionantemente claro, ao pulverizar os conceitos de uma província corrompida pelo passado e pelo presente em busca do dinheiro, e um jovem que procura buscar sentido para sua vida a partir do trabalho físico. Deste modo, o trabalho dito intelectual não serve a Missail, pois ficar tediosamente sentado à espera de algo não é, segundo o que pensa, inteligência a ser desenvolvida. Entretanto, Missail não consegue explicitar o que de fato deseja para sua vida e o sentido existencial a que procura se dilui nas expectativas que cria e nos trabalhos que desenvolve, como no do telégrafo da estrada de ferro que assume à na da atividade de pintor de paredes e telhados subordinado a Riedka. Mas Tchékhov surpreende também com a ligação de Missail com Riedka, pois seu equilíbrio espiritual se dá com a união a este homem, assim como Kleopatra, já grávida, mora em casa do pintor de paredes. Riedka, Missail e Kleopatra estão ligados também ao teatro amador da casa dos Ajóguin. 


   Por fim, o casamento com uma teórica da agricultura para que ela, caprichosa e egoisticamente, abra mão do casamento para buscar a liberdade. Junto com sua irmã (também abandonada pelo médico Blagovó – se é que realmente algum dia ele esteve junto por tanto tempo ao seu lado), Missail viverá os últimos momentos de vida desta para, finalmente, ser reconhecido pela província ou, ao menos, não ser mais chamado de “Alguma Utilidade”. Sozinho, Missail já não se encontra tão só, pois a trajetória de vida que desempenhou na província mediocrizada é dialogada, individualmente, por seus habitantes, como, por exemplo, Aniuta Blagovó. 


   Missail e Riedka são personagens marcantes, pois diferenciados da província. Segundo Riedka, “O pulgão come a plantação; a ferrugem, o ferro; e a mentira, a alma. Senhor, salve a nós, pecadores!”.



Alguns Personagens de Minha vida

1. Ajóguin – família rica e beneficente; apreciadores da arte; proprietários de terra;
2. Aleksandr Pávlovitch – pai de Missail; único arquiteto municipal da cidade; mora na Bolchaia Dvóriánkaia; guarda jornais, encaderna-os e não deixa ninguém ler;
3. Andréi Ivanov (Iványtch – corruptela do patronímico Ivánovitch) – pintor de paredes; cerca de 50 anos; alto; muito magro; pálido; peito chupado; “têmporas encovadas e olheiras”; aparência assustadora; tem “doença debilitante”; apelido (mas dizem que é seu sobrenome): Riedka (“rabanete”, em russo); “pernas descarnadas e violáceas”; 
4. Aniuta Blagovó – filha do vice-presidente do tribunal; alta; 
5. Kleopatra Alekséievna – irmã de Missail; 26 anos; teme e confia na inteligência do pai; “olhos escuros maravilhosos”; feia de perfil; nariz e boca avançados para a frente sugerindo um assoprar; 
6. Maria Víktorovna (Macha) – a filha do engenheiro Dóljikov; alma simples; inteligente; bondosa; cerca de 25 anos, mas com aparência de 30; loira; bonita e cheia; estudou canto em conservatório de São Petersburgo;
7. Missail Alekséievitch (Alekséitch – corruptela do patronímico Alekséievitch) – narrador; estatura alta; forte compleição física; apelido: “Alguma Utilidade”; procura um sentido para a sua vida; 
8. Vladímir Blagovó – médico; estudante; serve em regimento militar; olhar vivo e simples; olhos acinzentados; barbicha rala; casado com três filhos; infeliz na vida familiar; dizem que não vive com a esposa; engravida Kleopatra.